Sento una forza indomita - Carlos Martins e O Guarani de Carlos Gomes
05/11 de 2022 a 27/03 de 2023
Lo sguardo suo sí vivido
sento riflesso in me,
ma invan me stessa interrogo,
ma né mi so dir perché.
[O seu olhar tão vívido
Sinto refletido em mim;
mas em vão me questiono,
mas não sei dizer por quê.]
Mestre supremo de seu ofício, produtor de cristalinas imagens de linhas precisas e controladas, Carlos Martins é um gravador que, embora pouco conhecido pelo público em geral, é tido pelos praticantes da técnica como um dos mais apurados, sofisticados e elegantes de sua geração. Dotado de um virtuosismo poucas vezes atingido no campo da repetição da imagem, sutil disfarçador da dificuldade depurada de seu lento fazer, pode-se dizer que ele é um ‘gravador dos gravadores’, para tomar de empréstimo a expressão comumente utilizada para designar um pintor maravilhador de seus pares. Arquiteto de formação, conheceu o treino da prensa e da chapa metálica quando se transferiu para a Inglaterra, onde, num primeiro momento, se inscreveu num curso de pós-graduação em arquitetura. Lá ele frequentou a Chelsea School of Art e ingressou na Slade School of Fine Art, locais onde enveredou pelos caminhos e artimanhas da gravura, suas infinitas possibilidades técnicas e expressivas. De volta ao Brasil em 1978, Martins iniciou sua atuação como pesquisador e curador, tornando-se assim um dos maiores conhecedores da técnica da gravura e de sua história em terras brasileiras, figura incontornável da prática, bem como profundo entendedor de sua iconografia. A erudição mascarada de seu olhar se deve a essa curiosa tríade formativa, habilmente expressa pelo crítico Frederico Morais quando escreveu: “Seu olhar foi educado primeiro pela arquitetura, depois pelas viagens e, finalmente, pela pesquisa histórica”.
A presente mostra busca apresentar um olhar focado em uma parte da produção de Martins, particularmente aquela que lida com questões da invenção e encenação de uma suposta identidade imagética nacional. Tomando como ponto de partida uma série de gravuras produzidas entre 1985 e 1996, baseadas em parte na ópera de Carlos Gomes, que por sua vez se baseara na obra literária de José de Alencar, O Guarani – gênese perversa do alçamento da figura do indígena como símbolo nacional –, o artista nelas desenvolve temas e lugares comuns dessa noção imaginária, encenando suas incoerências e subvertendo suas obviedades. Operístico e teatral, irônico e profundamente individual em suas estratégias expressivas, o conjunto apresentado justapõe uma linguagem sintética de silhuetas de caráter alegórico a episódios da obra de Carlos Gomes, dentre eles o famoso dueto de amor entre Peri e Ceci, Sento una forza indomita, o qual dá título à exposição e constitui a epígrafe que abre este texto.
Colorida de referências ao trabalho de artistas viajantes do século XIX e ao vocabulário formal da arquitetura clássica, as obras da exposição personificam uma dinâmica de olhares refletidos, espelhos ao mesmo tempo da identidade do artista e de sua alteridade. A instalação produzida por Martins especificamente para a mostra encena, à distância de um olho mágico, seu processo criativo, teatralizando suas referências. De fora, assistimos à encenação dramática do interior. Confrontados com esse composto de estranhas diretrizes traduzidas e olhares enviesados, todos eles obscurecidos ainda por outros e mais variados olhares, vale recordar as palavras de Roland Barthes ao discutir as tragédias de Jean Racine: “este teatro nos é mais relevante por sua estranheza do que por sua familiaridade: sua relação conosco é sua distância”. O distanciamento, por vezes, nos aproxima mais do que a proximidade avizinhada. Nas gravuras d’O Guarani, somos tanto tragados pela essência familiar de suas notas quanto boicotados pela violenta e misteriosa estranheza de seu afastamento.
Giancarlo Hannud
Curador