No final de 1951, Marcelo Grassmann, Aldemir Martins e Frans Krajcberg, jovens artistas, participaram como operários ajudando na montagem na 1a Bienal Internacional de São Paulo, sediada no Pavilhão do Trianon (onde hoje é o MASP). Marcelo teve também algumas xilogravuras selecionadas para a mostra (2 Harpias e Apocalipse) pelas quais obteve uma premiação, a primeira de muitas que viriam nos anos seguintes. Estas obras pertencem a um conjunto maior (que se estenderia pelos anos 50) nos quais se evidenciam referências estilísticas, temáticas e técnicas variadas, mas também se eclipsam elementos que permaneceriam ativos em seu desenho e em sua gravura até o final de sua produção artística. Desde o final dos anos de 1940, quando Marcelo ilustra periódicos e suplementos literários em São Paulo e Rio, há, muitas vezes, uma espécie de interdição na conclusão da imagem, que contraria a velocidade e a desenvoltura com a qual ele manipula a pena e o pincel: a figura fica incompleta ou a ponto de não ter condições adequadas para a sua total aparição, como se intencionalmente fosse deixada à deriva de qualquer tentativa de conferir-lhe uma identificação eficaz, o que contraria o princípio usual da ilustração. Entretanto, a intenção abstrusa não compromete o reconhecimento (ou parecença) que é solicitado da imagem, quando o é, como o demonstra o retrato de Kandinsky (d.1947), no qual a parte posterior da cabeça, a três quartos, é deliberadamente deixada ao vazio da folha de papel em branco.
Marcelo é um artista que pensa ainda a figura como uma célula visível autônoma, como aquele momento no qual se deve atar ou desatar o nó do sentido no ato de representação de alguma coisa, principalmente a partir da constatação da crise instalada naqueles anos com a emergência das abstrações, geométricas ou não. Marcelo e outros artistas de sua geração, ainda que tenham resistido ou se oposto a elas, não passaram ilesos ou indiferentes em relação às mesmas. Os ajustes nos planos de representação, a liberação das figuras de um fundo (nas gravuras, sobretudo), cênico ou não, assim como a busca da repetição de padrões nas linhas e cortes que emergem no interior dessas figuras, provam que houve uma tentativa de arranjo ou ordenação implícita, independentemente das abstrações, mas cotejando-as sempre, à distância. Há uma aproximação e simultaneamente um distanciamento, nas suas produções gráficas no final dos anos 1940 e início de 1950, em relação às de Lívio Abramo (1903-1992), por exemplo, primeiro de seus mestres consentidos, e mais aproximado das vertentes construtivas naqueles anos.
Em Pelo Sertão (1948), série de xilogravuras sobre papel arroz, que Lívio produz para ilustrar o livro de Afonso Arinos de Mello Franco (1868-1916), vê-se uma figuração estilizada, remissiva ao cubismo de segunda ou terceira geração, na qual Picasso, Braque, Le Corbusier e o purismo sonhavam com pinturas áticas vasculares, construída com um repertório de linhas que substituem a gestualidade da mão pela característica peculiar de corte de cada instrumento de fio, goivas com pontas em forma de U e V, buris raiados e diversos preciosismos na alternância de fundos brancos e negros. Como são gravadas em madeira de topo, as estampas às vezes trazem parte da forma natural da matriz, rompendo com a cena retangular. Marcelo conheceu bem estas obras; foi ele quem ensinou Lívio como imprimi-las em papel muito fino sem rasgá-lo com a ação de fricção da colher de pau, preservando ao mesmo tempo as finas texturas e passagens delicadas da gravação.
Em troca, algumas das soluções de Lívio foram assimiladas por Marcelo. Algo da heterodoxia das linhas, por exemplo, é por ele recolhido: mas estas, que às vezes circunscrevem ou dividem internamente os planos das figuras, não informam nada sobre a verossimilhança das superfícies dos corpos representados, nem tampouco servem de grande coisa para a delineação das luzes e sombras; apenas emergem como partes integrantes da figura ou recursos de passagem entre ela e o fundo, ou entre este e uma outra figura ao seu lado. Há um desvio de direção da obra de Lívio, contudo, quando Marcelo libera as figuras da possibilidade de ingresso em uma paisagem (para Lívio, o horizonte sempre se manteve como um referente), concentrando a heterodoxia gráfica, já referida, no interior das próprias figuras.
