Pronunciamento do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em evento de entrega do Prêmio Camões em Lisboa (Portugal)
TRANSMISSÃO | Lula participa da entrega do Prêmio Camões
O convite para participar, aqui em Portugal, da cerimônia de entrega do prêmio Camões ao querido Chico Buarque é motivo de grande honra e de imensa alegria.
Hoje, para mim, é uma satisfação corrigir um dos maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira nos últimos tempos. Digo isso porque esse prêmio deveria ter sido entregue em 2019 e não foi.
Todos nós sabemos por quê. O ataque à cultura, em todas as suas formas, foi uma dimensão importante do projeto que a extrema direita tentou implementar no Brasil.
Se hoje estamos aqui para fazer esse gesto de reparação e celebração da obra do Chico, é porque finalmente a democracia venceu no Brasil.
Não podemos esquecer que o obscurantismo e a negação das artes também foram uma marca do totalitarismo e das ditaduras que censuraram o próprio Chico no Brasil e em Portugal. Esse prêmio é uma resposta do talento contra a censura, do engenho contra a força bruta. Um prêmio escolhido por unanimidade por jurados de Portugal, do Brasil, de Angola e de Moçambique. Um prêmio da língua portuguesa que nos une mesmo quando barreiras geográficas ou fronteiras nos separam.
Hoje já é outro dia.
Meus caros companheiros e companheiras.
A obra de Camões marca o início da grande epopeia da língua portuguesa, que hoje floresce nos nove países que a utilizam oficialmente. A obra de nosso Chico Buarque, produzida nesse mesmo idioma, acompanha toda a história recente do Brasil, com especial atenção ao destino político e cultural de nossos países-irmãos.
Chico transformou em patrimônio literário comum os amores de nossos povos, as alegrias de nossos carnavais, as belezas de nossos fados e sambas, as lutas obstinadas de nossas cidadãs e cidadãos pela conquista da liberdade e da democracia.
Em seu cancioneiro, em suas peças de teatro e em seus romances, o autor hoje homenageado nunca deixou de fazer da língua portuguesa instrumento de transmissão de nossas culturas e de nossas lutas.
Na literatura, Chico fez de sua obra uma declaração de amor à língua portuguesa, mesmo quando ousou transformar o idioma húngaro em um dos personagens centrais do romance "Budapeste" – que José Saramago saudou com estas palavras:
"Chico Buarque ousou muito, escreveu cruzando um abismo sobre um arame e chegou ao outro lado. Não creio enganar-me dizendo que algo novo aconteceu no Brasil com este livro".
Na obra de Chico Buarque, o passado, o presente e o futuro de nossas nações sempre estiveram vinculados. Foi assim que ele decidiu revisitar nossa história, na peça Calabar, para nos mostrar, por meio deste personagem luso-brasileiro, quantas vezes em nosso destino se fizeram de traidores, heróis; de heróis, condenados; e da justiça, arbítrio.
Quando Brasil e Portugal atravessavam violentos regimes ditatoriais, foi assim que Chico jogou luz sobre a festa da redemocratização portuguesa, fazendo com que guardássemos, “teimosos e renitentes”, um velho cravo como esperança para nós mesmos. Um cheirinho de alecrim.
E foi assim que Chico também festejou a independência política de nossos irmãos e irmãs africanos.
Minhas caras amigas e amigos,
Chico conseguiu sintetizar as paixões e os desejos de tantas Joanas e Joões, de tantas Teresas e Josés Costas, de tantas Genis e Pedros pedreiros, de tantos guris e mambembes de nossa gente. Transformou o cotidiano em poesia extraordinária.
Mas a vasta contribuição da obra de Chico Buarque vai além de seus inegáveis aportes à riqueza literária da língua portuguesa e mostra que arte e cultura estão entrelaçados com a política e com nossos ideais de liberdade e democracia.
Ao expressar a beleza de tantos heróis quase anônimos de nossos povos, Chico não nos deixou esquecer a força inquebrantável que vem da expressão popular de nossas culturas únicas, mas compartilhadas. O estreitamento de nosso intercâmbio cultural, que deve ainda ser aprofundado, só poderá enriquecer as tradições e expressões de nossos povos.
Não posso deixar, portanto, de agradecer, aos organizadores deste prêmio literário (a Fundação Biblioteca Nacional do Brasil e a Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas de Portugal) e a todos aqueles que têm contribuído para aproximação de nossas sociedades e para o fortalecimento de nossos valores e aspirações comuns.
Como nosso autor homenageado, tenho a convicção de que é desejo de todos nós que, na celebração das nossas democracias e da nossa valiosa produção cultural, possamos nos tornar, todos, uma imensa unidade alicerçada na nossa rica diversidade.
A unidade na diversidade que Chico Buarque sonhou na bela canção em parceria com Ruy Guerra: um "Fado Tropical", onde o rio Amazonas desagua no Tejo, brotam avencas na Caatinga e alecrins no Canavial, e se misturam guitarras, sanfonas, jasmins, coqueiros, fontes, sardinhas e mandiocas. Tudo num suave azulejo, como somente a sensibilidade desse gênio da língua portuguesa é capaz de criar.
Meus parabéns, querido Chico, e eu vinha pensando em dizer uma coisa para você ao terminar a minha fala. Quando eu nasci, ainda era muito pequeno, eu queria ser cantor, eu queria escrever peças de teatro, e eu queria, sabe, fazer tudo o que você faz, inclusive escrever romances.
Aí falei para minha mãe que eu queria ser tudo isso, ela falou "não, meu filho, você não pode ser, porque já nasceu um menino 2 anos mais velho do que você chamado Chico Buarque, que vai ser o mais importante".
E eu há 75 anos falei para minha mãe "e eu, o que vou ser?" Ela falou "se prepare que você vai ser presidente". E aqui estou eu, presidente da República, e o Chico representando a cultura viva do nosso país.
Parabéns, companheiro Chico Buarque, por receber merecidamente o prestigioso prêmio Camões. Você, mais do que ninguém, merece. E que queria aproveitar e prestar homenagem ao Raduan Nassar, que foi o último a receber e que queria vir nessa festa e não pôde vir porque está doente.