Pronunciamento do presidente Lula durante a sanção da lei que institui pensão a filhos de vítimas da hanseníase
Eu primeiro vou ler, porque se eu for falar de improviso aqui, eu vou contar muito caso e eu vou começar a chorar aqui. Hoje é sexta-feira, é um dia de consagração dos nossos 11 meses de governo. Porque essa semana nós fizemos aqui muita coisa de interesse do povo brasileiro. A questão da educação das crianças com deficiência, a questão do Viver Sem Limite, a questão de cuidar das pessoas que mais precisam do Estado. E não poderia ser mais feliz a sexta-feira a gente terminar fazendo a reparação histórica de erros cometidos pelo Estado brasileiro.
Quero agradecer a cada companheiro portador de hanseníase que veio pra cá. É importante que a gente saiba que eu fui ao Acre, companheira Nísia, em 2005, se não me falha a memória, e fiz um discurso que a gente iria acabar com a Hanseníase nesse país. Havia toda a possibilidade da gente ter acabado. O Acre chegou a ter 1,8 casos por cada 110 mil habitantes. Hoje voltou a crescer outra vez e voltou a crescer em vários estados. Significa que, outra vez, da mesma forma que a gente está reconstruindo o país, a gente vai reconstruir a política mais eficaz possível para que a gente possa definitivamente acabar com a hanseníase nesse país.
E, sobretudo, um processo de orientação, através dos meios de comunicação, para que as pessoas descubram os primeiros sinais, se eles serão portadores ou não, para que eles possam se tratar rapidamente e curar uma doença que tem cura. Não tem mais sentido a gente ter vergonha de ser chamado de leproso, de hanseniano, porque é uma doença que ela tem cura se ela for tratada e ela só vai ser tratada se a gente explicar bem. Então, nós temos que explicar. Como é que a gente vai dizer para as pessoas em casa, que estão nos assistindo, e que vão assistir outros programas de saúde, como é que elas vão perceber o primeiro sinal, o segundo sinal. Porque essa pessoa tem cura. É como qualquer outra doença que a gente tem que, se cuidar em tempo, a gente não vai ter problema na vida o tempo inteiro. E a luta contra o preconceito é uma luta histórica.
O preconceito é uma doença. É uma doença grave. E muita gente precisa do preconceito para sobreviver porque precisa de ódio para sobreviver. E nós precisamos exatamente fazer o oposto que essa gente faz. Nenhum dinheiro do mundo é capaz de compensar ou apagar as marcas que a segregação provocou na alma e no coração das pessoas portadoras de hanseníase e suas famílias. Mas estender aos filhos o direito à pensão especial é dar mais um passo importante para a reparação de uma dívida enorme que o Brasil tem com aqueles que, durante anos, foram privados dos cuidados e carinhos dos seus pais.
Ao mesmo tempo em que obrigava homens e mulheres com diagnóstico de hanseníase a viver isolados em hospitais colônias espalhadas pelo país, o Estado brasileiro criava uma geração de órfãos de pais vivos. Crianças abandonadas, levadas a crescerem em locais segregados, muitas vezes vítimas também de preconceitos e maus-tratos, privadas de amor e de oportunidades. Certamente, nenhuma delas, muitas das quais presentes aqui hoje, já adultas, têm lembranças boas dos locais para onde foram levadas.
Pelo contrário, os relatos são sempre de sofrimento e dor pela privação do convívio em família e pelas violências múltiplas de que eram alvos. Crianças que nunca viram nem receberam as bênçãos carinhosas dos seus pais e avós. Mães angustiadas sem notícias dos filhos que o Estado tirou delas. Pais de filhos que, quando conseguiam se ver, não podiam ter nenhum contato físico, separados por grades ou por vidros.
Crianças sem direito à infância, também vítimas do estigma em torno do mal de Hansen. Mesmo depois de 50, 60 ou 70 anos, a memória das privações ainda é muito presente. O Estado brasileiro falhou com essas crianças, com essas famílias. E é preciso, mais uma vez, reconhecer e pedir desculpas a elas e a toda sociedade pelos erros do passado.