Em Apocalipse (1951), por exemplo, elas se erguem, se contorcem e giram, e todo este movimento que certamente remete à temática de uma dança macabra com seres estranhos, é simultaneamente o anúncio da libertação plástica das figuras de um fundo (que vai se desintegrando rumos às bordas da matriz de madeira). A série de xilogravuras intitulada Incubus Sucubus (d. 1953) confirma a plena libertação das figuras: centauros, pássaros, peixes, cavalos, porcos, harpias, sereias, galos, gatos, tudo isso junto ou partes de tudo isso misturadas, colidindo, copulando, atracando-se, se ordenam como ícones viris nas páginas em branco, assumindo um sentido totêmico que remete, entre outras coisas, às imagens sacras vistas por Marcelo nas muitas igrejas da Bahia (o artista foi para Salvador, no início de 1952, na companhia de Mário Cravo Júnior).
Um pouco antes, Marcelo desenha à pena figuras de abutres, corvos e harpias que pousam, famintas, sobre cadáveres de cavalos apodrecidos e semi-esviscerados. Há dois sentidos ou direções básicas nessas imagens que antecipam a série Incubus Sucubus: um dado pela folha de papel disposta horizontalmente; outro, pela folha deitada verticalmente. Se quanto à primeira posição, podemos pensar nos desenhos e gravuras de Goeldi, tanto em relação à composição aberta assim como quanto à escolha de temas grotescos, na segunda, o que advém principalmente são referências de desenhos e litografias de Alfred Kubin (1877-1959). Por exemplo, em desenho em que a figura de um animal soprando uma corneta se apruma sobre os ombros e a cabeça de uma mulher (há outras versões como a da mulher montada sobre um bode conduzido por um gato-macaco) é explícita a relação com a figura alongada de um sátiro tocando seu flautim (Episoden des Untergangs, 1926), de Kubin. Ou em Kampfhan (1918), também de Kubin, litografia em que um galo, ereto, crista eriçada e olhar desafiador, anda sobre as duas patas carregando sob um dos braços (de homem) uma acha afiada.
A inclinação à verticalidade da composição, com as figuras eretas ou encavalando-se, é uma tendência também da série Los Caprichos de Goya (1748-1828) que por sua vez foi uma referência fundamental para ambos os artistas, Marcelo e Kubin. Tenha-se, por exemplo, a estampa !Cuál la descañonan! (n.21,1799), na qual aparece a figura da harpia em posse de juízes animalescos, prestes a devorá-la. Ou Ya van desplumados (n.20, 1799), na qual uma harpia sobrevoa mulheres, jovens e velhas, a bater com vassouras em outras harpias depenadas no chão, ou a famosa El sueno de la razón produce monstruos (n.43, 1799), em que a revoada de corujas e morcegos agita uma coluna ascendente sobre a figura do homem debruçado na mesa de seu gabinete.
Para Marcelo, a razão ordena ironicamente os esboços (1952) para a montagem da série Incubus Sucubus para a 2a Bienal de São Paulo, de 1953 (a bienal de Guernica), pois vistos soltos na folha remetem à composição mondrianica de quadrados e retângulos intervalados por cruzes (as porções negativas do papel). A ironia é dupla, quando se pensa na relação desenho-desenho, ou seja, na metalinguagem do desenho que se desenha a si mesmo ou se planeja para vir a ocupar uma parede da bienal, espécie de expiação da arte que sobreviveu às abstrações geométricas.
A figura da mulher que traz em seu ventre um animal, camaleão, gambá ou porco, e que o embala como uma boa mãe, envolvendo-o em seus braços enquanto de suas costas se arvora a morte também mantém referências com o universo fantástico de Kubin (O Ovo, 1902). O sonho, a mescla de seres, a bizarria se sucede em seres que saem ou vivem presos a ventres femininos ou são acarinhados em seus colos. As bocas destes seres, às vezes, sorriem, escancarando-se para o espectador como a desafiá-lo para que ele tente decifrar o seu sentido, ou simplesmente para desviá-lo para outro lugar, longe dali. Que retornem aos espaços e conversações sobre cultura, sobre o mundo circundante, com o blá-blá-blá infindável das rodas de convivas aborrecíveis. O lugar da arte é outro. É o lugar de Goeldi, de Kubin, eventualmente de Redon e de mestres de outrora, como Urs Graf, Hans Holbein o Jovem, Leonardo Da Vinci, Michelangelo, etc.
