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PGFN na mídia: Além da tese de repercussão geral
Publicado em
22/03/2017 09h35
Atualizado em
31/10/2022 10h40
PGFN na mídia: Além da tese de repercussão geral
O que temos a aprender com um julgamento atinente à base de cálculo do PIS e da COFINS
No último dia do julgamento em que o STF definiu pela exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS, no RE 574.706, o Ministro Celso de Mello, mais uma vez, nos brindou com valiosas lições acerca da necessidade de que o Estado se submeta aos estritos termos do Direito Tributário e de sua disciplina constitucional. Não há como objetar a tais considerações. É o Direito Tributário que possibilita que consideremos legítima a incidência de tributos sobre renda e bens dos cidadãos e, por conseguinte, que torna possível a existência do próprio Estado de Direito. Por ele, no passado, homens buscaram responder perguntas sobre filosofia política, morreram, rebelaram-se, criaram nações e fundaram o Estado moderno. Trata-se de matéria relevante em si mesma, como, naquele voto, se destacou.
Além disso, o direito tributário, bem manejado, é essencial para o desenvolvimento do país, na medida em que contribui, decisivamente, para uma definição clara dos direitos de propriedade, dos contribuintes e do Estado. Contribui para que cada um suporte os danos e receba as recompensas derivadas de suas próprias ações. Sobre esse aspecto, é relevante como instrumento destinado a evitar a expropriação da minoria pela maioria e, também, que uma aristocracia se locuplete, como free rider, utilizando serviços públicos custeados pela maioria.
Essas ideias, de aceitação geral, nos dizem muito acerca do que devemos buscar, mas nada sobre como fazê-lo. Surgem, então, as grandes questões do Direito Tributário: como reduzir a litigiosidade e conferir maior grau de segurança aos contribuintes e ao fisco? É eficiente ou moralmente justificável a proliferação, em nosso sistema jurídico, de tributos vinculados a determinadas finalidades ou fundos? Em que grau é possível se desenhar, sem grandes perdas sociais, um sistema tributário mais justo em um país profundamente desigual, como é o Brasil, e que, portanto, possui uma reduzida base de contribuintes do Imposto de Renda? Nosso federalismo fiscal deve caminhar para uma divisão de competências tributárias mais clara ou para um sistema centralizado de instituição e arrecadação de tributos, aprofundando a técnica de repasses? Qual o sentido redistributivo das repetições de indébito tributário e, até que ponto, é possível, ante os limites do nosso conhecimento, aplicar, satisfatoriamente, regras como aquela fixada no art. 166 do CTN?
No Brasil, lamentavelmente, a doutrina jurídica pouco tem se pronunciado sobre esses temas fundamentais. Como já destacou Marciano Seabra de Godoi, em prefácio[1], a grande maioria de nossos doutrinadores contaminou-se pela retórica forense. Nós, os profissionais do Direito, temos terceirizado o grande debate para economistas, cientistas políticos e especialistas em administração pública. Limitamo-nos a criticar aqueles resultados que não nos agradam. Nossos melhores professores têm se focado na análise da incidência ou da constitucionalidade de alguns tributos e seus efeitos sobre determinados contribuintes, em determinadas situações, questões normalmente ligadas a atividades de grandes empresas. Esses temas, de âmbito mais restrito, aqui chamamos de pequenas questões de Direito Tributário. Seu exame não é ilegítimo, mas serve a outro fim, que não o aperfeiçoamento social.
No entanto, o que se mostrou patente, no julgamento em que se definiu a questão da base de cálculo do PIS e da COFINS, é que nos acostumamos a usar a linguagem das grandes questões para tratar das pequenas questões. Isso tem resultado em manifestações equivocadas, assim como em colocações banais e irrefletidas de nossos melhores profissionais, revelando uma autoimagem grandiloquente e exagerada sobre o que fazemos, cotidianamente.
Já no início daquele julgamento, destacou o Subprocurador-Geral da República, Dr. José Bonifácio Borges de Andrada, profissional de extenso currículo, indubitavelmente qualificado, após a sustentação oral do Procurador-Geral da Fazenda Nacional: “O Procurador quase me convenceu que, se pagarmos mais impostos, pagaremos menos impostos”.
Após definido o julgamento, tendo determinado o STF o decote da base de cálculo dos tributos em questão, outros pronunciamentos de nossos mais qualificados profissionais deram o tom da avaliação sobre o que se sucedera. Em linhas gerais, foi dito que os contribuintes obtiveram uma vitória épica sobre a mão opressora do Estado e que as empresas, finalmente, deixarão de ser sufocadas pela União, que vem exigindo tributos além da sua capacidade contributiva. Por outro lado, avaliando-se as consequências da decisão, salientou-se que o resultado do julgamento estimulará os investimentos, levando a economia a crescer, o que evitará que ocorram perdas reais de arrecadação e que, por outro lado, caso isso não ocorra, o governo deverá enxugar a máquina pública, reduzindo gastos, para fazer frente à redução de receitas.