O Estado errou ao manter segregados pais e filhos mesmo depois de a cura para Hanseníase ter sido descoberta na década de 40, mesmo depois da recomendação mundial para o fim do isolamento no fim dos anos 1950. Errou por manter na prática a política de segregação até o ano de 1986. É preciso pedir desculpas e é preciso, principalmente, construir políticas públicas para reparar os danos sociais que a segregação causou neste país.
Companheiras e companheiros, certamente milhares de filhos separados dos pais por causa da hanseníase vão dormir mais tranquilos com essa lei que assinamos agora, estendendo os direitos que já estavam assegurados aos seus pais. Além dos filhos, esse direito também chega a um grupo de hansenianos que ficou segregado em isolamentos domiciliares em florestas e seringais.
Cumprimos, assim, mais uma etapa desse processo iniciado em 2007, no meu segundo governo. Naquela ocasião, quando criamos a pensão especial vitalícia para as vítimas da hanseníase, destacamos a importância dessa iniciativa para combater a arbitrariedade que foi cometida pelo Estado. Com tal iniciativa, iniciada há 16 anos, nos colocamos na vanguarda mundial da reparação.
Ao lado do Japão, que faz isso por decisão judicial, o Brasil é o único país a reconhecer o direito à indenização de homens e mulheres, e agora de seus filhos, pelo isolamento forçado da hanseníase. Assim como fizemos antes, com essa assinatura de hoje estamos cumprindo um compromisso ético e moral com brasileiros e brasileiras excluídos do pleno exercício da sua cidadania. Estender a pensão especial para os filhos separados é também recompor a dignidade e cuidar dos que mais precisam. É seguir na direção desse país melhor que construímos, com um olhar para todos, mas com cuidado especial para com os que mais precisam.
Amigas e amigos,
Em toda a minha vida política, estive atento à causa das pessoas com hanseníase. Visitei colônias e ex-colônias, antes, durante e depois de deixar a minha Presidência em 2010.
Nesses encontros, fiz amigos e conheci de perto a complexidade da hanseníase e a realidade de homens e mulheres que contraíram a doença. Um dos meus últimos compromissos públicos em 2018, antes da prisão política em Curitiba, foi a visita à Colônia Santa Isabel, em Betim, Minas Gerais.
Fui o primeiro presidente da República do Brasil a abrir as portas do Palácio do Planalto para os atingidos pela hanseníase. Em 2007, antes de assinarmos a Medida Provisória da indenização, recebemos uma comitiva de representantes dos hansenianos para ouvir diretamente suas demandas.
Lembro da mobilização do nosso querido companheiro Gilberto Carvalho, que não está aqui conosco, para que esse encontro acontecesse. E lembro da atuação importante do MORHAN, o Movimento de Reintegração dos Acometidos pela Hanseníase, como voz potente dessas famílias na defesa de seus direitos. Construímos no passado e continuaremos construindo nossas políticas com participação social. E é muito importante que vocês, como os demais setores da sociedade, apontem prioridades e nos cobrem o cumprimento das políticas.
Eu queria lembrar pra vocês que, assinando essa Lei, eu lembro do dia da minha caneta. Essa caneta eu ganhei de presente e eu fui assinar, quando eu fui assinar, o companheiro, acho que era Cristiano, foi falar e ele pediu para quebrar o protocolo. E a quebra do protocolo foi de pedir a minha caneta Mont Blanc para guardar de recordação. E eu, então, tive o protocolo quebrado e recebi hoje a caneta para assinar outra vez. Espero que eu ainda possa assinar muitas vezes com essa caneta para ajudar as pessoas.
