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Fundação Palmares é sucesso na Fliporto
O tema da Fliporto – Trilhas da diáspora em África e América Latina – contribuiu enormemente para o interesse das centenas de pessoas que se acercavam diariamente do estande da Fundação Palmares à procura de material de divulgação.
A redescoberta da África e sua literatura provocou um sentimento de africanidade nos participantes da Fliporto. A Fundação Palmares também foi um pouco responsável por esse sentimento. Sua presença no evento foi uma experiência enriquecedora e teve papel fundamental na difusão das manifestações culturais afro-descendentes, principalmente pelo lançamento do Observatório Afro-Latino. A iniciativa da Palmares de lançar o Observatório foi bastante elogiada, por disponibilizar um eficaz instrumento de diálogo permanente com as comunidades negras da América Latina e pela intensificação das ações com os países africanos, em particular os de língua portuguesa, na busca de fortalecer as raízes comuns.
Interação entre os povos
“Essa iniciativa é qualquer coisa muito louvável”, disse a escritora moçambicana Paulina Chiziane, que se mostrou surpresa pelo trabalho da Fundação Palmares. “Todo movimento de possibilidade de intercâmbio com outros escritores só pode fazer bem”, ressaltou. Ela, que conheceu o Brasil pelos livros de Jorge Amado (declara que leu todos), pela música e pelas telenovelas, afirmou seu enorme interesse pelo Brasil, “por aquilo que é africano no Brasil”.
Segundo ela, o discurso de dominação foi sempre o de eliminar o outro, por isso a iniciativa da Fundação Palmares de lançar um site para promover a interação entre povos é de um significado enorme. “A minha esperança é que esse instrumento sirva para valorizar e respeitar o outro”, disse.
Considerada a primeira romancista de Moçambique, por seu livro Balada de Amor ao Vento (1991), o que ela simpaticamente nega, “sou apenas contadora de estórias, não romancista”, Chiziane tem também uma história no Brasil para contar. Segundo ela, a sua avó era uma pessoa muito triste. Chiziane cresceu ouvindo os lamentos da avó. Só depois de grande veio a saber o motivo daquela tristeza: a avó tinha seis irmãos que foram levados não se sabe para onde por um bando de homens armados, embora a escravatura já tivesse terminado. Nunca mais se soube notícias deles. Ao chegar a Porto de Galinhas e tomar conhecimento da história do lugar – porto de escravos trazidos clandestinamente da África – Chiziane ficou tocada e teve um sentimento singular e se perguntou se não foi para esse lugar que trouxeram seus parentes. “Isso me ligou a esse lugar, além do calor humano, típico dos países africanos. Me sinto em casa”, declarou.
Paulina Chiziane, desde jovem, é militante política e feminista. Lutou contra o imperialismo e o colonialismo. Mas veio a guerra civil, que destruiu o seu país. É desse país devastado, da miséria, da superstição, da religião, da morte que tratam suas obras. Iniciou-se na literatura ouvindo histórias dos mais velhos, principalmente da avó, à volta da fogueira. É também pelos seus livros que ela denuncia o sofrimento das mulheres africanas, região marcada por valores machistas. Já publicou cinco livros. Niketche: uma história de poligamia (Prêmio José Craveirinha, 2003), é o único publicado no Brasil.
Um lugar na história
O jornalista, professor de Comunicação Política e Sociologia da Comunicação e escritor angolano João Melo também louvou a iniciativa da Fundação Palmares em criar o Observatório Afro-Latino. Para ele, é uma ferramenta muito importante, pois as novas tecnologias permitem construir redes bastante dinâmicas, que permitem disseminar informações, quebrar barreiras, superar preconceitos por conta do desconhecimento.
De acordo com Melo, é uma iniciativa bastante útil, pois “estamos vivendo momento singular em que a diáspora africana tem a oportunidade de assumir o protagonismo na história”. Participar da Fliporto foi, para ele, oportunidade interessante para partilhar idéias, divulgar novos autores. “Leitores do mundo inteiro estão à procura de ouvir novas vozes”.