Esta intuição de que se deve desviar sempre daquilo que já está estabelecido, como convenção artística ou social, faz com que os seres de Marcelo sejam pouco definíveis, embora sempre distintos, além de às vezes serem também diáfanos pelas tintas improvisadas as quais ele se utiliza, que vão se tornando transparentes com o passar dos anos. Eles abrem as bocas, mostrando um pouco os dentes (novamente pensamos em Kubin, no Der Soldat, der Christi Seite durchstach, 1918, por exemplo). Cônscios de sua condição de impermanência, esticam as suas garras para ali se firmarem, na superfície do papel, fazendo-as convergir como linhas eriçadas, ásperas, que avançam em direção ao olho do espectador. No interior do estado de São Paulo, de onde Marcelo provém, o fura-olho é um indivíduo que trai a confiança de quem lhe está próximo, que tenta se apropriar daquilo que não lhe é devido ou daquilo que lhe é alheio. Fura-olho designa também um inseto de abdome esguio e comprido, com asas membranosas, repulsivas ao olhar. Tal é o aspecto de muitas das figuras de Marcelo nos anos iniciais de sua trajetória. As harpias se transformam em pássaros bicudos e espinhosos, às vezes com mandíbulas de peixe e corpos de libélula ou vespa com expressão demoníaca (novamente a sorrir para nós). Há também desenhos, estudos dessa época, de plantas e flores espinhosas ou de estruturas que se desenvolvem como flechas pontiagudas a partir de cálamos desenhados com paciência e atenção pormenorizadas. Algumas vezes, é como se as fantasmagorias (Leon Kossovitch escreveu em 2019 com rigor sobre a poética delas) surgissem a partir daqueles padrões que se formam nos veios das pranchas de madeira sugerindo grifos, dragões ou quimeras _ Marcelo começou a sua vida profissional como aprendiz de entalhador de móveis.
Na Bahia, a partir de 1952, Marcelo desenha crustáceos, lagostas e caranguejos, até começarem a apodrecer. As estruturas de seus exoesqueletos, carapaças e pinças se replicam em outros bichos (nos cavaleiros e suas armaduras em anos seguintes), e recobrem-se de pelos que ora se estendem como pontas afiadas, quelíceras de bichos monstros, peixes-aranhas ou outras possibilidades de simbiose, como o bicho peludo e olhudo, de novo, de Kubin, em litografia de 1914.
Em 1954, já em Viena, Marcelo estuda formas picassianas, em cabeças de cavalos e hipopótamos atarracados, que desafiam, como possíveis verossímeis, o famoso rinoceronte de Dürer. O grau de experimentalismo nesses anos, com uma sorte variada de técnicas e materiais de desenho, não altera o seu interesse pelo estranhamento como principal moto da arte, revelando um certo incômodo não apenas com a arte do presente, que tende a substituí-lo por fórmulas e manifestos, mas sobretudo com a limitação crescente do imaginário que tenderia a se satisfazer com pacotes prontos, fechados e palatáveis para o gosto público.