Esse encontro com vocês hoje fecha uma semana de agendas importantes nas quais anunciamos políticas diversas sobre igualdade racial, educação especial na perspectiva da educação inclusiva, uma nova etapa do programa Minha Casa, Minha Vida e a retomada do programa Viver sem Limite. Todas essas pautas convergem para a essência do nosso governo, que é cuidar, governar para os que mais precisam e fazer do Brasil um país com igualdade de oportunidade para todos. Ou seja, governar com o coração.
Independentemente da cor da pele, crença, condição social, capacidade intelectual ou motora, com saúde ou com alguma doença, todos e todas merecem viver com dignidade e respeito. Sem discriminação e preconceito. Esse é o país que estamos construindo, junto com cada um e cada uma de vocês.
Eu quero terminar a minha fala dizendo para vocês que governar um país não é difícil se o governante souber para quem que ele quer governar. Se ele souber e não esquecer de onde ele veio e pra onde ele vai voltar. Esse país foi vocês, junto com outros milhões de brasileiros, que lá para os idos de 2003, tiveram a coragem de colocar o primeiro operário deste país a presidir esse país. Foi um ato de coragem, foi um ato desaforado, porque a sociologia política não concebia a ideia de que fosse possível. Esse Palácio não foi feito para um metalúrgico presidir.
Esse Palácio foi feito para pessoas de outra camada social, para pessoas de outro espectro da sociedade e não para um trabalhador que mal e porcamente tem um diploma primário e um curso do Senai. E o que é importante ter em conta, e vocês tem que botar na cabeça isso, é que como a gente significa a maioria de pessoas nesse país, a gente pode eleger quem a gente quiser, a gente pode fazer o que a gente quiser desse país se a gente não perder consciência da nossa responsabilidade. Não pensem que um grã-fino qualquer vai se preocupar com alguém que tá com Hanseníase que mora numa colônia lá no estado do Amazonas.
Não pensem que alguém da elite desse país, a elite política vai se preocupar com alguém que está segregado numa colônia lá em Cruzeiro do Sul, no estado do Acre. Não pensem que alguém vai se preocupar com alguém que está confinado e segregado numa colônia em Betim. Ou em qualquer outro lugar desse país. Eu queria que vocês compreendessem que governar pra pobre, governar para negro, governar para periferia, governar para pessoas com deficiência, governar para pessoas que compõem a maioria desse país, que são as pessoas que labutam das 5 da manhã às 10 da noite para ganhar o pão de cada dia, para governar este país, é muito difícil.
Porque muito fácil é contratar um viaduto, muito fácil é contratar uma ponte. Se bem que tudo isso é muito importante para esse país. Muito fácil é contratar até uma ferrovia. Muito fácil até fazer uma universidade. Agora, difícil é você lembrar que tem gente que não vai usar essa estrada, que não vai usar essa ferrovia, que não vai nessa universidade e que você precisa ir até elas para dizer: “se vocês não podem ir até mim, eu venho até vocês”.
Eu lembro, companheira Nísia Trindade, eu lembro da emoção dos primeiros companheiros que vieram aqui para a gente poder discutir a aposentadoria de vocês. Eu lembro que eu fiz questão de receber os companheiros na sala mais chique aqui no meu Palácio, na minha sala de receber autoridades. Foi onde eu recebi, acho que eram 12 ou 13 companheiros. E eu fiz questão de dar um beijo no rosto de cada um, para provar a quem tivesse assistindo que, se o presidente da República não tem preconceito, ninguém precisa ter preconceito de ninguém nesse país.
E faço isso quantas vezes for necessário. Porque esse país precisa voltar a fortalecer a democracia e a democracia só vai ser consolidada nesse país quando o povo mais humilde, quando o povo trabalhador, quando o povo com hanseníase, ou qualquer outro cidadão com qualquer outra doença, ser tratado com dignidade como cidadão e cidadã de primeira classe. É para isso que eu voltei a governar esse país. Para cuidar de quem precisa do governo. Um grande abraço.
Parabéns à Câmara dos Deputados que aprovou essa Lei. Parabéns ao deputado Arruda. Parabéns, Padilha. E até o nosso próximo encontro, se Deus quiser.