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Renascimento africano
A África vê seu “renascimento” surgir com promessas de cooperação entre países. Em maio, o lançamento do Festival Mundial de Artes Negras deu mais um passo na integração da cultura negra.
Adriano Belisário
A expectativa é enorme: nada menos que um renascimento é anunciado. Após séculos de massacre, a África começa o milênio lutando por um futuro que ignore suas geométricas fronteiras nacionais. No caminho da cooperação entre as nações, existem iniciativas como a União Africana, fundada em 2002, e o Festival Mundial de Artes Negras (FESMAN), cuja terceira edição foi lançada recentemente… no Brasil.
“O panafricanismo não se limita ao continente, mas a todos os povos originários da África”, explicou Abdoulaye Wade, presidente do Senegal, na inauguração. Capital daquele país, Dakar será sede do III FESMAN, que ocorre durante os primeiro vinte dias do próximo dezembro com a participação de mais de cinquenta países.
O lançamento do Festival aconteceu no Dia Internacional da África, 25 de maio. Além da data, o local também fora planejado. Cercado por símbolos, o primeiro evento do III FESMAN ocorreu no Teatro Castro Alves, em Salvador. A cerimônia contou a com a presença do presidente Lula e do cantor Gilberto Gil, que cantou `La lune de Gorée` na abertura das apresentações artísticas.
A canção é inspirada na Ilha de Gorée, no Senegal. Neste histórico posto de comércio escravista, está a `porta do nunca mais`, por onde passavam os negros antes de embarcar e atravessar Atlântico sem a certeza sequer de chegar vivo na outra margem. Ao cruzá-la, deveriam esquecer suas origens e entregar-se à servidão.
Mas a estratégia não funcionou. “Os laços que ligam o Brasil e África são mais profundos que o oceano que os separa”, declarou Lula em momento de poesia. Com crescimento econômico notável, a África pretende agora mostrar sua vitalidade em forma de arte e cultura. Convidado de horna do evento, o Brasil é ainda responsável pela articulação com outros povos latino-americanos.
Segundo Lula, Abdoulaye Wayde tem sido um importante elo entre o Brasil e o continente negro. Já o presidente do Senegal fez elogios menos contidos: – Lula fez a opção de estreitar as relações entre Brasil e a África. Ele é um dos maiores políticos dos tempos modernos. Está lutando por uma causa planetária.
O evento em dezembro já tem presença confirmada de nomes Steve Wonder, Gilberto Gil, Manu Dibango e Nelson Mandela. Segundo Zulu Araújo, presidente da Fundação Palmares, o Brasil deve levar cerca de trezentos artistas, através da publicação de editais para diversas áreas. No lançamento em Salvador, além de Gil, apresentaram-se Margareth Menezes, Carlinhos Brown, Balé do Senegal, Mawa Kouyate, Filhos de Gandhi, entre outros.
Antes das apresentações, houve ainda uma homenagem à Capoeira com a apresentação de um selo comemorativo sobre o jogo. A estampa reproduz a obra “Vadiação” do artista plástico Carybé, cujos trabalhos estavam expostas no Museu de Arte Moderna da Bahia durante o mês de maio. Em seu discurso, Lula relembrou que a prática foi permitida oficialmente apenas nos 40 por Getúlio Vargas.
África vitruviana
A importância da cultura negra já fora discutida na II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora, que há três anos teve vez também em Salvador. O evento deu fôlego à ideia do ?renascimento africano?, hoje tema do Festival. Durante o lançamento, Abdoulaye afirmou que espera que o FESMAN não seja “apenas uma festa musical e de expressão artística, mas uma ocasião de mostrar que os negros estão envolvidos em uma cultura que ultrapassa a distância geográfica”. O clima de integração deu asas à imaginação do líder senegalês: – Senegal está na ponta extrema do ocidente da África. Se a teoria da deriva continental estiver certa, Recife e Dacar se encaixam.
Fundamental neste Festival, a participação brasileira foi nula nas outras duas edições. A última ocorreu em Lagos, Nigéria, no ano de 1977. O tema: ?Civilização Negra e Educação?. Já a primeira fora realizada na mesma Dakar que sediará os eventos deste ano. Em 1966, aquele encontro pôs em pauta a “Significação da Arte Negra na Vida do Povo e para o Povo”.
E, se hoje discutem o renascimento africano, muito se deve àquele pioneiro que idealizou o Festival Mundial de Artes Negras. Mantendo a comparação, Léopold Sédar Senghor seria como o Da Vinci do ressurgimento negro. Ao menos, é o que poderiam dizer alguns de seus entusiastas, como Lula, Wade, Jacques Wagner, governador da Bahia, e outros políticos presentes na inauguração do III FESMAN.
No lugar do famoso homem vitruviano do italiano, o senegalês Sédar desenhou um continente. Poeta e político, Léopold lançou as sementes do panafricanismo já nos anos 30. E o solo não poderia ser mais fértil. Antes de se tornar o primeiro presidente do Senegal, Senghor fora o primeiro africano a completar a licenciatura na Universidade de Sorbornne, na França que por séculos colonizou o seu país de origem.
Lá, suas atividades foram diversas. Teve contato com movimentos artísticos locais, como o simbolismo e o surrealismo de Breton, e difundiu, ao lado de Aimé Césarie, o conceito de negritude, englobando os valores e posições dos negros independente de fronteiras nacionais. Porém, nem tudo foram flores na França. Na Segunda Guerra, Léopold foi preso pelo exército alemão e enviado a campos de concentrações nazistas. Solto em 42, intensificou sua participação política e foi eleito deputado na Assembléia Nacional Francesa.
Com a proclamação da independência do Senegal em 1960, Léopold Senghor assumiu o cargo da presidência, no qual permaneceu por vinte anos. ?Naquela década, Léopold iniciou o movimento que deu a origem à União Africana?, comentou Jacques Wagner na solenidade do fim de maio. Nos anos 80, o pensador tornou-se o primeiro africano a ter uma cadeira na Academia Francesa. Por estes e outros pioneirismos, Senghor é prova histórica que o renascimento africano já avançava muito antes de ter como ícone o rosto pop de Obama.