Na sua avaliação, o Brasil é uma porta de acesso internacional importante e cita que semelhanças históricas, antropológicas e sociais entre Brasil e Angola podem facilitar esse intercâmbio. Ele conta que há cerca de dez a vinte anos, a África corria o risco de sumir da história por um processo de banalização. Hoje, a globalização, com todos os seus defeitos, pode dar a oportunidade certa para que a literatura africana comece a despertar interesse.
Melo cita a eleição de Barack Obama também como uma oportunidade para esse protagonismo. Para ele, a eleição de Obama é um fato, antes de tudo, simbólico e passível de todos os tipos de apropriação – cada um interpreta como quer. “Sendo ele negro, filho de pai africano, pode contribuir com um maior protagonismo da África na cena internacional, até mesmo no sentido de ajudar os africanos a realizarem discussões sobre a sua identidade”.
Filhos da pátria, livro de contos, é o único livro do autor, de uma safra de quinze, publicado no Brasil. A obra já recebeu três menções honrosas, duas no Prêmio Sonangol de Literatura e uma no Prêmio Sagrada Esperança, ambos em Angola. Como jornalista, Melo recebeu, em 2008, o Prêmio Maboque de Jornalismo, a maior distinção do jornalismo angolano.
Abraço atlântico
Médico de profissão, o cabo-verdiano Samuel Gonçalves abraçou a literatura e já com a publicação de seu primeiro romance, Chinho e Colixo, foi contemplado com o Prêmio de Literatura (2003) do Instituto Marquês de Valle Flor, instituição de Lisboa. Ele conta que seu país, Cabo Verde, tem dez ilhas, nove são habitadas, mas existe uma 11ª Ilha, que é a diáspora. São mais habitantes fora do país que dentro. Ele próprio já morou no Brasil para se especializar em sua área.
Durante a Fliporto, Samuel Gonçalves ouviu a palavra África ser muito pronunciada, “o que significa aproximação entre esses dois continentes”. Na sua opinião, este evento é o caminho mais curto para que haja o abraço atlântico. “Por razões históricas, sociais e geográficas, achamos que o povo de Cabo Verde e os brasileiros, principalmente os nordestinos, são irmãos, separados pelo mesmo mar, mas que deve ser encurtado, em eventos como este, para que haja um abraço atlântico mais apertado”.
De acordo com Gonçalves, temos tudo dos irmãos africanos, a gastronomia, a fala e a mesma idiossincrasia. Para ele, Zumbi dos Palmares é semelhante a Amílcar Cabral, que lutou pela independência de Guiné e Cabo Verde. Quanto à iniciativa da Fundação Palmares em criar o Observatório Afro-Latino, o escritor reconhece que “a globalização da cultura deve ser apoiada, para que esses povos que sofreram na pele o colonialismo tenham o conhecimento de que não houve apenas o colonialismo português”. Para ele, a palavra colonialismo não tem raça, nem cor e envolveu quase todos os continentes.
De acordo com ele, a criação do Observatório pode provocar “a aproximação de nossos povos, na receptividade do conhecimento de nossa cultura, de nossa geografia e do nosso eu”. Gonçalves faz uma ressalva quanto à contribuição que o governo Lula deu para a valorização da cultura negra. “Lula conseguiu deixar a valorização da cultura negra mais evidente, esse nosso valor, nosso conhecimento do povo negro, seja qual for a sua geografia. Ele difundiu isso para o mundo”. Gonçalves cita a iniciativa do presidente Lula de lançar a primeira pedra fundamental para a criação do laboratório de medicamentos contra a aids em Moçambique. “Obra humanitária que o mundo civilizado deve seguir. Uma obra de um homem próprio como Lula, que sentiu na pele o que é ser discriminado”.
A construção de uma Nação
Escritor mais jovem a receber o prêmio Camões pelo conjunto de sua obra, o angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, conhecido como Pepetela, faz da sua literatura uma profunda análise do seu país a partir da temática da construção da nação. Militante, lutou contra o colonialismo, ingressando nas fileiras do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Sua obra é impregnada pela história de seu país, que, logo depois da guerra de independência contra Portugal (1961-1975), viveu uma longa guerra civil que durou 27 anos.