Não ficou clara a razão pela qual a solução da questão passaria pela escolha da tese que nos levaria a pagar menos impostos ou porque a redução da carga tributária deveria ser o objetivo do Tribunal, no caso. Muito menos se discutia, ali, se o nível dos gastos públicos era adequado, onde devemos economizar ou se possuímos meios para produzir cortes orçamentários, no curto prazo, em face das restrições constitucionais e políticas vigentes. Não creio que alguém chegue a afirmar que tais temas sejam parâmetros de controle adequados em um julgamento sobre a constitucionalidade de uma lei ou ato jurídico. Esse é o tipo de coisa que se define, em uma democracia, por meio de eleições periódicas, onde a população escolhe entre bandeiras políticas que vão resultar em uma ou outra consequência.
Aparentemente, não sabemos o que estamos fazendo quando lidamos com aquelas pequenas questões de Direito Tributário. Decisões sobre direito tributário, que resultem na releitura de antigas maneiras de se aplicar a norma ou na exploração de brechas de uma legislação nova, não criam riqueza, nem reduzem a carga tributária. Limitam-se a distribuir, entre as pessoas e no tempo, o ônus do custeio do Estado de hoje. No julgamento em questão, a PGFN não defendia que haveria redução da carga tributária, mas que esta, dadas as restrições vigentes, manter-se-ia, mais ou menos, a mesma, resultando a pretendida alteração do sistema em profundas transferências de riqueza entre os cidadãos – inclusive, em sentido contrário à seletividade recomendada, para o ICMS, pela Constituição Federal. O que mudaria, basicamente, seria a distribuição dos encargos sobre cada um, pois aquele que paga mais ICMS, pagará menos tributos incidentes sobre faturamento, estimulando um aumento de alíquota sobre todos ou um aumento do endividamento do Estado (o que, fatalmente, resultará em mais tributos no futuro).
Seria perfeitamente plausível argumentar-se que determinado setor (ou minoria) está sendo sufocado injustamente pelo restante da sociedade, mediante tributação ilegítima. Tratamos de questões desse tipo no nosso dia-a-dia. O que não é concebível é considerarmos que uma decisão judicial, vedando determinado método de tributação, sobre determinadas pessoas, represente uma vitória dos contribuintes em geral. Trata-se, na verdade, de uma vitória de alguns contribuintes sobre outros. É relevante destacar o efeito redistributivo de tais discussões, pois é comum que questão do tipo, colocada como uma tese em que “todos ganham”, oculte situação diversa: uma estratégia para que determinados cidadãos se enriqueçam às custas da maioria.
Pode-se dizer, também, de maneira similar ao que foi expresso após o julgamento, que, em tese, a redução do ônus tributário, em algum momento, vai gerar incrementos na arrecadação, por estimular a atividade econômica. É a ideia que está por trás da popular Curva de Laffer: há um ponto em que aumentos de exação geram decréscimos de receita, uma vez que constituem custos da atividade tributada, com todos seus reflexos sobre preços relativos e lucros. No entanto, ninguém sabe onde fica, exatamente, o cume da Curva de Laffer. É mais provável que ainda estejamos longe dele e que, para cada tributo ou atividade tributada, esse nível máximo de tributação seja diferente. Se isso ocorre em termos gerais, podemos dizer que estamos totalmente cegos a respeito dos efeitos, sobre a receita fiscal, da redução, em alguns casos, da base de cálculo de tributos específicos (o PIS e a COFINS) – tese que, além do mais, pode ser aplicada a inúmeros outros tributos.
Aparentemente, não nos demos conta que dispomos de racionalidade limitada e conhecimento imperfeito para lidar com questões que exigem, muitas vezes, informação técnica especializada, de difícil apreensão. Como assentou com propriedade Richard Posner, “O treinamento e a experiência em direito dão aos juristas um conjunto de ferramentas essencialmente casuísticas e uma percepção das doutrinas jurídicas, mas não as ferramentas de que necessitam para compreender as consequências sociais do direito”[2]. Se essas consequências passam, em face da utilização da ponderação de princípios como método de decisão, a ser, cada vez mais, juridicamente relevantes, evidencia-se a necessidade de um treinamento interdisciplinar que (ainda) não possuímos. Portanto, recomenda-se cuidado.
Antes de partirmos para tal ponderação de princípios é relevante observar o papel das regras como fonte de informação. Nosso objeto de análise é sempre uma parte seccionada da realidade e certos supostos, contidos em tais regras, nos dispensam de buscar dados adicionais, já que, em sua elaboração, foram levadas em consideração informações atinentes a outros campos do conhecimento. Portanto, tal norma-regra torna desnecessário que o juiz conheça todos os temas e todo o sistema, fazendo com que o julgamento seja possível, ante os limites da capacidade cognitiva do ser-humano. Se pretendemos descartar parte desse aparato, que possui inestimável valor operativo para o Direito, é prudente saber o que estamos fazendo.
Enfim, as colocações realizadas, por profissionais gabaritados, antes e após o julgamento do RE 574.706, revelam equívocos que têm sido muito comuns a nós, que atuamos em matéria tributária. Desprezamos decisões coletivas (democráticas), nos iludimos acerca da natureza das questões que enfrentamos cotidianamente e somos arrogantes acerca do alcance de nosso conhecimento especializado.
Talvez, já seja hora de voltarmos a tentar solucionar as grandes questões de Direito Tributário, levando em consideração o que outros profissionais têm a nos ensinar.
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* Carlos de Araujo Moreira - 20 de Março de 2017 às 10h40