A artista Patti Smith declarou certa vez que "um artista veste seu trabalho no lugar de feridas". A arte como antídoto para lidar com o sofrimento, como força para a superação das vicissitudes da vida também é o denominador comum das diversas séries de gravuras e desenhos de Lucila Sartori. Mas não apenas isso. Ao longo de mais de quatro décadas, a artista vem explorando discretamente as relações entre literatura, imagens plásticas e sonhos, lembrando-nos da quase impossibilidade de tradução para outrem da experiência singular que possamos ter em qualquer um destes campos. Porque o que sentimos ao ler uma poesia ou um romance, ao ver uma obra de arte, ao assistir um filme ou vivenciar um sonho, não sendo nunca transferível a outros, nos conduz a uma terceira possibilidade, que tangencia a todas as outras anteriores. É justamente neste lugar que Lucila opera com sensibilidade, tornando legível pela prática das técnicas tradicionais da gravura em metal (água-forte, ponta seca e maneira negra) mas também pelo desenho e pela escultura, os modos ou abordagens que faz de histórias e narrativas que lhe são trazidas em ocasiões especiais de sua vida (traumáticas ou felizes).
Ao acolhimento dessas narrativas, a artista nomeia exercícios de apreensão, em que se apresenta, sempre, no âmbito conceitual da palavra "exercício", o sentido do lançar-se a uma tentativa de leitura e tradução plástica, cujo resultado, aproximado ou não, não coincidirá jamais com uma história original, e a escolha de seus meios de expressão, notadamente a gravura, também contribui para esta conclusão.
Tendo sido seu mestre, durante mais de 20 anos, o gravador Evandro Carlos Jardim, Lucila acredita que os processos técnicos da gravura vêm acompanhados, de modo implícito, de sua história ao longo das épocas, incluindo a sua longeva relação com os livros e com a palavra. Por isso, duas atitudes são convocadas simultaneamente ao ato dos seus exercícios de apreensão. Uma despertada pela pulsão (psicológica e física) causada pelas histórias lidas; outra, iluminada pelas referências, à luz da história da arte, nas quais essas mesmas histórias foram mediadas ou ilustradas pela gravura por outros artistas.
No entanto, Lucila não está interessada pela ilustração. Ou, melhor dizendo, seria muito simplista afirmar que o que a interessa quando lê Gorki, Cervantes ou o livro bíblico dos Cânticos seja apenas referendar o texto por meio de imagens redundantes em relação às narrativas escritas e que, portanto, lhes sejam subordinadas. Antes, nos autores e livros, objetos de seus exercícios, a artista encontra momentos que lhe despertam a atenção (às vezes sem que saiba verbalizar por quê) provocando-lhe os sentidos que se acuram pelos meios específicos da arte (o desenho, a gravura), trazendo-lhe a possibilidade de reescrevê-los, por meio de imagens, a partir do que sentiu ou viu ao lê-los.
Como propôs Roland Barthes a propósito da imagem fotográfica, o que importa não é aquilo que é denotado na cena, o que é descrito, mas o seu punctum, um detalhe apenas, que tem o poder de despertar nossas pulsões. Por exemplo, ao ler A Mãe, de Gorki, a artista se impressiona com a centralidade da figura de Pélagué, que acolhe em sua casa os operários mobilizados pelo filho Pavel pela causa revolucionária. Aos poucos ela também vai se engajando pela causa e pela luta dos homens. A cidade onde se passa a história tem ruas lamacentas, cinzas, sujas e frias, o que valoriza mais a sensação de acolhimento da mulher.
Para Lucila, a figura feminina da avó na janela, contemplando ora o dia, ora a noite estrelada, sintetiza o sentimento de solidão, de desesperança, mas ao mesmo tempo de desejo de consolação e empatia.
A imagem cinzenta do lugar é imediatamente trazida pelo claro-escuro da gravura (que sempre começa pelo exercício do negro e de seus meios tons, antes que venha a ela alguma cor). Neste ponto, gravura e narrativa se encontram e imediatamente se afastam, porquanto o lugar onde se reapresenta (época e contexto social, político) é muito distante daquele retratado na história. Mas para a artista, algo de universal (dado tanto pela história dos processos gráficos quanto pela narrativa literária) que interessa a todo ser humano, em qualquer tempo ou lugar, fornece-lhe o ponto de contato entre gravura e romance, o seu punctum.
Algo semelhante se dá com sua interpretação dos Cânticos. Aqui a artista utiliza a possibilidade dada pelo meio (gravura em metal) de acolher as transformações numa mesma imagem, numa mesma matriz (a placa de cobre), para mostrar os encontros e desencontros dos dois amantes, elegendo da alegoria bíblica os elementos que traduzem a história para a sua compreensão como uma relação humana verdadeira e, novamente, válida para qualquer idade ou lugar. O texto (ou fragmentos dele em algumas traduções) divide com as imagens o campo de representação numa espécie de dança que alegoriza o diálogo entre arte e palavra. Como o escrito se esgarça, ondulante, através das superfícies das matrizes de metal, acolhendo luzes, manchas e claro-escuros, é possível imaginá-lo, na sucessão do movimento comum à leitura ocidental, da esquerda para a direita, de cima para baixo (embora na matriz se dê o inverso), voando para fora do campo (da matriz ou da estampa), como se a palavra pudesse ganhar uma vida corpórea e participar do espaço que ocupamos. O texto é, assim, trazido como sinédoque do canto com uma voz e som, de seu local originário para a matriz de gravura, e desta para o espaço que ela ocupa, transmitindo a sensação de tempo transcorrido, ao mesmo tempo em que o reafirma imemorial.
A materialização da escrita pela artista em signos que passam a dividir o espaço com o qual coabitamos, sentido em nada semelhante ao propósito da ilustração, como já referido, às vezes seleciona e plasma um detalhe ou aspecto, que, usado lateralmente no texto, ganha um protagonismo imprevisto na arte. A lama, por exemplo, que cobre as ruas do romance de Gorki (ou as margens do Estige, em Dante) emerge, esbranquiçada, reformando-se em centenas de pequenos potes, como signos rebatidos no solo do firmamento que a avó fitava com seus olhos brilhantes.
Luiz Armando Bagolin
Curador
Cânticos, 2003
gravura em metal, água-forte e lavis
Cânticos, 2005
gravura em metal, água-forte, água-tinta e ponta seca
Cânticos, 2003—2022
gravura em metal, água-forte, água-tinta, maneira negra e ponta seca
Cânticos, 2005
gravura em metal, água-forte, água-tinta e ponta seca
Cânticos, 2003
gravura em metal, água-forte e água-tinta
Cânticos, 2005
gravura em metal, água-forte, água-tinta e maneira negra
Gravuras, Desenhos e Sonhos | Lucila Sartori
Exposição em cartaz até 26 de janeiro de 2025
Rua Berta 111, Vila Mariana, SP
Quarta a segunda, das 11h às 19h
Entrada gratuita