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Seminário discute registro de conhecimentos tradicionais
Brasília, 5/12/06 – Diz o ditado que nem tudo o que reluz é ouro. Mas, quando se trata de diversidade biológica e social, podemos fazer a inversão: nem tudo o que é ouro reluz. Mesmo que, aos nossos olhos, a natureza, a cultura e as tradições pareçam muito comuns nas diversas regiões do país, tudo isso vale hoje milhões de dólares. Até aí estaria tudo bem, se esse “ouro” não fosse roubado, todos os dias, das comunidades que o detêm.
São comunidades de povos quilombolas, indígenas e tradicionais, que adquiriram conhecimentos ligados não só à biodiversidade, mas à cultura e a tradições que receberam de seus antepassados. Para defender seus direitos, representantes dessas comunidades se reuniram, no último final de semana de novembro, no Seminário Sobre Registro de Conhecimentos Tradicionais, na cidade de Jardim Ingá, GO.
A necessidade de realizar o seminário surgiu nas discussões do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) sobre registros, cadastros e criação de bancos de dados que envolvem os conhecimentos tradicionais. Foram convidados para participar do seminário 30 representantes de comunidades de várias regiões do Brasil.
“É fundamental escutar o que as comunidades pensam sobre como deve ser feito esse registro, inclusive se elas querem ou não que seja feito”, explica o coordenador das Câmaras Temáticas do CGEN, Inácio de Loiola. Para alcançar esse objetivo, também foram temas de discussão no seminário a implementação da legislação sobre o assunto no Brasil e experiências de registro de conhecimentos tradicionais já realizadas.
Depois de palestras e discussões em grupo, os participantes decidiram fazer várias oficinas nas comunidades, seminários regionais e um fórum nacional para discutir mais sobre o registro dos conhecimentos tradicionais. Uma carta foi escrita à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, pedindo a ampliação da participação dos representantes de comunidades tradicionais no CGEN e a participação nas próximas Convenções sobre Diversidade Biológica (CDB) e sobre Diversidade Cultural (CDC).
Organizaram o evento a Articulação Pacari – Plantas Medicinais do Cerrado; o Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI); a Cooperativa Ecológica das Mulheres Extrativistas do Marajó (CEMEM); a Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu (ACBANTU); e a Fundação Estadual dos Povos Indígenas (FEPI).
A Fundação Cultural Palmares faz parte do CGEN e esteve presente no seminário, para esclarecer sobre o decreto 4.887 de 2003, que trata do auto-reconhecimento de comunidades remanescentes de quilombo. Também participaram do seminário o Instituto do Patrimônio Histórico (IPHAN) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
O que diz a Lei
Atualmente, as bases legais mais importantes que regem o assunto são a Medida Provisória 2.186-16/01 e a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), ratificada em 1994 no Brasil. A CDB é um tratado internacional assinado por muitos países, inclusive o Brasil, que tem como objetivos a conservação e o uso sustentável da biodiversidade e a repartição de benefícios proveniente da exploração dos recursos genéticos.
De acordo com esse tratado, os países devem respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas; incentivar a ampla aplicação destes conhecimentos, inovações e práticas com a aprovação e a participação dos detentores destes conhecimentos; e encorajar a repartição eqüitativa dos benefícios provenientes da utilização desses conhecimentos, inovações e práticas dos povos indígenas e comunidades locais.
A MP 2.186-16/01 criou o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), constituído por órgãos do governo federal e vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. Desde 2003, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, solicitou que representantes da sociedade fossem incluídos no CGEN.
Pela MP, apenas com a anuência prévia da comunidade, alguém pode obter conhecimentos tradicionais associados para fazer pesquisa, bioprospecção (pesquisa que pretende identificar algo com potencial econômico) ou desenvolvimento tecnológico. Além disso, é necessária ainda a autorização do CGEN. Um questionamento que é feito à MP é sobre o conceito de conhecimentos tradicionais associados. A dúvida é se esse conceito abrange também aqueles conhecimentos tradicionais de ordem cultural, não necessariamente ligados à biodiversidade ou ao patrimônio genético. A MP também estabelece que o conhecimento tradicional associado poderá ser objeto de cadastro, conforme dispuser o CGEN. E daí vem o motivo para a realização do seminário.
O Povo Quilombola
Um livro escrito por um quilombola da comunidade de Curiaú, em Macapá, AP, quase foi publicado, sem autorização, por um pesquisador, se não fosse a postura firme do líder da comunidade, José Araújo da Paixão. “Ele entregou o original do livro para o pesquisador, e só conseguimos de volta porque ameaçamos entrar na Justiça”, contou Paixão, como é conhecido.
Esse é um entre tantos exemplos de ameaças que as comunidades remanescentes de quilombos sofrem em relação aos seus conhecimentos tradicionais. Paixão era um dos três quilombolas presentes no seminário e explicou que ninguém estava informado sobre a legislação. “Se algum quilombola teve acesso, não repassou para os outros”, disse ele.
Maria Márcia de Almeida da comunidade Angico, em Bom Conselho, PE, diz que ninguém de sua comunidade sabe que tem direito sobre os conhecimentos tradicionais. “Temos mais de 20 benzedeiras e parteiras e esse conhecimento está passando de geração em geração”, contou Márcia. Angico possui 200 famílias e foi reconhecida como comunidade remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares em 2004.
Na avaliação de Márcia, deveria haver mais representantes do povo quilombola no seminário. “Só ter três quilombolas aqui torna a nossa responsabilidade muito grande”, disse ela. Além da pequena representatividade, também foi questionado por que a os quilombolas não eram considerados como povo, assim como os indígenas, na legislação nacional e internacional.
“Pra nós, quilombolas, foi uma surpresa descobrir que não somos reconhecidos como um povo no texto da lei, pois temos nossas culturas, nossas línguas, religiões, costumes e tradições”, disse Valmir dos Santos, da comunidade Tijuaçú, localizada no município de Senhor do Bonfim, BA.
A partir do questionamento de Valmir, os participantes passaram a denominar os quilombolas de povo. Para Valmir, Paixão e Márcia, o seminário foi importante por ter esclarecido sobre a legislação e sobre a necessidade de registrar os conhecimentos tradicionais. “É importante para que possamos ter melhor segurança daquilo que foi deixado por nossos ancestrais desde que esses registros sejam melhor discutidos pelas comunidades e que elas digam como deve ser feito”, concluiu Valmir.