Notícias
Construindo novos caminhos para repensar o ser negro
Professora jogando o Afriquei com as crianças. Jogo inventado por ela para incentivar a cultura afro
Dissertação de mestrado estuda utilização da literatura afro-brasileira em escolas públicas
Até que ponto a referência da literatura africana e afro-brasileira contribuiu como recurso pedagógico às crianças para a produção de conceitos sobre ser negro?
Foi com essa indagação que a professora cearense Geranilde Costa e Silva resolveu iniciar uma pesquisa para sua dissertação de mestrado. O tema: O uso da literatura de base africana e afrodescendente junto a crianças de escolas públicas de Fortaleza.
Tendo em vista também que as obras sobre cultura e história afro ainda são escassas e insuficientes no mercado editorial brasileiro, a professora buscou contribuir com os ideais da lei 11.645/08 – que institui o Ensino da História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena nos ensinos fundamental e médio – e se propôs a desenvolver o uso de várias formas de linguagens, como desenhos, pinturas, slides, contação e produção de histórias. Além disso, foram criados três jogos que abordam uma visão de mundo africana, sobre orixás e personalidades africanas e afrodescendentes.
Conforme explicou Geranilde, a finalidade foi aliar a pesquisa e a intervenção na escola para que seu trabalho fosse um espaço de contribuição para o processo de formação dos professores, “o que permitiu a fomentação de metodologias que propiciam a inclusão no currículo escolar desse referencial de base africana”, disse.
Pesquisa – O trabalho de dissertação foi realizado entre setembro de 2007 e janeiro de 2009, sendo que a primeira etapa – as observações junto aos alunos de escolas públicas sobre o modo como eles viam a cultura afrodescendente – ocorreu entre setembro de 2007 e fevereiro de 2008. Já a segunda etapa, das intervenções com as brincadeiras, jogos e contos de histórias com a finalidade de ampliar a visão sobre ser negro das crianças aconteceu entre setembro de 2008 e janeiro de 2009.
A professora conta como surgiu a idéia: “Em 2005, durante a realização de uma tarefa de História, com crianças da 2ª série, entre 8 e 9 anos, li um texto em que o autor apresentava um menino branco que se considerava rei do futebol. Como atividade, foi sugerido aos alunos que se desenhassem como pessoas da realeza. Nesse momento fui surpreendida por uma menina afrodescendente me dizendo não existir rainhas negras. Respondi que muitas delas moravam em outros países. Ela retrucou revelando nunca ter visto rainha negra nem mesmo na televisão. Para minha surpresa uma outra criança afrodescendente interveio com a seguinte frase: ´A gente pode ser aquilo que a gente quiser, não é tia?´. Ao final da atividade, verifiquei que a maioria das crianças negras se desenhou como pessoas da realeza e outras ainda incluíram a família.”
Assim, na primeira etapa da dissertação, Geranilde diagnosticou as visões e práticas que estudantes e docentes manifestam em relação à questão racial. Nesse momento, contou-nos: “Percebi primeiro, o silenciamento por parte da escola em torno dos conflitos étnico-raciais, levando as crianças vítimas de preconceito racial a promoverem agressões físicas e verbais na tentativa de solucionar esses conflitos. Por outro lado, as docentes reconhecem que têm dificuldades para diferenciar manifestações racistas de simples brincadeiras infantis, tão pouco sabem lidar com os conflitos étnico-raciais presentes no cotidiano escolar”.
Em outra fase da pesquisa, as professoras foram convidadas a se aproximarem da literatura africana e afrodescendente na expectativa de que, coletivamente, professora e pesquisadora elaborassem metodologias capazes de promover a inserção desse referencial literário em sala de aula. “Uma vez em contato com essa literatura as professoras perceberam muitas fragilidades conceituais em sua formação, o que as levou a resistir em participar do momento das intervenções junto às crianças temendo passar informações preconceituosas e erradas sobre os povos africanos e seus descendentes”, observou.
