Notícias
VALÉRIA LIMA
“O combate ao racismo é uma responsabilidade coletiva”
Valéria Lima
Valéria Lima mergulha na trajetória de sua avó, Mãe Hilda Jitolu, em uma narrativa que transcende a biografia tradicional e destaca a força das mulheres negras no candomblé e na luta contra o racismo. Autora de “Mãe da liberdade: a trajetória da yalorixá Hilda Jitolu”, Valéria revela uma história profundamente enraizada em ancestralidade e resistência, unindo memória familiar e rigor acadêmico.
Ela nos lembra que, desde o período da escravidão, as lideranças religiosas de matriz africana, como Mãe Hilda, desempenharam papéis essenciais na preservação das tradições e na criação de espaços de poder para as mulheres negras. O candomblé, sempre um bastião de resistência, proporciona às mulheres negras um lugar de protagonismo e força, algo que Mãe Hilda incorporou em sua liderança no Ilê Aiyê.
Neste diálogo, o trabalho de Valéria emerge como uma contribuição indispensável para a preservação de histórias que, muitas vezes marginalizadas, formam a base da identidade afro-brasileira. Ao documentar a vida de Mãe Hilda, Valéria constrói uma ponte entre passado e presente, fortalecendo a memória oral e garantindo que essas narrativas continuem a inspirar gerações futuras. Leia, abaixo, as perguntas e respostas.
P – Ao resgatar a trajetória de Mãe Hilda Jitolu, uma figura central no candomblé e no Ilê Aiyê, como você enxerga o papel das mulheres negras na preservação das tradições de matriz africana no Brasil? De que maneira essa responsabilidade de liderança religiosa se entrelaça com a luta contra o racismo e a opressão de gênero?
R – As mulheres negras desempenham um papel central tanto no combate ao racismo quanto na preservação das religiões de matriz africana. Desde o período da escravidão, com as irmandades, essa visão coletiva que as mulheres negras desenvolveram foi determinante para a compreensão da história que temos hoje.
As irmandades foram centrais nesse processo, e as lideranças religiosas de matriz africana passaram a ocupar esses espaços, não apenas preservando as religiões, mantendo as tradições e as práticas religiosas, mas também criando estratégias e reinventando caminhos para combater o racismo e garantir direitos para todos nós.
Mãe Hilda é uma figura fundamental nesse contexto, tanto na preservação das religiões de matriz africana na Bahia e no Brasil quanto em sua atuação no primeiro bloco afro do Brasil. Embora ela não tenha idealizado o Ilê Aiyê, foi Mãe Hilda quem o acolheu e tornou possível sua existência. Sua participação foi determinante para que o bloco se concretizasse.
Resgatar essa história é, na verdade, o melhor que podemos fazer. Manter essas narrativas vivas e garantir que as próximas gerações as conheçam é fundamental para nós, que fazemos parte do movimento negro e acreditamos nessa proposta e nessa configuração. Meu trabalho segue essa direção, reconhecendo a importância dessas lideranças, não apenas para minha comunidade, mas para todo o Brasil.
P – Seu livro reflete uma densa pesquisa histórica, mas também uma profunda ligação afetiva com a biografada, sua avó. Como foi o processo de conciliar a perspectiva acadêmica com a pessoal na construção dessa narrativa, e de que forma você acredita que esse equilíbrio enriqueceu o entendimento sobre a resistência cultural das comunidades afro-brasileiras?
R – Ao longo da pesquisa, busquei manter um certo distanciamento, apesar de fazer parte da família. Tentei, na medida do possível, garantir esse afastamento, para preservar uma neutralidade científica, um respeito acadêmico, por assim dizer. Embora eu não acredite na total imparcialidade científica ou acadêmica, acredito que quem somos reflete muito nas nossas pesquisas. No entanto, fiz o esforço de manter essa distância justamente para valorizar ainda mais essa história.
Tive a oportunidade, pela primeira vez, de ver a saída do Ilê Aiyê de frente, e isso mudou minha percepção. Quando se nasce em um ambiente como esse, quando você é criada nesse contexto e tem como referências familiares pessoas como Mãinha e vovô – figuras que são grandes referências políticas e culturais para quem vê de fora –, é natural que seja difícil enxergar tudo isso quando se está por dentro. Porém, ao me permitir enxergar, compreendi que, de fato, exerço um certo privilégio em comparação com outras pessoas negras deste país, por ter nascido nesse ambiente familiar, por ter acesso a essas histórias e por ter essas pessoas como minhas principais referências de vida.
