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“Há algo que nos unifica: a discriminação”
Mesa dos trabalhos Mauro Viery / Divulgação Palmares
Por Sal Freire
“Para além da diversão, justa e merecida, refletir sobre cultura negra no Brasil, durante as comemorações dos 22 anos da Palmares, era um imperativo”. A fala do professor Carlos Benedito Rodrigues, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), não poderia ter sido mais precisa ao posicionar o seminário A cultura negra em debate no rol de celebrações do aniversário da instituição.
Coordenado por Eliane Borges, chefe de gabinete da Fundação Cultural Palmares e doutora em Ciência da Informação, o encontro de intelectuais e pesquisadores, com a surpreendente e rica participação do público, elevou o patamar de reflexão, análise e discussão do conceito de cultura negra nos planos antropológico, social e político.
“O objetivo foi estimular a discussão sobre este conceito a partir de um intercâmbio de idéias entre sociedade civil e governo, já que a Fundação Palmares tem como missão formular e implementar políticas públicas de inclusão e desenvolvimento da população negra no Brasil por meio da arte e da cultura”, explica Eliane.
ORIGENS – E não poderia ser outra senão a própria expressão ´cultura negra´ a grande estrela da tarde. Examinada, dissecada, provada, aprovada, reprovada, em mil partes decomposta, reconstruída, significada, re-significada, definida, re-definida, identificada, re-identificada, observada em perspectiva histórica, confrontada no tempo-espaço desde a origem… Aliás, onde está mesmo sua origem? Essa concepção se fez onde e quando? Esse parto se deu por quais mães e mãos?
Dentre desse contexto, entrou em cena o debatedor Sales Augusto dos Santos, jovem professor da Universidade de Brasília (UnB), dando um xeque-mate (será?) no conceito de ´cultura negra´ com uma afirmação – “Há algo que nos unifica: a discriminação”; e três contundentes questionamentos – “Qual seria o denominador cultural comum que caracterizaria então a cultura negra? Nossa cultura é homogênea ou heterogênea? Há miscigenação cultural no Brasil?”.
SOMOS PLURAIS – As provocações causaram frisson na platéia. O artista plástico e também professor da UnB Nelson Inocêncio lançou algumas flechas: “Existe, sim, uma produção estética da população negra. Precisamos aprofundar o olhar sobre ela” […]; “percebo uma crise da arte e da cultura afro: o negro está deixando de ser protagonista em seu próprio pedaço. Precisaremos reafirmar nossa identidade?”[…]; “somos plurais, não somos só samba”.
Embora, muitas vezes, proferidas em tons fortes, afirmativos, as falas nunca “fechavam questão” – como, a propósito, deve acontecer em debates de alto nível. Para incrementar ainda mais o debate, o polêmico doutor em História e professor da Universidade Federal da Bahia Carlos Eugênio Líbano propôs – ou contrapôs – que “negro e branco são invenções históricas[1], identidades em construção, como todas as outras”.
ETNIA E RACISMO – Diz o pesquisador que “embora a ideia do que hoje entendemos por ´negro´ possa parecer eterna, ela surge no século XIV. O núcleo fundamental da identidade do negro e, consequentemente, da cultura negra no Brasil é o crioulo, o preto nascido aqui”. E complementa: “Conhecemos muito pouco a África. É importante saber que identidade étnica é diferente de identidade racial. Outra coisa necessária é ´desbrasileirar´ nosso pensamento e olhar mais para o modo como o negro se constituiu e se constitui em outros lugares”.
Analisando a questão sob outra perspectiva, o professor Alex Ratts, antropólogo da Universidade Federal de Goiás (UFG), diz que “a ideia de negro deu certo e é mundial”. O grito ainda ressoa quando, fazendo coro com o debatedor Sales, Ratts proclama: “No Atlântico Negro, onde nossos barquinhos navegam, é impossível pensar a cultura negra sem pensar na experiência do racismo”.
QUILOMBOLAS – Em um outro viés, não menos relevante, a pesquisadora Eliane Cantarino, da Universidade Federal Fluminense (UFF), expôs, durante o seminário, o trabalho realizado com comunidades quilombolas, na tentativa de apreender uma identidade originária. “A auto-atribuição de identidades étnicas tem se tornado importante nos últimos anos para o reconhecimento oficial dos territórios que as comunidades tradicionais ocupam”, explica.
A discussão de tais conceitos foi, segundo Zulu Araújo, presidente da Fundação Cultural Palmares, de grande valia para subsidiar as transformações pelas quais a Palmares está passando. “Apesar dos avanços significativos que obtivemos, nos últimos dez anos, na educação, na cultura e com as comunidades quilombolas, estamos buscando um novo posicionamento da instituição dentro do governo e da sociedade”, resumiu Araújo.