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BOAZ MAVOUNGOU
“O Ocidente obscurece a riqueza cultural, histórica e econômica da África”
Boaz Mavoungou
Mario Shazzard, que assina suas obras sob o pseudônimo Boaz Mavoungou, nos convida a uma reflexão sobre o continente africano, um espaço onde riquezas e desigualdades coexistem em uma complexa dança. Seus escritos, caracterizados por uma crítica afiada, desvendam as contradições de um continente que, apesar de ser um dos mais ricos em recursos naturais, ainda carrega as marcas da exploração colonial.
Em “O paradoxo africano: entre riquezas e miséria”, Mavoungou destrincha as relações desiguais que perpetuam a pobreza, desnudando as estruturas coloniais e a xenocracia que mantêm milhões à margem. Sua análise vai além da superfície, celebrando a resiliência de um povo que nunca se curvou, transformando opressão em força criativa. A cultura africana, para ele, é uma ferramenta viva de subversão, que molda futuros ao romper com narrativas coloniais.
A conversa com Mavoungou não apenas revela o poder de suas reflexões, como também reforça a importância de intelectuais que, como ele, reinterpretam o passado para reescrever o presente. As culturas africanas continuam a desafiar as estruturas hegemônicas, criando histórias que celebram a pluralidade e a resistência de um povo em movimento. Leia trechos da conversa:
P – No livro “O paradoxo africano”, você faz uma crítica incisiva à xenocracia ocidental. De que maneira acredita que a narrativa dominante do Ocidente ainda influencia a forma como o mundo enxerga a África e como os africanos se veem?
R – A narrativa dominante do Ocidente continua a influenciar profundamente a percepção global sobre a África, assim como a maneira pela qual os próprios africanos se veem. O Ocidente tradicionalmente perpetuou uma visão da África centrada na pobreza, em conflitos, no subdesenvolvimento e na dependência. Essas imagens predominam na maioria dos meios de comunicação, na literatura e no entretenimento ocidental, obscurecendo a complexidade e a riqueza cultural, histórica e econômica do continente.
A história africana, em grande parte contada por estudiosos ocidentais, frequentemente marginaliza ou distorce a contribuição do continente para a civilização global. A consequência do monopólio midiático dessa monocultura globalista é um distúrbio de identidade em várias camadas etárias da população africana, apesar do esforço interno e diaspórico de resgatar a identidade originária cultural e civilizacional da África.
Hoje em dia, essas narrativas dominantes vêm sendo cada vez mais desafiadas por intelectuais, artistas e líderes africanos, que estão reformulando a visão de seu continente. Eles buscam recontar a história africana sob uma perspectiva autêntica e ressaltar as conquistas e potencialidades que o discurso dominante ocidental frequentemente minimiza.
P – Ao explorar o contraste entre as vastas riquezas naturais da África e a persistente pobreza, como você enxerga o papel da cooperação internacional e dos países africanos na construção de um futuro mais justo para o continente? Quais iniciativas recentes você destacaria como exemplos de transformação?
R – A cooperação internacional deveria ser baseada em parcerias igualitárias e benefícios mútuos. Para potencializar a eficiência dessa cooperação, a transferência de tecnologia, investimentos em infraestruturas sustentáveis e a criação de condições favoráveis ao comércio justo e à industrialização local são vitais. A cooperação Sul-Sul, ou seja, entre países africanos e outras nações em desenvolvimento, também tem mostrado potencial, ao não repetir os erros das dinâmicas coloniais de dependência e exploração.
Mas, é preciso entender que o sistema que tornou o continente o maior provedor de matérias-primas, que alimenta a indústria ocidental, condenando os africanos a consumir importações onerosas, para sustentar a polarização económica globalista, talvez não esteja preparado para aceitar tranquilamente essa emancipação histórica.
P – Sua obra celebra a resiliência das comunidades africanas, mas também apresenta as dificuldades que elas enfrentam. Como você, pessoalmente, encontra equilíbrio entre a crítica às injustiças e a esperança de um futuro melhor? Em sua opinião, como a arte e a cultura na África e no Brasil podem ser agentes de transformação social e resistência?
