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Back2Black: Estação da negritude
Os conferencistas, mediados por Glória Maria, na abertura oficial do festival internacional sobre cultura negra
O teor do debate que abriu oficialmente o Back2Black ilustra o pano-de-fundo do festival: as interseções e os limites entre os conceitos de liberdade, direitos humanos, cidadania, valor econômico, dignidade, democracia; o lugar ocupado pelo simbólico e pelo que se considera como concreto – ou substantivo – na construção do social; as relações instituintes entre teoria e prática; e, finalmente, a cor da pele como molde/referência destes campos e esferas de conhecimento e ação.
– Na América, se você não for branco, você não é livre.
A fala do escritor nigeriano Chris Abani abre passagem para a discussão sobre um dos maiores males da humanidade: o racismo – seus condicionantes e determinantes. Preso vários vezes, aos dezesseis anos de idade, por escrever o que pensava sobre as perversidades infligidas ao seu povo, Chris Abani teve que se exilar em Londres, mudando-se, posteriormente, para os Estados Unidos, onde vive e exerce sua militância, como professor da Universidade da Califórnia. Uma voz, portanto, autorizada.
A operação do racismo a partir da intrincada relação entre cor da pele e condições socioeconômicas é exposta pela platéia, em forma de questionamento: por que um festival que se propõe a valorizar e refletir sobre a cultura afrodescendente é economicamente inacessível aos negros – a maioria mundialmente dominada, e, portanto, maior interessada nos fazeres e saberes que circulam pelo festival? A senha-argumento é emitida pelo presidente da Fundação Cultural Palmares:
– Essa contradição não nasceu aqui. Ela é permanente. Está na estrutura das relações sociais do País. E não se consegue superá-la com um programa, ou projeto.
A fala sem ingenuidade de Araújo parte de um “entrelugar” – a difícil zona da mediação, ou do confronto entre o necessário e o possível; os saciados e os famintos. Ele esboça o contexto que permite uma compreensão mais ampla da questão: o valor agregado negativo de um País com irrisório tempo de democracia continuada (18 anos) e longo período de escravidão (380 anos), soando como recado aos que tentam atribuir a dívida contraída pelos escravocratas aos poderes que a estão administrando.
DESCONFORTO – A segunda edição do Back2Black ocorre, necessariamente, dentro dessa zona de desconforto, autenticando o apoio dado ao projeto pela Fundação Cultural Palmares, que tem entre seus objetivos promover o debate sobre o conjunto de dificuldades que impedem o pleno exercício da democracia. Dificuldades que, como pontua Zulu, parte significativa da elite socioeconômica do Brasil quer resolver por meio de extermínios.
Bastante aplaudido pela platéia, Araújo expôs, ainda, a limitação do campo teórico frente à emergência das demandas socioculturais. “Não é a teoria que qualifica os direitos humanos, ou a democracia, mas o seu exercício”, diz, apontando a necessidade de vincular o conceito de cultura à teia construída pelos palestrantes, a partir de “nós” categorizados como poder econômico, dignidade, cidadania, liberdade, direitos humanos, democracia.
ABUSOS – Mãe solteira de três filhos, vítima de “todo tipo de abuso”, Joyce Banda é um exemplo de superação, expresso por sua atual posição sociopolítica: é vice-presidente do Malawi, país africano com baixos índices de desenvolvimento humano. Ela aposta na educação como instrumento de “desenvolvimento intelectual, social e emocional”. Além da atuação como autoridade pública, mantém uma fundação, que coloca em prática processos não-formais de educação.
Zulu Araújo, uma vez mais, estabelece a ponte entre a realidade africana e a brasileira, acusando o autoritarismo de nossa educação formal e reafirmando a importância da inserção do valor cultura nas reflexões sobre direitos humanos, de modo ampliado e associado ao respeito à diversidade – incluindo a religiosa. “Estamos vinculados a uma matriz religiosa cristã que discrimina e considera demoníaco, satânico, tudo o que se relaciona com a religiosidade de matriz africana” – sintetiza.
Lições do Haiti Um dos expositores da noite, o sociólogo Rubem César brindou os presentes com fragmentos de histórias sobre o Haiti, a partir da experiência da ONG Viva Rio naquele “pedaço da África na América”. No curto depoimento, a evidência da imagem distorcida que chega aos brasileiros, e que coloca os haitianos no lugar dos bárbaros, dos sujos, dos indignos. Símbolo do estupro, o Haiti pós-terremoto exibe dados que apontam para a perversidade das construções identitárias: os campos de refugiados do país produziram, até a presente data, três casos de abuso sexual, contra um percentual de 7% a 14% que as escolas da rede pública de ensino produzem, nos Estados Unidos da América, o país-símbolo da democracia, da liberdade, do respeito aos direitos humanos Dentre outras “desconstruções”, Rubem desautorizou a relação linear entre fator econômico e (in)dignidade, demonstrando como os haitianos cultivam valores como honra e respeito dentro de um contexto de extrema pobreza e privação de recursos de toda ordem, usando muita criatividade, como a empregada no acordo de paz firmado entre facções rivais de extensas áreas do país. Para enfrentar a violência letal entre moradores de 14 bairros, por exemplo, os haitianos firmaram um acordo no qual são sorteadas bolsas de estudo para crianças e jovens, caso não haja mortes violentas nas áreas em conflito, dentro de determinado período de tempo – evidência de uma relação não tão evidente entre a violência simbólica da falta de oportunidades e as manifestações de violência física. |
Outros eventos Ainda durante o Back2Black, a Palmares promoveu o lançamento do vídeo Expresso Brasil na Copa e de duas publicações importantes sobre a cultura afro-brasileira – O negro na TV pública, organizado por Joel Zito Araújo, e 25 anos do Movimento Negro no Brasil, de Januário Garcia. Os eventos aconteceram no estande-vagão da Palmares, um criativo espaço montado na Estação Leopoldina, e no qual o público pode conhecer um pouco o trabalho da Fundação, por meio de fotografias e publicações. |
SERVIÇO
O quê: Seminário Direitos Humanos e Sociedade Civil
Onde: Estação Leopoldina, Rio de Janeiro
Contexto: Parte da programação do Back2Black, festival internacional sobre cultura negra
Quando: Dia 27 de agosto de 2010 (o seminária); e de 27 a 29, o festival.
Conferencistas: Chris Abani, escritor nigeriano; Joyce Banda, vice-presidente do Malawi; Rubem César, diretor da ONG Viva Rio; e Zulu Araújo, presidente da Fundação Cultural Palmares.
Mediadora: Glória Maria