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Etarismo e machismo: desafios da mulher negra brasileira
Texto de Silvia Cerqueira
O etarismo negro é mais uma face de violência social que, conjugado com o sexismo e o racismo latentes, transvestidos de ancestralidade contemplativa, visa condenar a mulher negra idosa a um não lugar. Indo aos conceitos, etarismo significa o preconceito em razão da idade, e se desenvolve de maneira transversal, portanto na perspectiva de gênero, raça e classe social.
Essas discriminações estabelecem — de maneira perversa — quem fica no público e no privado e quem é visto ou identificado como mais ou menos capaz e inteligente. No caso brasileiro, o exercício dos papéis sociais é influenciado pela origem escravista diverso da condição biológica a que todos estamos afeitos, e que não justificam, tampouco explicam as discriminações. Ou seja, o que precisa ser enfrentado são as construções, a partir de aprendizados nefastos e inverídicos, que distorcem o alcance dos reais atributos dos seres humanos.
Mencionemos a clássica afirmação de Simone de Beauvoir, a respeito de que ninguém nasce homem ou mulher, mas, se torna socialmente. Creio que podemos cunhar uma metáfora semelhante para a percepção etária. A Revista Brasileira de Enfermagem, no estudo Papéis Sociais de Gênero na Velhice: O Olhar de Si e do Outro, por meio do entendimento de Labourie Locoh, avaliou que o conceito de gênero tem a ver com as diferenças biológicas de sexo acompanhadas das diferenças de status, de papéis, de responsabilidades e do lugar dos homens e das mulheres em todos os setores e níveis da sociedade.
Desse modo, observando o significado da variante de gênero, neste século, ser mulher coloca a pessoa em posição de subalternidade que, agregado à cor da pele confere a marca de inferioridade, deixando-a muito mais vulnerável. Nesse contexto, a mulher negra e idosa — caso houvesse a possibilidade de o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) acrescentar uma categoria específica — se situaria abaixo da pirâmide social, considerando esse recorte, como por exemplo no que diz respeito ao mercado de trabalho.
Os resquícios do processo de escravização, infelizmente, permanecem impondo efeitos danosos. O histórico demonstra que, por meio da aquisição das cartas de alforrias, a exemplo da, hoje, reconhecida primeira advogada do Brasil Esperança Garcia, algumas libertas almejavam construir laços familiares e escolher parceiros para compartilhar a vida.
Como narram Cavalcante e Sampaio, citados por Mary Del Priore, no day after, entregues as próprias sortes e destinos, essas mulheres ingressaram no trabalho informal, na condição de quituteiras, ganhadeira, vendedoras, lavadeiras, no trabalho doméstico como antigas amas, posteriormente mães de leite, atuais bás ou babás. Hoje, o trabalho doméstico vem sendo sublimado por meio das leis trabalhistas, conferindo direitos, cujas violações não param de acontecer, carecendo sempre de atenções voltadas para a fiscalização diuturna e exigência do cumprimento da lei, com vistas a garantir a aplicação dos fundamentos insculpidos na Constituição Federal de 1988.
Essa situação de exclusão se repete quanto ao nível de escolaridade. Tais discriminações impactam nos bancos escolares, cujo déficit para os idosos estabelece um apartamento abissal, contribuindo para a construção do racismo geracional. Com o tempo foi se estruturando um "não lugar" para as negras e idosas, resultando numa situação de vulnerabilidade extrema, em razão do gênero, da idade, da cor da pele e da classe social que coincidem com a redução da sua capacidade laborativa e intelectual, como consequência da condição de vida diferenciada, imposta pelas desigualdades vivenciadas que a sociedade relegou.
O preconceito de gênero e raça determina os papéis das pessoas na sociedade de forma a atribuir os papéis de homens e mulheres, negros e brancos, jovens e idosos, ricos e pobres, de forma a naturalizar essa condição, conferindo às mulheres um distanciamento e invisibilidade quase que intransponíveis. Quanto às mulheres negras e idosas, convêm tomar a expressão utilizada por Bourdier de violência simbólica, suave, invisível e insensível, cujo reconhecimento ancestral se encarrega de limitar o seu lugar.
A virada de chave vem com a evolução do pensamento, das leis e a crescente luta pela transformação do sistema de justiça para que haja segurança dos direitos que nos garantem minimamente as regras básicas de cidadania e deveres fundamentais e, nesse sentido, são as leis que podem ofertar ao povo mecanismos para efetivar direito. E mais importante que tudo: o povo e as leis não devem retroceder.
Texto:Opinião - Correio Braziliense - Silvia Cerqueira - Conselheira Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)
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