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O preço do mangue
Agência Museu Goeldi – “Isso aqui é que nem a vida humana, não tem dinheiro que pague”, fala o caranguejeiro Evaldo Fonseca. O “aqui” a que ele se refere está diante dos olhos, em toda parte, às margens do rio Mocajuba, em volta da Ilha de São Miguel. O manguezal é o centro dessa comunidade localizada no município de São Caetano de Odivelas, nordeste paraense. O lugar é um polo de extração de caranguejos que abastece todo o Estado. Em uma estimativa dos próprios moradores, cerca de 95% da população ativa da ilha é de caranguejeiros. Quem não é, vive indiretamente da riqueza tirada da lama do mangue.
No feriado de Tiradentes e nos dias que seguiram até o fim de semana, uma equipe do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) esteve em São Miguel e viveu a dinâmica da comunidade, que sediou o curso “O Manguezal tem preço?”. Em foco, educação ambiental, as práticas dos caranguejeiros e o manguezal como um patrimônio. “O curso atendeu uma demanda local, no entendimento de alguns conceitos que são tão importantes para São Miguel como ‘Unidades de Conservação’ (UC) e ‘Reserva Extrativista’ (Resex), e para a preservação ambiental da área”, explica Lúcia Santana, coordenadora do Serviço de Educação do Museu.
Resex, já ouviu falar? - Desde 2014, São Miguel integra a Reserva Extrativista Marinha Mocapajuba . Segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) , nessa categoria estão áreas protegidas legalmente para a defesa dos meios de vida de populações extrativistas tradicionais. São as comunidades, juntamente com representantes de órgãos públicos e organizações da sociedade civil, que devem administrar as Resex . Porém, dois anos depois de instalada, o Conselho Deliberativo da Resex de Mocapajuba ainda não foi criado e falta informação sobre a reserva para os moradores da ilha.
“Pouca gente aqui conhece o que é Resex ou ICMBio. A gente sabe da importância do defeso, por causa da reprodução dos caranguejos, mas nem sabia de onde veio essa lei”, conta a assistente escolar Edileuza Rodrigues. Ela foi uma entre os 30 participantes do curso, e conversou com pesquisadores do Museu Goeldi sobre essas siglas, palavras e seus significados: o que é o Sistema Nacional de Unidades de Conservação e a Política Ambiental no Brasil e as formas de gestão ambiental em reservas.
Seu Salomão Maia, um dos caranguejeiros mais antigos da ilha, foi um dos palestrantes do curso do Museu, exemplificou como o tema da criação da Resex é pouco conhecido pela comunidade. Ele, que também esteve entre os que participaram da reunião de 2014 para a criação da Resex de Mocapajuba, lembrou que, na época, foi àquela reunião sem saber totalmente do que de fato seria tratado.
“Eu não imaginava que tinha esse tanto de coisas para se aprender sobre a reserva”, disse Edivany Rodrigues, estudante e irmã de Edileuza. Com o que conheceram no curso, as duas afirmam que irão incentivar os demais habitantes de São Miguel a se organizar comunitariamente em prol do manguezal. “Vou com as pessoas daqui sobre o que vi no curso. A gente tem que se unir e cuidar pelo o que é nosso”, diz a estudante.
Quando a maré encher - “Olha, a toca de caranguejo ali. Agora é só amarrar a linha no graveto, fazer o laço e colocar na entrada do buraco. Quando o bicho sair, a gente pega ele”, ensina Olivan Rodrigues, caranguejeiro jovem, mas já experiente na tirada do crustáceo.
O aprendizado não foi só de quem mora na ilha. O grupo de pesquisa e educação do Museu Goeldi, formado pelas antropólogas da Coordenação de Ciências Humanas (CCH) Graça Santana e Ivete Nascimento , pela coordenadora do Serviço de Educação Lúcia Santana , pelo arte-educador Alcemir Aires e pelo cientista ambiental Cezar Filipe , ganhou uma aula da população sobre as práticas e métodos da principal atividade econômica de São Miguel - como a técnica do laço explicada por Olivan.
Eram as primeiras horas de sol do sábado (23) quando a equipe e os 30 participantes do curso “O Manguezal tem preço?” zarpou de São Miguel em direção ao Porto do Tatu. Tudo para acompanhar um dia na extração de caranguejos no mangue. O mês é abril, o que no calendário marca o fim dos quatro meses do defeso (dezembro a março), época em que a captura dos animais é proibida. “É quando os caranguejos saem pra ‘andança’ e vão acasalar com as condessas (caranguejo-fêmea). A gente tem que respeitar esse tempo”, diz Seu Salomão, caranguejeiro e pai de Olivan.
Essas e muitas outras lições foram tiradas ali, no solo barrento onde vivem caranguejos, siris, turus, guaxinims e guarás - todos parte de um sistema ecológico muito rico e variado. A turma do curso trocou as cadeiras da sala de aula pelos troncos e raízes longas da árvore do mangueiro e aprendeu com aqueles que mais conhecem o lugar: os caranguejeiros. Além do laço, foram demonstradas as técnicas do “tapa”, do braço e do “fiapo” e suas vantagens e desvantagens para o meio ambiente.
Para a professora Miriam Luz, o momento foi especial, porque recolocou o papel do caranguejeiro no centro das atenções – uma profissão que, segundo ela, é muitas vezes desvalorizada pela própria comunidade. “Essa dinâmica serviu para que eles percebam como esses conhecimentos têm história e valor. O mangue é a vida de São Miguel, e é importante que todos daqui conheçam e saibam como preservá-lo”.
Antropologia da Pesca na Amazônia - Focados em populações pesqueiras amazônicas, como a comunidade de São Miguel, os estudos do Museu Paraense Emílio Goeldi iniciaram em 1967, através dos projetos Marapanim, Quatipuru, Marajó e Antropologia da Pesca. Esse legado gerou o Projeto Recursos Naturais e Antropologia das Sociedades Marítimas, Ribeirinhas e Estuarinas da Amazônia: Relações do Homem com o seu Meio Ambiente (RENAS), responsável pelo curso “O Manguezal tem preço?”.
A atividade integra o Projeto Valoração Econômica dos Usos Diretos e Indiretos do Ecossistema Manguezal em São Caetanos de Odivelas - PA , coordenado pela pesquisadora Maria de Nazaré do Carmo Bastos . Com financiamento da Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas, o projeto integra uma iniciativa do CCH/RENAS chamada Inventário dos Uso de Bens Culturais Tangíveis e Intangíveis nos manguezais de São Caetano de Odivelas - PA para a Valoração dos Recursos da Biodiversidade na área do manguezal. Ambas as proposições fazem parte do Programa de Estudos Costeiros, que tem como uma das principais diretrizes a capacitação de comunidades.
A antropóloga Graça Santana avalia que o trabalho junto às populações das áreas de estudo é um momento fundamental para a pesquisa - e uma contribuição importante do Museu Goeldi para o desenvolvimento local. “Além do trabalho de campo, que está em curso pelas áreas de Zoologia, Botânica e Antropologia na Ilha de São Miguel, o trabalho da educação é uma peça-chave para a comunidade, o momento de maior troca e construção do conhecimento”. “O Manguezal tem preço?” foi o primeiro curso do Museu Goeldi em 2016 com foco na Educação Ambiental.
Texto: João Cunha