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ELISA LARKIN
“O papel da cultura é fundamental na luta antirracista”
Elisa Larkin
Pesquisadora e guardiã do legado de Abdias Nascimento, Elisa Larkin Nascimento oferece uma análise profunda sobre a interseção entre cultura e resistência antirracista. Suas reflexões sobre o Festac 77, o maior festival de cultura negra da história, revelam o poder da cultura como uma arma fundamental da luta pela autonomia e contra as tentativas de silenciamento.
O esforço de calar Abdias durante o festival, segundo Elisa, demonstra o quanto a cultura negra, quando organizada, é vista como ameaça. A cultura não apenas resiste — ela desafia, subverte e cria espaços nos quais as narrativas impostas perdem força. Ao traçar paralelos com os movimentos negros contemporâneos, destaca que, assim como nos anos 70, o racismo se reinventa para deslegitimar as demandas por igualdade, agora sob o pretexto do "identitarismo."
Essas reflexões evidenciam o papel central da cultura como ferramenta de transformação e poder se revela de maneira incontestável. As palavras de Elisa reforçam que lembrar é resistir, e que a memória de lutas passadas se conecta às batalhas de hoje, criando um ciclo contínuo de fortalecimento da identidade negra. Leia o pingue-pongue com Elisa Larkin.
P – Sua experiência à frente da reedição de “Sitiado em Lagos” traz uma perspectiva sobre o cerco político e diplomático que Abdias enfrentou. Como essas pressões reforçam a necessidade de se reconhecer o papel da cultura na luta antirracista?
R – O fato de o regime se empenhar tanto em calar a voz do Abdias no festival de cultura já aponta para o quanto ela é importante para a luta antirracista. A cultura já é alvo de todo um aparelho repressivo que a direita empunha. Mas, especificamente quanto à cultura negra, existe uma virilidade, vamos dizer, um peso dessa repressão muito maior, pela carga de racismo. Então, o papel da cultura e da memória é fundamental na luta antirracista, porque, enquanto o povo não tiver a consciência e o domínio das suas próprias narrativas, da sua própria história, vai continuar sendo subjugado pelas narrativas impostas. Isso é uma coisa que o Abdias sempre apontou, sempre sublinhou.
P – Você acredita que há paralelos entre os desafios enfrentados por Abdias na década de 70 e os enfrentados pelos movimentos culturais negros atuais, tanto no Brasil quanto nos demais países da diáspora africana?
R – Sim, há paralelos muito nítidos entre os desafios enfrentados pelos movimentos da década de 70 e os enfrentados pelos movimentos negros atuais. Eu não separo movimentos culturais de movimentos políticos, pois, nesse caso, política e cultura são praticamente uma só coisa. Em grande parte, os desafios enfrentados estão diretamente relacionados a essa questão. A memória, o patrimônio e o legado cultural negro ainda são questões políticas pouco reconhecidas como frentes legítimas de atuação política, inclusive por alguns setores da esquerda.
Hoje, enfrentamos a acusação de “identitarismo”, que se tornou a nova forma, a linguagem atualizada, de minimizar a necessidade de buscar soluções para as desigualdades sociais. E essas desigualdades, tanto sociais quanto econômicas, precisam de soluções que considerem a personalidade, a humanidade, a expressão e a dignidade desses sujeitos, que devem ser o foco das políticas socioeconômicas capazes de combater objetivamente tais desigualdades.
A dificuldade, ou até mesmo o impedimento, de muitos setores políticos em reconhecer essa especificidade na luta por melhores condições de vida para as populações discriminadas é o mesmo desafio que os movimentos negros enfrentavam na década de 70.
P – Como a Fundação Cultural Palmares, junto a outras instituições, pode colaborar na difusão dessas histórias, especialmente em um momento de crescente consciência sobre as heranças coloniais e as lutas por justiça racial?
R – A Fundação Palmares, dentro de suas possibilidades, pode colaborar para a difusão dessas histórias junto a outras instituições, tanto governamentais quanto não-governamentais, principalmente na visibilização dessas memórias e desse patrimônio como uma questão de reparação. É fundamental que o conceito de reparação seja ressaltado nas iniciativas de divulgação e publicização desses desafios.
Ao organizar iniciativas como a Roda de Conversa Abdias Nascimento, a Fundação também desempenha um papel importante no fortalecimento das instituições do movimento negro, em uma perspectiva de aquilombamento. O aquilombamento envolve, essencialmente, a ênfase na ancestralidade, que sempre foi uma característica marcante dos quilombos ao longo da história.
Ao promover essas discussões e trazer essas memórias tanto para as instituições quanto, na medida do possível, para a sociedade, a Palmares contribui significativamente para uma maior conscientização.
P – De que modo a cultura negra, desde o teatro até a música, tem funcionado como meio para desmascarar essas ficções e resgatar a identidade afro-brasileira, funcionando pilar da resistência política e cultural?
R – A cultura negra tem um alcance muito amplo, especialmente a cultura popular, como o carnaval, o samba e a capoeira. Esse alcance vai além da própria população negra e permeia a consciência geral no Brasil. É aquela clássica situação em que, ao encontrar um brasileiro no exterior, a primeira coisa que fazem é batucar em uma caixa de fósforos ou na mesa. Ou seja, o que define a cultura brasileira quase sempre são referências da cultura africana, de origem africana, da cultura negra.
Com esse grande alcance, a cultura negra consegue desmascarar ficções e trazer uma identidade afro-brasileira mais digna para audiências maiores. No entanto, isso só acontece plenamente quando essa cultura caminha lado a lado com uma consciência formada pela resistência intelectual, ou seja, com informações, estudo e conhecimento da história. Sem esse conhecimento, por exemplo, temos casos como o filme recente sobre a Revolta dos Malês, algo que poucas pessoas conheciam. Essas referências, como Zumbi dos Palmares, precisam ser aprofundadas por meio do estudo para que, ao serem difundidas para um público mais amplo, possam exercer um papel significativo na resistência política e cultural.
É muito importante evitar cair nas armadilhas que fazem com que, em vez de criarmos marcos na história, acabemos criando marcas para venda. A cultura pode ser explorada de uma maneira que não conduza à resistência política, nem ao resgate de uma identidade verdadeiramente dignificada. Ela precisa se direcionar para linguagens e impactos diferenciados, evitando a superficialidade da bolha mercadológica.