R – Alcançar o equilíbrio entre a crítica às injustiças e a esperança de um futuro melhor é um exercício constante de reflexão e compromisso. Pessoalmente, acredito que reconhecer as dificuldades e desigualdades que as comunidades africanas e afrodiaspóricas enfrentam é fundamental para gerar consciência e mobilização.
O processo de crítica é necessário para expor os erros, denunciar as estruturas de opressão e, mais importante, para provocar mudanças, pois o primeiro passo para encontrar uma solução é mensurar o problema.
Enquanto isso, há uma grande esperança, alimentada pela celebração das histórias de superação, das tradições preservadas, das inovações culturais e da união das comunidades em torno de sua identidade e suas lutas. A esperança também se encontra nos movimentos que vêm surgindo em todo o continente africano e nas comunidades afro-brasileiras, desafiando narrativas opressivas e construindo novas realidades.
A arte e a cultura, são meio de expressão cuja eficácia não precisa mais ser comprovada em termos de transformação das perspectivas gerais de uma sociedade. Essas duas forças são excelentes para o resgate da identidade e da memória de um povo. Elas servem também como instrumentos de protesto e resistência. Vemos isso em manifestações culturais como o rap e o samba no Brasil, que frequentemente abordam temas de injustiça social, e nas várias expressões artísticas que emergem das lutas africanas por independência e autodeterminação.
São excelentes veículos de educação e conscientização, pois através da arte e da cultura, é possível educar as novas gerações sobre as lutas passadas e presentes, ao mesmo tempo em que se promove uma consciência crítica sobre o papel que a história colonial e suas repercussões ainda desempenham nas realidades atuais. Não iremos esquecer que elas erguem pontes e solidariedade, ajudando a fortalecer laços entre África e sua diáspora, promovendo um intercâmbio cultural que enriquece ambos os lados, enquanto expõe a luta comum por justiça e igualdade.
Meu objetivo é celebrar a força e grandeza civilizacional das nossas raízes, enquanto critico o que ainda precisa mudar. Juntando as energias positivas, seremos capazes de mover sociedades inteiras em direção a um mundo mais equitativo, um mundo cujo inimigo é a desigualdade.
P – Como autor que transita entre diferentes culturas e realidades, tanto africanas quanto brasileiras, de que maneira as lutas e conquistas dos países da diáspora africana pelo mundo podem contribuir para a emancipação e o fortalecimento das nações africanas? E como você vê esse processo em comparação com as lutas históricas e contemporânea no Brasil?
R – A diáspora africana tem desempenhado um papel vital na promoção e defesa da identidade africana, tanto no nível local quanto internacional. Há século que afrodescendentes têm resistido às tentativas de apagamento cultural e têm reafirmado sua herança africana, por meio de movimentos de orgulho racial, como o pan-africanismo e o movimento da negritude. Essa conscientização global é crucial para desafiar as narrativas negativas sobre a África e expor as injustiças históricas e contemporâneas que continuam a impactar o continente.
A diáspora pode contribuir para essa emancipação amplificando as vozes africanas nos fóruns internacionais, e promovendo debates sobre desenvolvimento sustentável, justiça social e reparações históricas. Se adicionarmos a estas lutas a troca de conhecimento e recursos, empoderamento político e soberania econômica, e se compartilharmos nossas lutas históricas e contemporâneas, podemos criar um círculo virtuoso de colaboração, empoderamento e emancipação, tanto cultural quanto econômico.
A diáspora africana, incluindo a população afrodescendente no Brasil, é uma ponte vital entre o passado e o futuro. As conquistas e lutas da diáspora podem inspirar transformações no continente africano, trazendo novas perspectivas sobre autodeterminação, solidariedade e resiliência. Com essa troca de conhecimento, cultura e ativismo, os países da diáspora africana têm a capacidade de acelerar o processo de emancipação do continente, transformando não só as nações africanas, mas também as sociedades nas quais elas estão inseridas, como o Brasil.