Lasar Segall entre temas e técnicas
Lasar Segall experimentou diretamente o grande cisma que fraturou as práticas artísticas no começo do século XX. Após passar por uma formação nos moldes tradicionais, que lhe permitiu dominar as antigas técnicas de seu ofício e lhe trouxe informações sobre a história e os costumes do campo da arte, ele se viu em meio a uma grande polêmica que dividia o ambiente artístico. De um lado, pessoas que defendiam apaixonadamente a ideia de que as maneiras de fazer e de fruir a arte deveriam ser radicalmente alteradas, porque acreditavam, entre outras coisas, que as formas tradicionais já não eram capazes de apreender e comunicar um mundo novo, marcado pela velocidade, pela agitação urbana das multidões anônimas. Acreditavam na “verdade científica” de que a arte, como as formas de vida, estava em constante alteração, reagindo às mudanças que se processavam ao seu redor. Reivindicavam o direito de expressar uma nova sensibilidade e se recusavam a seguir as fórmulas estabelecidas. Do outro lado, alinhavam-se as pessoas que se viam como representantes da tradição, escandalizadas com as novas propostas que iam se insinuando nas galerias e nas revistas de arte, e que forçavam a entrada nos salões e nos museus oficiais.
A opção de Segall é bem conhecida: ele se agregou à frente jovem que propunha uma nova estética e, gradualmente, se livrou de diversas exigências que regiam as práticas artísticas e que, em sua perspectiva, impediam a manifestação clara e completa de suas imagens interiores, formadas no contato com o caos e a diversidade do mundo moderno.
Mas Segall, assim como em geral as pessoas de sua geração, ainda manteve muitos dos elementos tradicionais que assimilou ao longo de sua formação. Ainda que desprezasse certas imposições, em especial a obrigação de procurar reproduzir em suas obras uma imagem fotográfica do mundo, a correspondência entre a imagem vista na tela e aquela captada diretamente pelo olhar – a aparência superficial das coisas, ele talvez dissesse –, manteve-se fiel à pintura de cavalete, ao óleo sobre tela, às técnicas históricas de gravura – xilogravura, gravura sobre metal e litografia, e mais tarde recorreu aos diversos materiais de que os escultores e escultoras tradicionalmente se serviam. Sobretudo, ele se manteve fiel à ideia de que uma obra de arte deveria apresentar aos olhos do público algo reconhecível, originado do mundo real. Segall, para usar o jargão da história da arte, permaneceu alinhado com a corrente figurativista, ainda que, em sua concepção, o conteúdo – o tema, a narrativa – jamais se sobrepusesse à forma: “o conteúdo é apenas estímulo, e deve inspirar a fatura de uma grande forma; deve-se observar apenas a forma, sem se deter no conteúdo”. Na sucessão de obras que produziu ao longo da vida, voltou-se recorrentemente para um conjunto de temas, e esses também eram derivados da tradição da história da arte.
Apesar de ser partidário da renovação, Segall não adotou uma postura de completa ruptura e, como muitos artistas de sua geração, incorreu na arte de vanguarda de seu tempo a partir de uma interpretação, ou reelaboração pessoal, idiossincrática, tanto dos temas quanto das técnicas tradicionais de seu campo profissional.
Frequentemente, ao organizar exposições de um artista, curadores e instituições se veem instados a recorrer à sucessão cronológica na apresentação das obras, de maneira a revelar aos visitantes o percurso artístico, ou mesmo evidenciar um maior apuro na utilização da técnica no transcorrer do tempo. Essa solução, de intenção didática, que constrói uma visão bem ordenada do processo criativo, tornando-o aparentemente lógico, tem, no entanto, pouca correspondência com a realidade e dificulta uma percepção mais apurada do universo íntimo e multifacetado do artista, das idas e vindas da produção de seu trabalho, muitas vezes desordenada, fragmentada e difusa.
Como apontou o historiador Giulio Carlo Argan, os temas dos expressionistas alemães geralmente estão ligados à crônica da vida cotidiana. Na obra de Lasar Segall – filiado a essa tradição –, o sofrimento que aflige a humanidade, como a diáspora, a pobreza e a prostituição, ao lado de seu universo íntimo e empático, como o judaísmo, o negro e a maternidade, são elementos privilegiados. Alguns gêneros consagrados nas artes plásticas como a paisagem e o retrato também fazem parte de seu trabalho.
O crítico Lourival Gomes Machado, em seu ensaio “A feição da verdade”, ressaltou a importância da recorrência temática na obra de Lasar Segall. Ele destaca também que, diferentemente do que se poderia supor, a frequência no tratamento de determinadas questões em Segall, longe de significar uma mera repetição, ou mesmo um eterno voltar atrás, representa para o artista uma abertura constante para novas soluções.
