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DIÁSPORA AFRICANA
6ª Conferência aprova “Carta de Salvador”
Clima de congraçamento, entusiasmo e união na plenária que aprovou a “Carta de Salvador”
O segundo dia (30) da 6ª Conferência da Diáspora nas Américas foi de intenso debate, com “rodas de conversa” sobre pan-africanismo, memória, reconstrução, restituição e reparação – além de reuniões paralelas sobre temas diversos.
Divididos em quatro grupos de trabalho, os participantes aprofundaram questões relacionadas ao tráfico e à escravização de povos africanos, bem como às condições de seus descendentes, em diferentes nações da diáspora.
Ao final dos trabalhos, foi aprovada a “Carta de Salvador”, com recomendações para superar os efeitos perversos do escravismo – além de propostas de fortalecimento do movimento pan-africanista e de resgate da(s) memória(s) dispersa(s) pela diáspora.
A Fundação Cultural Palmares contribuiu significativamente para os debates, com destaque para o tema do pan-africanismo, que contou com a participação direta do presidente João Jorge Rodrigues e de um ex-presidente da instituição, Zulu Araújo.
Orientadas por textos-base e mediadas por especialistas e ativistas, as discussões estenderam-se por todo o dia, desaguando na plenária que aprovou a carta. A seguir, extratos das rodas de conversa que compuseram o documento.
Pan-africanismo
Um bom conceito para o pan-africanismo, proposto por Richard Santos, é processo. Processo de restauração da soberania política, econômica e cultural da África e de seus povos, tendo como valores liberdade, justiça, unidade, orgulho e dignidade.
É uma convergência das lutas travadas ao longo dos séculos pelo fim da escravidão, do colonialismo, do apartheid. Lutas travadas nos quilombos brasileiros, pelos insurretos do Haiti, nas revoltas dos Marrons.
É também a confluência de correntes que buscaram dar conta da articulação dos povos sequestrados, escravizados e espalhados pelo mundo: o movimento “Retorno à África”, o “Etiopianismo” e o “Pan-negroísmo”.
O pan-africanismo foi articulado por intelectuais de diferentes nações, no início do século XX, como o sociólogo Du Bois e o ativista jamaicano Marcus Garvey. No Brasil, o nome que mais identifica o movimento é o de Abdias Nascimento.
Ao longo das décadas, o pan-africanismo foi sendo reconfigurado, em função de afinidades ideológicas. Hoje, o imperativo é absorver exigências do século XXI, como a inclusão da maioria minorizada (caso do Brasil), a luta por reparações, a reafirmação da soberania africana.
É também fortalecer a filosofia ubuntu – palavra que, no idioma zulu, significa “eu sou porque somos”, o que, no âmbito do movimento, se pode traduzir por interdependência e unidade para o desenvolvimento integrado da África e de seus povos.
Como contribuição para a “Carta de Salvador”, o grupo de trabalho sobre o pan-africanismo propôs, entre outras coisas:
- fortalecer o movimento do século XXI, pautado pela filosofia ubuntu e caracterizado pelo compromisso com o humanismo e pelo reconhecimento da unidade e circularidade cultural, espiritual e linguística entre os povos africanos e a diáspora – esta, composta por comunidades emigradas e pelas populações de origem africana radicadas em países de outros continentes;
- transversalizar os ideais do pan-africanismo e da filosofia ubuntu nos esforços de reparação e de reforma de instituições internacionais, bem como na gestão de políticas públicas dos Estados, por meio do aumento da representatividade de países africanos em organizações e foros internacionais.
Moderadores da roda: Layla Brown e Zulu Araújo
Texto-base: Richard Santos
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Memórias
Oriundos de diferentes nações do continente africano, os povos negros foram dispersados pelo mundo – com eles, suas memórias. Memórias que formam uma espécie de colcha de retalhos, como conceituaram os autores do texto-base.
E esse complexo quebra-cabeças, ou código cultural, precisa ser decifrado e compartilhado, para que as mentiras contadas sobre o(s) povo(s) negro(s) sejam desmascaradas, e eles possam se reconhecer e resgatar sua força.
Os desafios são tão grandes quanto o continente africano, com suas múltiplas identidades, etnias, modos de vida, religiosidades, idiomas, organizações sociopolíticas, formas de expressão artístico-culturais.
E uma questão que se coloca como central no debate é como identificar quais africanos(as) se encontraram em quais partes da do mundo – ou da diáspora – e criaram formas culturais que refletem suas origens.
É importante, como pontuado, saber quais negros foram levados de onde na África para onde no mundo atlântico, “para que se identifique as semelhanças e as conexões com outros(as) africanos(as) e afrodescendentes com base em raízes comuns”.
Enfim, o que se deseja é a formação de uma consciência pan-africana de orientação ubuntu, “uma consciência e uma identidade conectadas em geografias mundiais por múltiplas memórias africanas manifestadas em formas culturais que caracterizam a civilização planetária”.
E, para tanto, se propõe, entre outras coisas:
- fortalecer e organizar circuitos acadêmicos, educacionais, culturais e políticos de diálogo e celebração da história compartilhada entre as populações africanas e a diáspora;
- oferecer mais investimentos internacionais públicos e privados para pesquisas e atividades de preservação e divulgação do conhecimento sobre a história e a memória pan-africana, em particular sobre as conexões históricas entre a diáspora e o continente africano, com ênfase na influência de grupos étnicos e linguísticos específicos.