Outra confirmação foi em relação ao grande desconhecimento por parte dos alunos sobre a temática da negritude. Mas, segundo a professora, “todos se mostraram interessados em se aproximar desses conteúdos, buscaram questionar aquilo que não entendiam e participaram das atividades propostas”.
Resultados – No final, o resultado foi surpreendente. Geranilde conseguiu comprovar que a utilização de material didático especializado foi fundamental para que as crianças tivessem novas opiniões e idéias sobre o negro. “Foi possível verificar que alunos e professoras produziram novos conceitos, ressignificados positivamente, sobre o ser negro”.
Primeiro, a professora percebeu que os alunos se referiam à África como um lugar pouco habitado, sem edificações, sem equipamentos tecnológicos, assolado pela fome, com muitos animais e árvores. Já com a realização da situação de pós-teste – onde as crianças foram convidadas a produzirem pinturas coletivas sobre a África – foi possível verificar que houve de fato alterações no modo como elas concebiam esse continente, pois houve a pintura de casas, edifício, postos de saúdes, carros, igrejas e com muitas pessoas. “Durante as apresentações dos cartazes pela turma um menino, ao apresentar o cartaz que havia pintado revelou: Tia, tudo que tem lá tem no Brasil, tem carro, futebol, as africanas e piscina!”.
Com a realização da segunda situação de teste, onde a turma produziu histórias utilizando personagens afros e brancos foi possível constatar que elas utilizaram atores nomeados negros e morenos. “Considero um avanço, pois ao iniciar essa investigação as crianças se declaravam morenas, mas afirmavam que chamar alguém de negro era um caso de racismo. Nessa atividade, também foram atribuídos aos personagens negros lugares sociais de destaque como os de professores, médicos, costureiras, cantores, atores e atrizes, o que considero representativo da produção de novos conceitos positivos sobre o ser negro”, comemora.
Geranilde relata que foi possível perceber de um modo geral, no que consiste à etnia das crianças, que elas ainda se autodeclaravam como morenas. “Creio que ainda com o desejo de se distanciarem de sua ancestralidade africana e assim evitarem possíveis conflitos étnicos raciais, mas por outro lado, também houve uma criança que assumiu ser negra, fato que considero de extrema relevância, uma vez que essa postura pode representar a marca de um ser negro positivado a partir do estudo dessa literatura”, complementa.
Por fim, como última atividade da pesquisa, a professora solicitou que tentassem explicar: o que é ser negro? As repostas foram as melhores possíveis: “É ser amigo; é ser amoroso; é ser estudioso; é ter liberdade, é ser inteligente”.
A satisfação também ocorreu junto às professoras que participaram do projeto. Uma delas falou com empolgação: “Esse ano, quando eu for dar aula de História para meus alunos, eu já vou falar em sala o que aprendi, que a África era rica! Que tinha rei e rainha e, por isso, hoje os Maracatus estão aqui em comemoração. Por que tem rainha no Maracatu? Para representar as rainhas deles lá. Na minha sala de aula, esse ano, eu já vou poder falar! No livro não tem, mas eu vou falar! Eu vou falar de tudo que eu vi e aprendi. Eu vou falar daqui do Ceará, que foi o primeiro Estado a libertar os escravos”.
A pesquisa de Geranilde foi aprovada com louvor pela banca examinadora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará devido ao seu caráter inovador, criativo e de ineditismo. Agora, por conta dessas experiências bem sucedidas, o trabalho foi indicado para publicação.
Os professores das escolas públicas também manifestaram grande interesse em participar da pesquisa de doutorado, que Geranilde pretende iniciar em breve. Por meio de uma pesquisa-ação, os professores irão estudar primeiro, a cultura afro-cearense; depois, farão a inclusão desse conteúdo no currículo das escolas; até chegar ao último momento, quando deverão aplicar esse currículo no ensino aos alunos.
Marcus Bennett – Assecom/FCP/MinC