Sergio Fingermann: Imagens malabares de uma obra gráfica
05/08 a 04/12 de 2023
“eis que mil coisas de nada [...] punham-se a saltar rapidamente por si mesmas, uma a uma, e vinham ligar-se ao bico imantado numa corrente interminável e trêmula de recordações.”
Marcel Proust
Qual seria a origem das imagens que povoam a subjetividade de um artista? Qual seriam seus sentidos, intentos e preocupações? Quais as motivações de um sujeito que se esmera na manipulação dessas imagens internas? E finalmente, quais seriam as logicidades e essências passíveis de serem apreendidas dessas imagens, as quais muitas vezes se repetem no corpo de obra de um artista a tal ponto que não podemos senão nos perguntar qual a origem desses belos instantâneos obsessivos. Em essência, o que esses questionamentos todos fazem é nos afunilar em direção ao sempre presente mistério da experiência artística: o que vemos num dado trabalho? E o que deveríamos nele ver? As indagações acima citadas são apenas algumas das que nos solapam ao sermos confrontados com a obra de Sergio Fingermann. Gravador, pintor e professor, Fingermann vem desenvolvendo ao longo dos últimos cinquenta anos uma potente obra.
Dotado de sólida formação, jamais se ateve a uma única técnica como meio de suas preocupações, antes enveredando por todas elas ao sabor de suas preferências momentâneas e das possibilidades que lhe eram oferecidas por suas especificidades. Em sua atuação na gravura, tornada mais esparsa nos últimos anos apesar de ter sido um dos campos fundamentais do início de sua carreira, vemos a essência de seu pensamento criativo. Mestre inconteste do meio, ele fez uso de suas idiossincrasias para alavancar sua sensibilidade fragmentada, constituída de memórias esparsas, imagens desconhecidas e misteriosas, e suas muitas justaposições.
Pautado sobre um profundo pacto ético do fazer artístico, o trabalho de Fingermann articula questões de ordem técnica e expressiva em parcelas iguais, aliando o virtuosismo do fazer ao lirismo do contínuo espelhar iterado de certas imagens. A cada nova enunciação elas nos surgem sob novas inflexões. Elas constituem transformações visuais dos objetos e das memórias que as originaram, sendo assim seus equivalentes metafísicos, existindo em planos onde razão e sentido são feitos desimportantes.
Fernando Paixão, lúcido intérprete de Fingermann, apontou “a convivência de pensamento e imagem” existente na produção do artista, mas aqui prefiro propor a ideia de que essa convivência visual-racional se dá por meio de acrobacias visuais, nas quais ele demonstra sua destreza, sofisticação e habilidade em equilibrar as formas e sentidos de uma dada imagem. Fingermann as lança ao ar, uma após a outra, apanhando-as em seguida para tornar a lançá-las ao alto, onde na fração de segundo em que permanecem suspensas, no aguardo de sua inevitável queda ao chão, são manipuladas pelas intenções do artista. Nesse sentido vale citarmos uma passagem do romance Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, que acredito ser particularmente relevante e reveladora do processo de Fingermann pelo que ela nos sugere da origem de suas ideias visuais. “Um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.” Ao pendurar, bracejar, pernear e alongar imagens provenientes do mundo real, transformando assim impressões passageiras em expressão, Fingermann acaba por criar deleites visuais indecifráveis que propõem profundas reflexões sobre a própria origem da imagem, seus efeitos e possibilidades. Nessas imagens malabares de esfinge reside o material construtivo do universo poético e subjetivo de Fingermann.
Ana Magalhães, outra intérprete consciente de Fingermann, chamou atenção ao fato de que suas imagens “parecem constituir um dicionário de motivos e elementos ao qual Sergio recorre para compor o trabalho que vem construindo ao longo de sua trajetória”. Esse dicionário é formado de motivos como o rabo de um gato, que rapidamente pode se tornar a ponta de uma lua crescente ou um peixe, que surge aqui e acolá, por vezes sobreposto à fachada do Museu do Ipiranga. Outras imagens, bonecas de trapo e palmeiras, são habitualmente enxertadas de desenhos quase infantis de casas – porta, janelas e telhado – de onde surgem figuras esquematizadas, ou então cenários teatrais observados de coxias de casas de espetáculo inexistentes, escadas em fragmentos e grampos oxidados. A mais onipresente de todas elas, o espaldar de uma cadeira, pode ser entendida como o moto contínuo de sua produção. Ela ora surge por inteiro, ora em detalhes, mas sempre dotada do privilégio de poder se tornar todas as outras, manipulando-se inconscientemente em toda a obra. Talvez fosse o papel do crítico ver em profundo a origem narrativa do maravilhamento que nos causam essas imagens de objetos metamorfoseados em outras coisas. Se assim fosse, seria essencial o relatar o fato de a cadeira, centro do universo imagético de Fingermann, conter nela a menção de uma outra, agora integrante do mundo real, parte da mobília familiar e por ele conhecida desde seus mais tenros anos. Mas aqui prefiro argumentar que essa informação muito pouco, se é que alguma coisa, pode nos oferecer fora o anedótico de sua origem. É verdade que suas imagens contêm o passado vivido do artista, mas elas não o ilustram. Elas são deflagrações instantâneas de encanto, e nelas reside uma simultaneidade temporal que carrega o passado de maneira viva, ao mesmo tempo que se finca no presente.
Ao entrarmos em contato com esse mundo de imagens malabares traduzidas pela mão do artista, temos nosso interno transformado pelo acesso. Como escreveu Roberto Machado no magistral estudo Proust e as artes ao falar de Elstir, o pintor da grande obra proustiana Em busca do tempo perdido, ele é o “criador de um novo mundo, que transforma o caos em cosmo”. Não se trata, nessa cosmologia imagética, de se obter um sentido único residente por detrás dessas visões de gatos, fachadas e cenários, mas antes do se deslumbrar perante as infinitas possibilidades formais e expressivas que elas nos proporcionam. Para finalizar, vale citar novamente Magalhães, que soube fixar o ponto basal da produção de Fingermann: “Vamos dizer que ele seja um pintor do sensível, interessado sobretudo – mesmo em seus processos mais construtivos – em nos tocar mais em nossa instância subjetiva, construindo espaços para a ativação das memórias das coisas vividas”. Em seus cenários insuspeitos de andaimes, cadeiras, rabos de gato que se tornam luas e casas habitadas por bonecos de papel, somos sempre atingidos pela profunda sensibilidade dessas formas de dúbio sentido e beleza. Eles nos devolvem à vida diferentes, mais aptos ao mistério e confusão da criação humana, e ao prazer da beleza, “o prazer objetificado” ao qual George Santayana alude. Sensíveis e discretos, sublimes e airosos, eles carregam em sua tradução um pouco da magia malabar do artista.
Giancarlo Hannud
Curador