Vilnius e eu
26/10/2019 a 03/02/2020
Da confluência de dois rios, o Neris e o Vilnia, nasceu Vilnius, atual capital da Lituânia, cidade de fronteira com múltiplas identidades, expressas em suas muitas denominações. Ela foi a Wilno dos poloneses, Vilna dos russos, Wilna dos alemães, Vilno dos bielorrussos, Vilne dos judeus e hoje, finalmente, é a Vilnius dos lituanos. Cada nome reflete uma cidade, com identidade, cultura e língua próprias, todas elas sobrepostas no mesmo espaço geográfico.
De acordo com uma lenda, foi em 1323 que Gediminas, o grão-duque da Lituânia, último líder pagão da Europa, teria ido caçar numa floresta nos arredores do vale de Sventaragis, na confluência dos rios Neris e Vilnia, acima-mencionados. Lá, sonhou com um lobo de aço uivando no alto de um monte. Ao acordar, pediu que seu principal sacerdote interpretasse o sonho, e ele rapidamente disse que o lobo representava uma cidade a ser fundada por ele no local, que seria a capital da Lituânia, e os feitos de seus sucessores ressoariam pelo mundo. Seguindo a profecia, o grão-duque mandou construir um castelo no cume do monte avistando os dois rios, e nomeou-o Vilnius.
A cidade que por lá se estabeleceu, nos séculos seguintes se tornaria, após a conversão da elite lituana ao catolicismo em 1387, um espaço de convivência entre católicos e ortodoxos, que tiveram naquela região seus direitos civis e religiosos igualados na primeira parte do século XV. Outros grupos seriam incorporados posteriormente, entre eles os judeus, cuja presença na cidade na década de 1480 já era forte o suficiente para o estabelecimento de um cemitério judaico. A cultura heterogênea que floresceu na cidade de Vilnius seria de uma de imensa complexidade, bem como de difícil compreensão por parte de estrangeiros para quem tamanha variedade étnica – poloneses, lituanos, ucranianos, bielorrussos, russos, judeus, alemães, letões, armênios e tártaros –; linguística – polonês, latim, bielorrusso antigo, hebraico, alemão e armênio – e religiosa – católicos, ortodoxos, protestantes, judeus ashkenazi e caraítas, muçulmanos tártaros – era de todo inusual.
Foi na judaica Vilne e na russa Vilna que Lasar Segall nasceu no dia 21 de julho de 1889. A cidade encontrava-se sob domínio da Rússia czarista desde 1795 e sua população, de acordo com o censo realizado em 1897 pelo Império Russo, era de 154.500 habitantes, dos quais 62 mil integravam o grupo linguístico iídiche; 48 mil o polonês e 3 mil o lituano. Naquele momento, leis severas restringiam os direitos dos judeus numa tentativa de eliminação de sua autonomia comunal. Basta pensarmos que em 1844, a Kahal, a mais antiga congregação de autogoverno da comunidade, foi extinta e que as crianças judias eram obrigadas a estudar em escolas de língua russa. Para além disso, a comunidade sofreria atitudes repressivas das mais perversas, que interditavam o pleno exercício de sua cultura, como a proibição aos homens de portarem vestimentas tradicionais e peiot, e a interdição às mulheres casadas de rasparem seus cabelos. Além de serem vítimas de surtos de violência, conhecidos como pogroms, estimulados pelo governo russo, a eles também era proibida a posse de propriedades rurais, podendo dedicar-se a algumas poucas atividades urbanas.
Foi em sua cidade natal que Segall descobriu seu pendor artístico, estimulado pelas atividades de seu pai, que além de negociante também era sófer, escriba da Torá, posição essa que carrega grande prestígio e cujo papel religioso no judaísmo é de grande importância. Como ele mais tarde escreveu: “O que sobre mim exercia a maior fascinação, era observar como meu pai copiava a Torá. Com tinta profundamente preta, do negror do piche, por ele próprio preparada, formava sobre o pergaminho branco ou amarelado, também preparado por ele, os monumentais caracteres hebraicos.”
Durante quase todo o período da Primeira Guerra Mundial Vilnius esteve ocupada pelos alemães, que invadiram a cidade em setembro de 1915, pondo fim a 120 anos de controle czarista. Segall, que desde 1906 morava na Alemanha, obteve autorização para visitar sua cidade natal em 1916. Ele a encontrou marcada pela guerra, numa “atmosfera impregnada de eflúvios de morte”. Doenças como malária, cólera e disenteria assolavam a cidade, causando mais mortes do que o combate em si. A paisagem desolada causou-lhe fortíssima impressão, e o artista produziu uma série de desenhos e gravuras a partir desta experiência. No final de julho de 1918, alguns meses depois da declaração de independência da Lituânia, Lasar Segall visitaria Vilnius pela última vez.
Ao longo das décadas seguintes, Vilnius se veria sob o controle alternado da Polônia, Lituânia, União Soviética e Alemanha, e sofreria os horrores da Segunda Guerra. A Grande Sinagoga, espaço que Segall conheceu e retratou, foi saqueada, queimada e parcialmente destruída pelos nazistas, e a população judaica da cidade foi quase que completamente exterminada. Dos mais de 60 mil judeus lá estabelecidos, não mais de 3 mil viram o fim da guerra.
Para finalizar, é importante dizer que no ano em que comemoramos os 130 anos de nascimento de Lasar Segall, será realizada a exposição, com 57 obras do acervo do Museu, Um modernista brasileiro de Vilnius: o retorno de Lasar Segall no Vilna Gaon State Jewish Museum. Dono de uma obra que não pertence tão somente ao Brasil, país que escolheu como seu em 1927, ao naturalizar-se, mas sim ao mundo, a mostra responde à missão do Museu de preservar, estudar e divulgar a obra do artista. A exposição Vilnius e eu faz parte desta parceria com o Vilna Gaon Museum que gentilmente cedeu as fotografias aqui reunidas.
(Giancarlo Hannud)