Notícias
Kalunga do Vão do Moleque: uma comunidade amedrontada
Texto e fotos: Jacqueline Freitas – ASCOM/FCP/MinC
O município de Cavalcante, em Goiás, recebeu em maio a visita de uma comitiva com o objetivo de verificar a possibilidade de conflito iminente, vivenciada pelas comunidades remanescentes de quilombo do Vão do Moleque e Engenho II, localizadas no maior território quilombola do Brasil, o Kalunga. A força-tarefa foi composta por representantes do Departamento de Ouvidoria Agrária e Mediação de Conflitos do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Fundação Cultural Palmares, IBAMA, Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado de Goiás, Polícia Militar Ambiental do Estado de Goiás, Prefeitura Municipal e Secretaria de Igualdade Racial de Cavalcante e Polícia Federal.
O trabalho começou com uma reunião na Secretaria de Igualdade Racial de Cavalcante, na qual lideranças quilombolas reiteraram a denúncia contra ameaças e intimidações que a comunidade do Vão do Moleque vem sofrendo por pessoas ligadas à Fazenda Bonito, instalada dentro do Sítio Histórico Kalunga, e à empresa de empreendimentos imobiliários que vem demarcando as terras da Fazenda. Durante a reunião foi estabelecido o roteiro de trabalho de campo – quando, antes mesmo de o sol nascer, a equipe partiria rumo ao Vão do Moleque, onde o acesso é difícil, mas a paisagem compensa. Vale lembrar que o Sítio Histórico Kalunga está encravado na Chapada dos Veadeiros, cujo Parque Nacional é reconhecido pela Unesco como Patrimônio Natural Mundial.
Irregularidades
O conflito agrário tem origem no fato de o suposto proprietário da Fazenda Bonito ter demarcado sua reserva legal na área onde residem alguns quilombolas, que assim ficam impedidos de plantar, colher e criar animais para sua subsistência. Com isso se estabeleceu um clima de tensão e insegurança geral, pois a construção da cerca limita as áreas que os kalunga exploram há várias gerações, com sua agricultura tradicional e criação de pequenos rebanhos e animais domésticos.
Nem bem a equipe chegava no Vão do Moleque, constatava uma primeira irregularidade: a cerca da Fazenda está sendo construída com madeiras nobres, protegidas por lei. Numa série de visitas casa a casa para colher depoimentos, especialmente dos moradores de áreas limítrofes à Fazenda, os relatos de cerca de 10 famílias foram praticamente unânimes – em junho do ano passado, os quilombolas começaram a ser intimidados por empregados do empresário João Batista Fernandes do Nascimento, inclusive com armas por eles sistematicamente exibidas, alguns vestindo uniformes de camuflagem similares ao do Exército.
Em 22 de abril último, em audiência realizada na Ouvidoria Agrária Nacional, em Brasília, o empresário alegou que as armas de seus empregados são usadas na caça. Eva Carvalho, uma das lideranças do Vão do Moleque, questiona: “Se ele diz que aqui é área de proteção, como então pode usar armas para caçar?” Eva questiona também a legalidade da documentação de propriedade da Fazenda, ao que a secretária da Igualdade Racial de Cavalcante, Lucilene Rosa – que é kalunga – completa: “Nós não sabemos se o que ele alega é verdade, é preciso apresentar documentos que ele não apresenta, e mesmo assim não seria ele a fazer a demarcação da fazenda, até porque está dentro de um território quilombola titulado”.
Em seu depoimento, Eva espontaneamente confirma a ilegalidade quanto à cerca da fazenda: “Ele proíbe a gente de cortar madeira, e a gente sabe quais as que são proibidas e quais as que podemos tirar para fazer nossos telhados. Mas e ele, tem o direito? E ele tira até as proibidas pra fazer a cerca!”. Também aponta o que considera dois pesos e duas medidas: “Tem o caso de um kalunga que responde a processo por ter tirado madeira pra fazer enxada e palha pra construir seu telhado. E o fazendeiro, faz o que quer?”
Outra irregularidade, ouvida informalmente de algumas crianças: elas relataram que são contratadas para empreitadas e diárias, o que, embora desconheçam, configura crime de exploração de trabalho infantil. A comunidade se sente ameaçada e com medo. As crianças, segundo Eva, estão traumatizadas: “Qualquer pessoa que se aproxime, elas pensam que está armada”.
Conflito iminente
A comitiva encerrou a visita na sede da Fazenda Bonito, onde conversou com o gerente Felipe Machado Lopes. Ele afirmou que uma parte da cerca, acima da área dos kalunga, estava para ser concluída em breve, e que logo em seguida daria início à delimitação da área de reserva legal. O problema é que, nesse ponto, a cerca passará a 10 metros do curral de uma das famílias e próximo a residências de outras, o que pode acirrar o conflito.
Da visita resultaram algumas providências imediatas, entre elas a verificação, junto ao sistema de licenciamento da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos de Goiás, da averbação da reserva legal da propriedade Fazenda Bonito, e se as posses da comunidade Kalunga estão em áreas de reserva legal, proteção permanente e proteção de mananciais.
Na avaliação de Miriam Ferreira, gerente de projetos da Diretoria de Proteção ao Patrimônio Afro-brasileiro da Fundação Cultural Palmares, “trata-se de um conflito já instaurado, e se não houver agilidade para a efetiva regularização fundiária do Território Kalunga e a desintrusão dos pretensos fazendeiros, esse conflito poderá ter consequências imprevisíveis”.