Segundo Pepetela, um dos mais importantes autores de língua portuguesa, apesar da independência dos países colonizados, o sonho por uma sociedade mais justa e mais livre ainda permanece. E como os europeus nunca conseguiram perder o complexo civilizador, criticam os países que conquistaram a sua independência por não andarem tão depressa. Mas isso depende de muitos outros fatores. Ele conta como se organizou a sociedade angolana. Embora ainda haja miséria e altas taxas de analfabetismo, há alguns bons exemplos, um deles é a cota destinada a mulheres na política – mais de 35% do parlamento são mulheres e na mesma proporção os cargos do poder Executivo são ocupados por mulheres. Na discussão do tipo de sociedade que se almeja, Pepetela coloca que a forma de organizar a sociedade e a vida política tem a ver com a cultura.
De acordo com Pepetela, que, depois da independência de seu país, chegou a exercer o cargo de vice-ministro da Educação, o Observatório Afro-Latino, apresentado pela Palmares, é muito importante, pois no fundo é um prolongamento do espírito da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). “É importante que o contato seja direto, sobretudo criar grupos de estudos nos diferentes domínios, para encontrar as semelhanças e também as diferenças”, sugere.
O escritor também coloca a questão revolucionária de Angola como um exemplo de libertação a ser seguido por outros povos e na qual se reflete que tipo de sociedade nós queremos ter. E, segundo ele, o movimento negro brasileiro deu o seu apoio incondicional, e continua apoiando, a luta dos angolanos pela sua independência. Ele, que declarou ter aprendido e aberto os olhos para a vida e para o seu país por intermédio da poesia de Marcelino dos Santos, afirma que a literatura marca os passos dessa afirmação de um projeto de nação que vai se consolidando: “O papel da literatura não é apresentar soluções, mas levantar questões”. Então, a sua expectativa em relação ao Observatório é que seja uma generalização dessas experiências com práticas mais permanentes.
Referência cultural nos países de língua portuguesa, Pepetela conta que há um projeto histórico comum – Na rota dos escravos – entre Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Brasil, com a intenção de tentar descobrir aquilo que está encoberto – o tráfico de pessoas. “É preciso escavar esse passado e encontrar os equívocos; buscar essas populações separadas pelo mar”, diz.
Acreditando na utopia
Fica decretado que agora vale a verdade./ agora vale a vida,/ e de mãos dadas / marcharemos todos pela vida verdadeira. Thiago de Mello, o poeta amazonense que se autodefine “comprometido com a vida”, diz que nutre um profundo respeito pela Fundação Cultural Palmares. “A Fundação Palmares persegue propósitos e objetivos que têm a ver com a condição humana, respeita a grandeza e a dignidade humana e livra o Brasil de uma chaga”, depõe ele.
Thiago de Mello denuncia a hipocrisia do Brasil em relação ao preconceito racial – “a Lei Afonso Arinos é desrespeitada escandalosamente”. Mas ele acredita na utopia – “o amor pode um dia ajudar a construção de uma sociedade humanitária e solidária”. Sua opinião em relação ao Observatório Afro-Latino é de que este instrumento pode contribuir para a luta contra o preconceito racial praticado no Brasil. “Metade dos brasileiros tem sangue negro. Embora a tecnologia avance, grande parte do povo desconhece a cultura afro. A dança, a música, o teatro têm suas raízes na cultura negra”, diz.
“Não tenho um caminho novo. O que eu tenho é um jeito novo de caminhar” é uma das célebres frases do poeta, que serve de mote para a sua observação sobre a proposta da Fundação Palmares em criar um site com o objetivo de integrar os povos afro-descendentes. Disse ele: “O Observatório está servindo à grande causa da revolução da cidadania negra. Está servindo à natureza humana que se inclina para o bem e para a beleza. E a Fundação Palmares está servindo às grandes causas e deve condenar a falsidade de que não há preconceito racial no Brasil”.
Poesia e identidade negra
A poesia de Conceição Evaristo é voltada para a memória e a identidade negra. Ela própria é uma sobrevivente do processo social que insiste em eternizar a condição escrava do negro. Testemunha da opressão de classe, gênero e raça, Conceição Evaristo leva esperança em sua poesia. Eu-mulher em rios vermelhos / inauguro a vida. / Em baixa voz / violento os tímpanos do mundo.
