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Exemplo centenário de restauração ambiental foi protagonizado no Brasil por escravos negros
O presidente da FCP, Eloi Ferreira de Araujo, foi o debatedor da mesa redonda
Por Jacqueline Freitas
Eleutério, Constantino, Manoel, Leopoldo, Mateus e Maria. Estes são os nomes dos seis escravos que mudaram a história da cidade do Rio de Janeiro, ao iniciar o mais raro e bem sucedido trabalho de recuperação da maior floresta urbana do mundo.
Há 150 anos, completos no final de 2011 – portanto, muito antes de sediar uma mobilização mundial em torno da preservação do planeta – a cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, assistia à recuperação daquela que hoje é seu principal patrimônio ambiental: a Floresta da Tijuca.
Este acontecimento histórico foi relembrado durante a Rio+20, na mesa redonda “O reflorestamento da Tijuca: modelo de restauração da natureza”, que teve como debatedor o presidente da Fundação Cultural Palmares, Eloi Ferreira de Araujo. O assunto foi apresentado por Carlos Alberto Xavier, do Ministério da Educação, e Carlos Fernando Delphin, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), contando ainda com a participação de Vitor Ortiz, secretário executivo do Ministério da Cultura.
Para ilustrar o debate, foi exibido o documentário Floresta da Tijuca, idealizado pela atriz e cineasta brasileira Norma Bengell. O filme foi apresentado pela primeira vez durante a Eco 92, a segunda grande conferência promovida pelas Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento humano, que também aconteceu no Rio de Janeiro. Vinte anos depois, o documentário permanece atual, pelo seu conteúdo histórico e alertador.
Um pouco de História
A Devastação – A fundação da cidade do Rio de Janeiro, em 1565, deu início a uma intensa procura por madeira, para ser utilizada em construções e como combustível. Os vales e as meias encostas eram desmatados, transformados em engenhos de cana-de-açúcar e ocupados com construções.
O desmatamento tornou-se mais acelerado com a chegada de pés de café – o que, segundo Carlos Alberto Xavier, denota que o ciclo do café teria de fato começado no Rio de Janeiro. Nos arredores da cidade e principalmente na Tijuca, lugar preferido para os cafezais, derrubava-se a mata de forma desenfreada, para plantar mais e mais cafeeiros nos morros e encostas.
A extração visava também o comércio de lenha e carvão, combustíveis cuja demanda aumentaria com o progresso proporcionado pela chegada da família imperial portuguesa ao Brasil.
Naquela época, já se falava na defesa da vegetação para proteção dos mananciais de água, pois também já se sabia que o desmatamento de margens e nascentes prejudicava os rios. Desde o tempo da Colônia e até o fim do Império, o Rio de Janeiro foi abastecido com a água dos mananciais das montanhas, cujos cursos eram canalizados para pontos onde se instalavam torneiras e chafarizes.
Escassez de água – Com o abastecimento cada vez mais escasso, o governo regulou a extração vegetal. Em 1844, depois de vários anos de secas, a situação se agravou. Para uma população de 400 mil pessoas, necessitando de 60 milhões de litros d’água por dia, os encanamentos da cidade produziam apenas oito milhões.
Os mananciais da cidade estavam seriamente ameaçados, o que levou Dom Pedro II a emitir ordens expressas de rigorosa ação policial contra os desmatamentos. O poder dos cafeicultores, no entanto, resistia à lei. E se de fato nunca faltaram medidas preventivas e punitivas, também é verdade que nem sempre eram obedecidas, porque o café da Tijuca rendia gordos impostos ao Tesouro.
A única forma eficaz de salvar os mananciais da região foi desapropriar todas as terras, sítios e fazendas e desenvolver um ousado e ambicioso projeto de reflorestamento, nunca antes realizado na América Latina. A partir de 1854, iniciaram-se as desapropriações, e em 1861 um decreto do Imperador criou a Floresta da Tijuca.
Seu primeiro administrador foi o major Archer, que teria tirado de sua própria fazenda as primeiras mudas para o replante, além de buscar mudas nativas em fazendas vizinhas e matas virgens do litoral sul da cidade. Assim, foi sem qualquer objetivo turístico ou de lazer que a criação – na verdade, a recriação – da Floresta ocorreu.
Heróis negros – Todo este trabalho hercúleo coube, de início e em grande escala, aos seis escravos de Archer. Eleutério, Constantino, Manoel, Leopoldo, Mateus e Maria, a cozinheira do grupo, eram, naturalmente, detentores de um profundo conhecimento empírico. Este, inclusive, foi um dos aspectos mais exaltados por Carlos Fernando Delphin durante a mesa redonda. Em sua opinião, “só conhece a terra quem coloca a mão nela, e esse conhecimento era atributo dos negros escravizados”.
Carlos Alberto Xavier compartilha da ideia e defende que os seis escravos do major Archer deveriam ser reconhecidos como os verdadeiros heróis deste episódio da História. Para Eloi Ferreira, o valoroso trabalho destes seis personagens é mais um fato que evidencia e reforça a inegável contribuição dos povos negros para nossa História e cultura.
A empreitada na Floresta da Tijuca consagrou o Brasil como o primeiro país a implantar a silvicultura com espécies mistas, em um esforço que ao final resultou em cerca de 100 mil árvores replantadas. O segundo administrador do local, o Barão de Escragnolle, inseriu outras milhares de mudas, com algumas espécies exóticas e uma preocupação mais paisagística, transformando a Floresta da Tijuca em parque para uso público. Em 1991, a Floresta da Tijuca foi declarada Patrimônio Natural Mundial pela UNESCO, como Reserva da Biosfera.
Parque Nacional da Tijuca – O parque que abriga a Floresta mantém seu importante papel na preservação da qualidade de vida da cidade do Rio de Janeiro. Ajuda a prevenir a erosão das encostas, a reduzir a poluição e a preservar as fontes de água. Ali se podem percorrer várias trilhas, visitar grutas e cachoeiras, e conhecer pontos turísticos famosos, como o Corcovado e a Vista Chinesa.
O Parque Nacional da Tijuca abrange uma área de aproximadamente 40 km². Além da Floresta da Tijuca, onde fica o Pico da Tijuca, segundo ponto culminante da cidade, com 1.022 m de altitude, o Parque compreende a Serra da Carioca, o Morro do Corcovado, a Pedra Bonita, a Agulhinha da Gávea e a Pedra da Gávea. Localizada no coração da cidade, separando a Zona Norte da Zona Sul, a poucos minutos da maior parte dos bairros do Rio, a Floresta da Tijuca pode ser percorrida a pé, de bicicleta, de motocicleta ou de automóvel. Ou pode ser apreciada de longe, verde e majestosa, graças ao esforço de seis quase anônimos heróis negros.