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Presidente da Fundação Palmares escreve sobre importância de Conceição Evaristo ocupar cadeira na ABL
Não me canso de falar que embora os afro-brasileiros representem mais da metade de nossa população, tal estatística não se reflete na ocupação dos principais postos de nossa sociedade. É assim nos poderes do Estado, nos cargos de direção de empresas públicas e da iniciativa privada, nas universidades, na produção cinematográfica e em tantos outros ambientes.
Na Academia Brasileira de Letras (ABL), o panorama não muda. Com todo respeito a esta instituição fundamental para a nossa literatura, faz-se necessária uma reflexão. Ainda que um de seus fundadores tenha sido um negro, Machado de Assis, um de nossos cânones literários, contam-se nos dedos os afro-brasileiros que ocuparam cadeira na instituição. Mulheres negras não tivemos nenhuma.
Esta circunstância ocorreu por falta de talentos negros em nossa literatura? Com certeza, não. No passado e no presente, existem inúmeros exemplos de mestres neste ofício: de Lima Barreto, que por sinal se candidatou, sem sucesso, duas vezes a uma cadeira na ABL, a Carolina de Jesus, que venceu as maiores dificuldades da vida para registrar uma obra que emana emoção e retrata a desigualdade social na qual o povo negro permanece. Cento e trinta anos após a Abolição da Escravidão, com a Lei Áurea, continuamos à margem de direitos e poucas compensações obtivemos por mais de três séculos no cativeiro.
Eis que temos oportunidade histórica de transformar esta fotografia branca e masculina da Academia Brasileira de Letras com a candidatura de Conceição Evaristo à cadeira de número 7, deixada vaga com a morte do cineasta Nelson Pereira dos Santos. Exemplo de vida, Conceição saiu de uma comunidade muito pobre de Belo Horizonte, onde nasceu, em 1946, para se tornar doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Trata-se de um grande exemplo de superação em um país onde até hoje sofremos com o racismo e suas consequências: exclusão social, com a falta de acesso a serviços básicos; somos as maiores vítimas da violência, o que confirma o Atlas da Violência 2016; sofremos com o preconceito no dia a dia; as comunidades remanescentes de quilombos não conseguem a titularidade de suas terras; e muito ainda precisa se fazer para termos mais negros nas universidades, como professores e alunos, mesmo com a adoção nos últimos anos da mais do que positiva política de cotas, também válida para os concursos públicos.
Recentemente, confesso que me emocionei ao ver uma entrevista de Conceição para o canal Globo News, dizendo que algumas vezes quando vai pagar uma compra, a vendedora lhe pergunta se ela sabe escrever. Vejam só: alguém questionando uma das nossas maiores escritoras se ela consegue assinar seu nome! Muito triste, mas, ao mesmo tempo, inspiração para uma trajetória de luta que nunca se encerra.
Mais do que um exemplo de conquista para o povo negro e para todos os brasileiros, Evaristo circula com maestria pelo conto, pelo romance, pela poesia e pelo ensaio. Em 2015, conquistou o prestigiado Prêmio Jabuti, que dispensa comentários.
Dona de estilo próprio, que ela mesma chama de escrevivência, Conceição Evaristo cria seus textos a partir da própria vivência de mulher negra, sob um regime de exceção, e desmistifica personagens afro-brasileiros folclorizados pelo colonizador branco como submissos, indolentes e de sexualidade exacerbada. Em livros como Ponciá Vicêncio, Becos da Memória e Insubmissas Lágrimas de Mulheres não cabem idealizações e sim o sentimento de dor de um lado e de orgulho de quem não se curva ao peso do preconceito de outro.
Para reconhecer uma das nossas principais autoras contemporâneas ainda em vida e democratizar a presença do negro nas instituições culturais de nosso país, a Fundação Cultural Palmares (FCP), instituição vinculada ao Ministério da Cultura (MinC), engrossa o coro na mobilização nacional para que Conceição Evaristo ocupe a cadeira de número 7 na Academia Brasileira de Letras. Seu talento lhe confere legitimidade para isso. Que a igualdade racial deixe de ser um mito e se propague por todos os setores do país, inclusive na cultura e na literatura.
Para refletirmos, termino com estes belos versos da própria Conceição Evaristo:
Da língua cortada,
digo tudo,
amasso o silencio
e no farfalhar do meio som
solto o grito do grito do grito
e encontro a fala anterior,
aquela que emudecida,
conservou a voz e os sentidos
nos labirintos da lembrança.
Erivaldo Oliveira, presidente da Fundação Cultural Palmares (FCP)