Autora do romance Ponciá Vicêncio, sucesso editorial, Conceição Evaristo mostrou-se bastante satisfeita ao saber da existência do site Observatório Afro-Latino. “Não só interessante, como necessário”, disse ela. Seu testemunho é de que no Brasil temos pouco conhecimento da literatura dos países de língua portuguesa e de nossos vizinhos da América Latina. “Temos mais referência da literatura da Europa e dos Estados Unidos, do que a de nossos vizinhos.”
“O que sabemos dos movimentos negros na Argentina ou em Cuba?”, pergunta ela. Então, se o Observatório for um instrumento para dar visibilidade às questões da diáspora, do que há em comum, na sua opinião a iniciativa é válida. “Cada país tem uma história diferenciada, mas quando se trata da história dos africanos vê-se que há muitos pontos em comum. É possível então haver uma troca bastante fértil em todos os campos do saber”.
Para ela, a Fundação Cultural Palmares, sendo um órgão que representa a cultura afro-brasileira, deve estar cada vez ocupando esses espaços para poder abrir caminho para divulgar os trabalhos de pesquisadores. “Muitas vezes a própria academia desconhece essa produção e a Fundação Palmares pode ter esse papel de fomentar a produção acadêmica voltada para as questões afro-descendentes, além de possiblitar a divulgação e o intercâmbio com organismos internacionais”, propõe ela.
Fome de poesia
Convidada a falar sobre seu pai, Solano Trindade, o grande homenageado da Fliporto, Raquel Trindade brindou a todos com a sua irreverência para mostrar aos participantes o quão rica é a poesia de Solano.
Ela confessou sua surpresa com a possibilidade de estar ali cantando a poesia do maior poeta da resistência negra brasileira. Segundo disse, uma das coisas mais importantes que ouviu durante o evento foi o pronunciamento do presidente da Fundação Palmares, Zulu Araújo, ao apresentar o Observatório Afro-Latino. “Só quem acompanha o trabalho que a Fundação vem desempenhando nesses vinte anos é que sabe que se trata de uma proposta séria. Isso servirá para apoiar e levantar a auto-estima do povo negro, principalmente do artista negro”, disse.
A sua expectativa é de que o Observatório possa crescer ainda mais e que possa incluir todas as áreas do conhecimento, principalmente o teatro do negro.
Vozes para não esquecer
A poesia de resistência marcou grande parte da programação da Fliporto. Muitos poetas vieram para debater qual o papel da poesia na luta pela libertação dos povos e na construção das nações.
Marcelino dos Santos, político e poeta moçambicano, deu um depoimento contundente a respeito do que a poesia pode representar. Para ele, a poesia está sempre presente, quer queira ou não, antes, durante e depois de qualquer processo social. “Se a poesia tem ação sobre a sociedade, a sociedade reage sobre o indivíduo”. Para ele, a força maior é a individual, que dirige nossos passos, mas a poesia tem esse papel de intervenção, pois “está sempre embebedada do real, em cada momento”.
Preocupado com a realidade do povo, seja de que país for, o poeta declama: “É preciso construir o tempo presente com a beleza da nossa vontade coletiva. A Justiça e a pureza existem dentro de nós e temos que ter capacidade de propor caminhos de paz”. Para ele, a verdadeira tarefa do poeta é manifestar os sentimentos presentes em cada época.
Sua poesia fala de libertação e da possibilidade da mudança. Para ele, que é ainda hoje considerado como uma das vozes mais significativas da afirmação da libertação do povo moçambicano, o mundo imposto ao homem negro é injusto e sua voz se levanta, como no seu mais conhecido poema: É preciso plantar / nas estrelas / e sobre o mar / nos teus pés nus e pelos caminhos / é preciso plantar / nas esperanças proibidas / e sobre as nossas mãos abertas / na noite presente / e no futuro a criar.
Para falar do Observatório Afro-Latino, Marcelino diz que é preciso retirar o que é útil da globalização. “O fato de eu poder falar daqui para Moçambique é belo, mas devo saber bem o que devo dizer, sistematizar a informação, para que ela não seja desvirtuada. Então, é preciso ter cuidado com a maneira como utilizamos esses instrumentos. É preciso vigilância constante sobre os conteúdos”, relata.