As obras aqui expostas, selecionadas do acervo do Museu Lasar Segall, foram dispostas em conjuntos que representam alguns temas caros ao artista. Apresentam-se lado a lado criações de diferentes períodos, sobre diferentes suportes, nas diversas técnicas trabalhadas por Segall, que ilustram essa insistente retomada e releitura de motivos por ele. Como se poderá ver ainda, não raro, os mesmos motivos são retomados em contextos diferentes. Esperamos, assim, promover outra maneira de aproximação com a obra de Lasar Segall.
O interesse do modernismo brasileiro pela busca da essência nacional fez com que novos temas chegassem às obras de arte. Intelectuais, escritores e artistas voltaram seus olhos para as manifestações culturais populares e para os elementos étnicos não europeus, vistos como repositórios da genuína cultura brasileira. Há uma apropriação da cultura afro-brasileira, que é reinterpretada e levada às salas de concerto, aos livros e às paredes de museus. Pessoas negras tornam-se protagonistas nas telas dos artistas mais renomados do movimento modernista. No mais das vezes, no entanto, a figura das pessoas afro-brasileiras é representada de maneira condescendente: elas aparecem como remanescentes de um grupo primitivo, intocado pela civilização e, por isso, são consideradas genuinamente nacionais. Os artistas que os retratam não se identificam com o tema, capturando as supostas manifestações primitivas com suas ferramentas civilizadas, como um exemplar de espécie rara. Ou ainda, retoma-se o velho recurso da hipersexualização, enfatizando-se a luxúria nos corpos, apresentando figuras femininas voluptuosas. Lasar Segall, ainda que tenha em algumas de suas obras apresentado uma visão exótica do tipo brasileiro, trata a figura das pessoas negras sob outro viés. Seu interesse mantinha consonância com sua preferência pelos “marginalizados”. Ao mesmo tempo, Segall identifica-se com essas pessoas que, como ele, atravessaram a experiência do desterro, da deriva e da diáspora. Essa identificação assume um caráter quase literal em alguns de seus autorretratos, nos quais acrescenta traços fenotípicos das pessoas afro-brasileiras às suas próprias feições, ressaltando o fardo comum que carregam: a diáspora, a perseguição, a violência a que foram submetidos.
A prostituição é um tema recorrente na obra de Lasar Segall desde os anos iniciais de sua produção. Já na década de 1920, quando ainda vivia na Alemanha, o artista retratou figuras femininas em meio à atividade do comércio sexual, como na pintura Rua (1921). Ainda nessa época, realizou uma série de gravuras inspiradas no romance Bubu de Montparnasse, de Charles-Louis Philippe, que tratava da história de uma jovem parisiense submetida essa prática. Segall voltaria ao tema no Brasil, registrando o cotidiano do bairro do Mangue, no Rio de Janeiro. As obras originadas do contato com essa região seriam reunidas num álbum publicado em 1943. Na última década de sua vida, abordou a prostituição novamente, desta vez com a série Erradias, inspirada, ao que tudo indica, pelas disputas entre moradores, autoridades municipais e profissionais do sexo que viviam e atuavam na região do Bom Retiro, em São Paulo. Em sua abordagem, evitou a condenação moralista e jamais enfatizou, ao contrário de certa tradição nas artes, a sensualidade e a luxúria. Sua produção foi marcada pela compaixão: as obras combinam denúncia e protesto, mas também uma clara solidariedade e a observação serena da condição existencial das pessoas que se dedicavam à prostituição.
Nascido numa região marcada pelo antissemitismo, Lasar Segall fez como milhões de seus compatriotas e emigrou em busca de melhores condições de vida. Na Alemanha, onde se radicou em 1905, experimentou ainda muito jovem a condição de expatriado, forçado a se acomodar a uma cultura estranha. Segall emigraria ainda diversas vezes ao longo de sua vida antes de se fixar definitivamente no Brasil, pátria em que viveria suas últimas décadas. Mesmo após obter a cidadania brasileira, ele seria muitas vezes lembrado por seus críticos de sua origem estrangeira.
Essa vivência prolongada da condição de não assimilado tornou inevitável que o tema da diáspora atravessasse sua produção. Em muitas de suas obras, ao longo de todas as décadas de seu trabalho, a condição das pessoas que se encontravam à deriva no mundo reaparece. O tema subjaz às obras que retratam emigrantes amontoados em conveses de navios, vítimas do pogrom, judeus e judias forçados a uma eterna caminhada em busca de uma terra em que pudessem viver em paz, sempre com o olhar solidário de quem conhecia de perto aquela situação.
Ao mesmo tempo, Segall apresentava uma visão fatalista. O sofrimento humano que aparece constantemente em suas obras, em suas mais diversas formas, é visto como inevitável. Apesar de, em muitas delas, adotar uma postura de denúncia das injustiças e desigualdades, acreditava, em última análise, que restava afinal resignar-se aos flagelos, parte da própria condição humana.