Marcelo se utiliza de uma metáfora, a partir de outro de seus artistas prediletos, Edvard Munch (1863-1944), para repor o tema do estranhamento (após o seu colapso ou esquecimento na arte contemporânea). Em 1951, Marcelo desenvolve uma série de desenhos de cor sanguínea, mas pintados sobre papel, com o título homônimo ao álbum de Munch, editado entre 1908 e 1909. Trata-se de Alpha & Ômega, uma coleção de 18 litografias (e um poema em prosa) que ilustram uma versão pessoal e bizarra da história de Adão e Eva, narrando o que ocorreu com os dois primeiros habitantes de uma ilha deserta — Alpha e Ômega. Eles vivem em harmonia até que uma grande nuvem lança uma sombra sobre o local — Alpha flagra Ômega deitada com uma enorme serpente sobre ela, olhando fixamente em seus olhos. Possuído de ciúmes e raiva, ele mata a serpente, mas isso não detém Ômega. Ela inicia relações sexuais com todos os animais da ilha, até que se entedia e foge nas costas de um veado. Alfa acha que ficou sozinho — mas, um dia, os filhos de Ômega vão até ele. Uma nova família cresceu na ilha, e eles o chamam de pai. Há porquinhos, serpentes, macacos, predadores e outros bastardos humanos. Alfa desespera-se: “Ele correu ao longo do mar; o céu e o mar estavam manchados de sangue; ele ouviu gritos no ar e tapou os ouvidos; a terra, o céu e o mar tremeram, e ele sentiu uma grande ansiedade.” Quando Ômega retorna um dia, Alfa a mata. Enquanto ele se senta e observa o corpo dela, é atacado por trás por todos os seus filhos e pelos animais da ilha, que o destroçam até a morte. Esta é a história traduzida nas 18 pranchas, mas as relações de Ômega com os bichos nunca aparece de forma explícita nas imagens de Munch; quando muito, quando ela aparece com o Tigre, deitada sobre uma de suas patas enquanto põe a sua mão direita na boca do animal, é a mais sugestiva em termos de um comportamento sexual. Na versão de Marcelo, ao contrário, o foco está justamente na relação erótica entre Ômega e os animais: ela se senta no colo de um deles, é abraçada por trás, tem partes de seu corpo tocadas libidinosamente por um porco e depois por um urso, enquanto Alpha aparece apenas num único desenho tapando os ouvidos (de horror) com suas duas mãos erguidas. Na versão do artista norueguês, a cena da fuga de Ômega é representada com a figura minúscula da mulher agarrada ao dorso do veado nadando para longe da faixa de areia da praia; Alpha está cabisbaixo no primeiro plano, em posição de melancolia. Munch sugere assim, com enorme ironia, que a traição seria a causa primordial desse sentimento. Marcelo se concentra não no tema da traição e do sentimento de desolação de Alpha (ao se saber traído) mas nas possibilidades de criação a partir da cópula de Ômega com os diversos animais da ilha. É da pulsão instintiva, que se encanta com as diferenças, que a criação rearranja seus novos seres. Este movimento da natureza é semelhante à maneira como o artista opera na produção de suas obras: a partir da matéria existente e de um repertório finito de formas, pode-se criar novas formas ou situações até mesmo para ele inauditas.
Vistos em conjunto, esses desenhos e estudos de Marcelo Grassmann compõem uma espécie de gabinete, não de curiosidades como os medievais e de coleções de príncipes, mas de possibilidades de cruzamento de formas de existência, que ao se reunir graças à intervenção do artista, liberam-nas do compromisso com qualquer narrativa, seja voltada ao sonho, seja a algum realismo fantástico ou onírico. Marcelo não é um contador de histórias, como Kubin, recolhendo dele e de outros escritores (Hoffmann, Kafka, Bram Stocker, Alex Raymond, Hal Foster, etc.) a potência imagética contida nos textos. Por isso, muitos desses desenhos ficaram guardados com o artista, raramente sendo vistos. Eles compõem um acervo essencial para o qual Marcelo sempre retornou a fim de iniciar ou reiniciar as suas séries de trabalhos. As figuras, heteróclitas, sugerindo monstros ou seres informes, são destituídas de todo e qualquer simbolismo (como os peixes agigantados de Goeldi) para potencializarem-se como imagens apenas, ou seja, como figuras que resistem, ou que se abrem (são duas possibilidades) a interpretações diversas para quem os vê. Mas há uma terceira possibilidade que amplifica ainda mais essa potência ou vontade: a de não serem vistos, nunca, de permanecerem reunidos em silêncio no coração do ateliê, dentro de gavetas ou espalhados no espaço, onde continuam a se procriar, talvez, longe de qualquer juízo moral ou suspeição humana.
Luiz Armando Bagolin
curadoria
O Gabinete de Marcelo Grassmann
abertura em 22 de março de 2025, das 15h às 19h
visite de quarta a segunda, das 11h às 19h
entrada gratuita
Museu Lasar Segall (Ibram/MinC)
Rua Berta 111, Vila Mariana, São Paulo
11 2159 0400