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Quilombolas de São Francisco do Paraguaçu reúnem-se com dirigentes da FCP para denunciar ameaças de fazendeiros
Uma comissão formada por quilombolas, advogados e colaboradores da comunidade de São Francisco do Paraguaçu esteve hoje (15/01) na Fundação Cultural Palmares para denunciar abusos e ameaças que fazendeiros da região vêm praticando contra a população local há mais de um ano.
A visita foi motivada depois que seu Altino Daruz e dona Maria das Dores Correa, quilombolas de São Francisco, morreram em virtude do desgaste provocado pelo constante constrangimento e ameaças que sofriam dentro da própria comunidade. Dona Maria faleceu ao ser intimada a comparecer à delegacia da cidade para prestar esclarecimentos por um suposto crime de ameaça e dano, segundo denúncia de um fazendeiro. Já seu Altino não resistiu ao receber a notícia de que a justiça o obrigou a deixar sua casa e sua terra, mesmo tendo vivido por mais de 50 anos no lugar.
A advogada Emília Teixeira, da Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR), que apoia e defende os direitos quilombolas, explica que muitos fazendeiros “têm produzido denúncias caluniosas, indo à delegacia inventando fatos e crimes, o que gera um enorme desgaste para a comunidade, uma vez que os quilombolas devem se apresentar à delegacia. Há também as denúncias caluniosas de crimes ambientais no Ministério Público”, explicou.
Na manhã desta quinta-feira, o presidente da FCP, Zulu Araújo, juntamente com a chefe de gabinete e todos os diretores da Fundação Palmares, recebeu a comissão para discutir algumas ações que podem ser colocadas em prática a fim de solucionar a difícil situação da comunidade quilombola.
Dentre as denúncias ouvidas pelo presidente Zulu, uma relata que os fazendeiros – situados próximos às áreas certificadas pela FCP desde 2005 e pertencentes aos quilombolas – estão indo pessoalmente e armados nas casas das principais lideranças negras, fazendo intimidações e ameaças para forçá-los a abandonarem as terras. Não só essa prática de abusos e ameaças é preocupante, mas houve relatos também de que a Polícia Militar da Bahia atuou de forma irregular, fato confirmado por relatório produzido pela Polícia Federal, a pedido da AATR.
Como a maior parte dos quilombolas denunciados é de idosos, eles têm muita dificuldade para se deslocar, sem contar que, como a maioria vive naquelas terras desde que nasceu, acabam por se sentir ofendidos por terem que comprovar sua história de vida. Como explica Crispim dos Santos, membro da comunidade, “seu Altino viveu mais de 50 anos lá, mas no relatório da justiça foram registrados apenas dois anos. Essas coisas deixam a pessoa muito triste, deprimida. É uma injustiça”.
Após ouvir todos os membros da comissão, o presidente da FCP sugeriu algumas atividades para defender a comunidade. Dentre elas: produzir um documento com todos os fatos citados na reunião, para que seja levado a audiência com o juiz federal que cuida do processo do conflito de terras entre quilombolas e fazendeiros; visitar a comunidade e reunir-se com dirigentes locais para dar conhecimento da situação; buscar apoio a fim de resolver o problema; e conceder garantias à segurança da comunidade.
Zulu Araújo também afirmou que a Palmares irá atuar de forma mais intensa na região, promovendo atividades que dêem mais visibilidade às manifestações culturais e às tradições da comunidade, para mostrar que há, sim, uma tradição quilombola no local.
Entenda o conflito
Desde 2005, quando houve o reconhecimento da comunidade como remanescente quilombola pela FCP, os conflitos com os fazendeiros da região se intensificaram e a comunidade foi alvo de diversas formas de violência, como: destruição das roças, dos barracos e da sede da associação; invasões de residência pela polícia; restrições ao trânsito dos comunitários; ameaças de morte, além de perseguições armadas. Segundo denúncia dos quilombolas, em vários desses atos os fazendeiros contaram com a colaboração de agentes públicos e policiais militares.
Uma das famílias que disputam a terra com os quilombolas ingressou com ação de reintegração de posse na comarca de Cachoeira, respaldada por um título de propriedade datado de 1904. A Justiça Estadual acatou o pedido do fazendeiro e concedeu a liminar ordenando que os quilombolas desocupassem suas terras tradicionais. A Polícia Militar chegou a realizar algumas ações visando cumprir a ordem judicial.
A Fundação Cultural Palmares e o Ministério Público Federal saíram em defesa dos quilombolas e suscitaram conflito de competência, ou seja, consideraram que a matéria não poderia ser julgada pela Justiça Estadual. Assim, em maio de 2006, o processo foi remetido para a Justiça Federal. Com a mudança do juízo competente, os quilombolas tinham a esperança de que houvesse um julgamento mais isento e em acordo com as disposições constitucionais. No entanto, a juíza federal havia mantido a decisão liminar da Justiça Estadual. Essa determinação só fez agravar e tornar mais freqüentes investidas contra a comunidade que colocam a vida e a subsistência dos quilombolas em risco real e iminente.
Com o passar do tempo, pouca coisa mudou. Após denúncias da Rede Globo de Televisão, em 2007, sobre supostas irregularidades na emissão de certificados de comunidades quilombolas por parte da Fundação Palmares, um novo conflito surgiu. A reportagem da TV não revelou a verdade da situação das famílias que residem no local há mais de séculos.
Os moradores da região afirmam que a área filmada pela rede de tv não faz parte do território de São Francisco do Paraguaçu. O desmatamento em questão estaria localizado na beira da estrada, antes do povoado de Santiago do Iguape, distante do início da área pleiteada pela comunidade. “Extraímos da floresta a piaçava, o dendê, a castanha, e tantos outros produtos. Extraímos tantos tipos de cipós diferentes que usamos para fazer cofos, cestos e inúmeros outros artesanatos aprendidos com nossos avôs. Nós amamos a floresta e a defendemos”, afirma um dos moradores.
Na época, os fazendeiros aproveitaram-se disso para ingressar com uma ação visando suspender o procedimento de titulação das terras realizado pelo Incra em favor dos quilombolas. Conseguiram que o processo de titulação esteja parado até hoje.
Segundo o relatório da antropóloga Carla Dutervil, a comunidade depende diretamente dos recursos naturais para a sua sobrevivência e acabou por desenvolver formas próprias de relações com o ambiente, que viabilizaram uma convivência harmônica com o ecossistema. “Os reais impactos ambientais já comprovados no território de São Francisco do Paraguaçu foram obras de fazendeiros da região, que aterraram mangues, provocaram erosão com a construção de estradas e derrubaram a floresta para criação de gado”, afirma. “Com tom disfarçado de ambientalista, o real objetivo da reportagem foi defender a manutenção dos interesses da aristocracia agrária do Recôncavo Baiano. De fato, o que está ameaçada é a liberdade de uma comunidade que viveu secularmente na sombra do patrão, se acostumou a servir e está presa por relações de exploração clientelista”, completa.
Sobre a comunidade
A comunidade remanescente de quilombo de São Francisco do Paraguaçu localiza-se no município de Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Na local, cerca de 300 famílias vivem da agricultura de subsistência, da pesca e da coleta de marisco e do extrativismo da piaçava.
No antigo refúgio de escravos também podem ser encontradas diversas manifestações culturais seculares, como a capoeira, o congo, o samba de roda e o maculelê, dentre outras tradições.
Além da participação no Conselho Quilombola do Vale e Bacia do Iguape, os comunitários estão organizados na Associação dos Remanescentes do Quilombo São Francisco do Paraguaçu – Boqueirão.
Marcus Bennett – ACS/FCP