Moderadores: Gina Paige e Vilma Reis
Texto-base: Sheila Walker, Helena Theodoro e Thula Pires
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Reconstrução
Conhecer o passado para melhor construir o futuro – um exercício “contracolonial de compreensão do continente africano e da sua diáspora, defendendo o direito dos povos à memória”.
É o proposto, a partir do texto-base, pelos debatedores da roda, como forma de permitir “a ativação de memórias coletivas, comunitárias, que instrumentalizam os sujeitos como autores de suas próprias histórias”.
E essa ativação permite o questionamento de métodos, paradigmas e linguagem da academia ocidental, “provocando outras perspectivas para a elaboração de políticas de desenvolvimento para os cidadãos do continente africano e da diáspora”.
Esse, um dos sentidos de reconstrução proposto pelos conferencistas.
Os autores e debatedores lembram que “a condição de subdesenvolvimento de muitas nações ainda é consequência da pilhagem de tecnologias, inteligência e recursos naturais e econômicos perpetrada pelas metrópoles coloniais durante séculos”.
Dentro dessa compreensão, exigem que os países que se desenvolveram a partir da exploração das nações africanas promovam ações para “restaurar a dignidade desses povos, como anistia de dívidas e transferência de tecnologias”.
Outra dimensão de reconstrução debatida na roda de conversas diz respeito à “conexão das condições materiais daqueles que estão na diáspora africana com aqueles que estão no continente africano”.
E isso, de acordo com os estrategistas, “requer uma reformulação do movimento pan-africano dentro das estruturas da economia política e do capitalismo racial global em geral, considerando os distintos operadores de segregação”.
Para tanto, é necessário que se pense a partir do paradigma afrocêntrico, restabelecendo “uma teoria do subdesenvolvimento que tenha como referência uma análise de classe dos povos africanos em escala global”.
Lembrando que “as massas africanas em todo o mundo se encontram repetidamente na base da pirâmide”, propõe-se a reconstrução não apenas no sentido cultural decolonial, mas de “transformação fundamental do Estado e da economia global”.
“O combate ao racismo precisa estar pautado transversalmente e deve considerar a interseccionalidade de gênero, classe e raça, especialmente quando mulheres estão na base das pirâmides sociais”, dizem.
E, “a fim de romper as relações de exploração históricas, num movimento em prol de um mundo livre e justo”, recomendam:
- criar políticas de desenvolvimento sustentável que prevejam estratégias de reconstrução para as nações afetadas pelo capitalismo predatório, incluindo: a reestruturação das matrizes energéticas, com desenvolvimento de fontes renováveis e seguras; produção eficiente de alimentos e programas de combate à fome e à insegurança alimentar; estratégias ampliadas de saúde que considerem especificidades epidemiológicas da diversidade dos países e permitam ações de prevenção e erradicação de doenças;
- fortalecer a cooperação internacional em projetos de cooperação educacional e acadêmica dedicados aos vínculos entre o continente africano e a diáspora, bem como em projetos e iniciativas de promoção da igualdade de gênero e de acesso digno à saúde e à habitação.
Moderadores: Brenda Foreman e Matilde Ribeiro
Texto-base: Yolian Ogbu e Miriam Reis
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Restituição e reparação
Nesse grupo, foi discutido o disposto na Declaração de Durban e seu Programa de Ação (ONU 2001). Um, reconhecendo a escravidão e o comércio de negros(as) como grandes tragédias da história da humanidade; outro, recomendando ações de reparação.
Observando também os princípios da resolução 60/147 de 16 de dezembro de 2005 da ONU, os debatedores destacaram o tema da restituição como uma dimensão da reparação, que inclui repatriação, compensação, satisfação, reabilitação e não repetição.
Debateu-se, ainda, o disposto em relatórios, cartas, declarações e outras narrativas e normas multilaterais, além da “Agenda 2063”, da União Africana, que contém um plano estratégico para o desenvolvimento econômico e social da África.
E considerando que “a reparação é um processo compensatório, pelas injustiças históricas oriundas do período de escravidão, de colonização, e que a discriminação sistêmica continua a afetar as populações afrodescendentes e africanas”, recomendou-se:
- criar fundos de reparação financiados por governos e instituições que historicamente se beneficiaram da exploração de povos africanos para a restituição de bens culturais, recursos naturais e outros patrimônios que foram destruídos ou injustamente tirados dos(as) africanos(as) e de seus descendentes, com a criação de um observatório do patrimônio material e imaterial em rede;
- por meio de fundos internacionais e nacionais, promover o desenvolvimento econômico, a educação e a saúde de africanos e afrodescendentes, combatendo o racismo institucional e a afrofobia, e promovendo a equidade racial dos povos em situação de vulnerabilidade, tanto nos países africanos quanto na diáspora;
- constituir redes de cooperação, de pesquisa e parcerias entre instituições e comunidades em diferentes países dos continentes africano e da diáspora, para compartilhar e produzir pesquisas, conhecimentos, recursos e estratégias de desenvolvimento pautadas pela filosofia ubuntu.
Moderadores: Akil Khalfani e Vanderlei Pinheiro
Texto: Barryl Biekman e Jardelina Bispo do Nascimento
Confira, no link, a íntegra da "Carta de Salvador": https://www.gov.br/igualdaderacial/pt-br/assuntos/copy2_of_noticias/carta-de-recomendacoes-da-conferencia-da-diaspora-africana-nas-americas-traz-compromisso-coletivo-com-a-igualdade/copy_of_CartaRecomendacoes_Conferencia_Diaspora_Africana_Americas_2024_PORTUGUS_FINAL1.pdf