Ao longo da pesquisa, mantive isso muito presente. De certa forma, tentei deixar claro na pesquisa o quanto essas pessoas são importantes para mim, mas, ao mesmo tempo, elas são minha família. Respeitei todos os ritos da pesquisa e todos os critérios acadêmicos, para garantir que o trabalho fosse verdadeiramente qualificado, atendendo às exigências da academia, sem perder de vista meu lugar como membro da família e minha relação tanto com a biografada quanto com os informantes, que são meus familiares.
No livro, abordo esse aspecto. Explico que, apesar de minhas fontes serem familiares, elas me revelaram coisas que não eram tão familiares assim. Não é porque nasci nessa família que eu sabia de todos os detalhes da vida da minha avó. Foi a pesquisa que me proporcionou a oportunidade de costurar essa "colcha de retalhos" e, assim, construir essa história, que hoje, dez anos após sua escrita, está se tornando pública.
P – O candomblé, frequentemente alvo de racismo religioso, é um espaço onde muitas mulheres negras encontram força e poder para resistir. Como você analisa o impacto do racismo na manutenção e na disseminação dessas tradições no Brasil contemporâneo, e qual foi o papel de Mãe Hilda na construção de espaços de resistência e liberdade?
R – O racismo faz parte da estrutura da sociedade brasileira. Infelizmente, em nenhum lugar deste país, em nenhuma cidade, vivemos em uma sociedade sem racismo. Ele se manifesta de várias formas. Nos últimos anos, o racismo religioso tem sido mais evidenciado. O que posso afirmar é que mulheres como Mãe Hilda, Mãe Estela, Mãe Aninha, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, e Mãe Menininha do Gantois, todas essas lideranças lutaram, cada uma à sua maneira, para combater o racismo religioso, para mostrar às pessoas que o candomblé é uma religião e que vivemos em um país laico. No entanto, apesar de termos tantas mulheres como elas, e muitas outras pessoas, lutando por igualdade em todos os aspectos, pela liberdade de culto e pela liberdade religiosa, ainda não é suficiente.
Acredito que é missão de todos nós, de todas as pessoas negras, combater o racismo. Cada um encontrará seu caminho, assim como essas lideranças, que são referências para nós justamente por se posicionarem em suas épocas. Essa missão, porém, deveria ser ampliada. É uma responsabilidade que precisa ser coletiva. Se todos nós não nos posicionarmos contra o racismo e não o combatermos — esse racismo brasileiro, que se reinventa todos os dias — não avançaremos.
P – Durante a elaboração de "Mãe da Liberdade", você se deparou com lacunas e desafios na documentação histórica da vida de Mãe Hilda e da sua comunidade. Quais foram os maiores desafios enfrentados nessa pesquisa e como você lidou com a ausência de registros formais em uma história que, como muitas outras, foi mantida viva principalmente pela oralidade?
R – Acredito que o maior desafio foi justamente construir uma pesquisa profunda e extensa, abordando a vida de uma líder em sua totalidade, desde o nascimento até sua morte, e fazê-lo através da oralidade. O que foi necessário, de fato, foi entrelaçar as diferentes narrativas que ouvi para transcrever a história e apresentá-la da melhor forma possível. Quando você ouve várias pessoas contando a mesma história, é possível identificar quais pontos realmente fazem sentido e descartar o que não faz, o que é resultado das falhas naturais da memória.
Tive muita dificuldade em acessar documentos da família. Não consegui alcançar gerações anteriores, como era o plano inicial, pois existe um descuido, um desrespeito com a história das pessoas negras neste país. Isso tornou a construção dessa pesquisa extremamente desafiadora. Por isso, costumo dizer que foi como costurar uma colcha de retalhos, com cada pedaço sendo diferente do outro, ou montar um quebra-cabeça muito difícil, daqueles com peças bem pequenas, porque, de fato, a história vai se perdendo com o tempo.
Acredito que o nosso maior desafio hoje é preservar a história das pessoas negras, já que enfrentamos um apagamento que é muito consciente. Existe um plano estratégico, por parte da branquitude, para que nossas histórias não sejam conhecidas, porque, se não temos referências, torna-se muito mais difícil seguir em frente, muito mais difícil acreditar em um futuro melhor do que o que vivemos hoje.