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O encontro de duas Américas no interior da Amazônia
Agência Museu Goeldi – Na curva de cerca de 5km que o rio Alto Anapú faz para transformar-se na grande baía de Caxiuanã, no Pará, está a comunidade de São Sebastião. Dos 10 prédios de madeira de acapu e cupiúba alinhados ao longo do rio formando São Sebastião, três servem ao funcionamento da escola local, que recebe o mesmo nome da comunidade.
A escola municipal de São Sebastião foi a selecionada para fazer parte do projeto Lifelines/Aspectos vitais, desenvolvido em parceria pelo Museu Paraense Emílio Goeldi e o Stepping Stones Museum for Children de Norwalk, Connecticut (EUA). O projeto faz parte do Programa “ Museums Connect ” e conta ainda com a participação do Maritime Aquarium e do Creative Connections , de Norwalk, e do Instituto Transformance , de Marabá.
Vinte e cinco alunos de São Sebastião participam de formações que discutem a importância dos ecossistemas aquáticos para o Brasil e os Estados Unidos e como expressar essas informações em conteúdos artísticos e comunicacionais. Oito deles viajarão para o país norte-americano em março de 2017, para intercâmbio cultural e de educação científica.
A Escola de São Sebastião é uma das 11 que participam do Programa de Educação da Estação Científica Ferreira Penna, base de campo do Museu Goeldi na Floresta Nacional de Caxiuanã. “A escola foi a que demonstrou mais interesse e participação na Feira de Ciências das Escolas de Caxiuanã, uma das principais atividades do Programa de Educação. Por isso foi escolhida para o Intercambio”, diz Socorro Andrade, coordenadora de campo da Estação Científica Ferreira Penna e coordenadora local do Lifelines/Aspectos Vitais.
Intercâmbio - Antes da viagem aos Estados Unidos, um grupo de oito estudantes da escola Fairchild Wheeler, de Connecticut, visitou a comunidade de seus colegas brasileiros para a primeira fase do intercambio. Lá, acompanhados de professores e educadores, participaram de atividades preparadas especialmente para este momento.
Em uma cerimônia que contou com um coral de crianças da comunidade e apresentações de carimbó, os visitantes puderam expressar um pouco de suas expectativas e satisfação pela experiência que estão vivendo e ouvir um pouco sobre as histórias de vida de seus anfitriões.
“ Sou metade brasileira, meu pai é brasileiro e minha mãe é peruana, então é muito bom conhecer vocês e um pouco da minha cultura” disse a estudante americana Gabriela de Paula. Já o diretor de iniciativas estratégicas do Stepping Stones Museum, Bill Jeffries agradeceu pela recepção “Não posso expressar minha gratidão por estarmos sendo recebidos com tanto carinho, por estarem abrindo suas portas para nós. Vocês quebraram barreiras culturais rapidamente, com muito cuidado e habilidade. Isso é maravilhoso”, disse ele.
Já o galês Dan Baron, coordenador do projeto Rios de Encontro do Instituto Transformance comentou sobre a importância ecológica da Amazonia e da defesa da educação como agente transformador. “Cada estudante e professor dos Estados Unidos presente aqui hoje tem a chance de sair daqui fortalecidos sabendo que a Amazônia é viva ainda. Estamos tendo a chance de fazer o encontro de duas Américas”, disse Dan, que está intermediando a experiência dos estudantes com experiências artísticas.
Comunidade - Após uma viagem de vinte e quatro horas de barco a partir de Belém, os visitantes americanos desembarcaram no trapiche de madeira ondulante da comunidade de São Sebastião e foram recebidos por seu Jiloca, de 86 anos, o morador mais antigo da comunidade.
“ Já recebemos outros visitantes de São Paulo e outros lugares que vem ver essas ‘paragens’. Não sei, mas alguma coisa de especial devemos ter” diz Jiloca, enquanto contempla o rio e a floresta. Do trapiche, uma larga escada de madeira leva cerca de 5 metros terra acima. Lá, os visitantes encontraram com a pequena igreja local e as outras nove casas que compõem o pequeno povoado. Foram recebidos com tecnobrega e outros ritmos pelos adolescentes locais.
“ Um diferencial dessa comunidade é que são muito unidos, fazem tudo juntos” conta Ana Claudia Silva, educadora do Museu Goeldi que desenvolve trabalhos sobre a memória social na região.
Parte dessa disposição para o coletivismo fica evidente no primeiro projeto visitado pelos estudantes americanos e seus professores: o Sistema Agroflorestal (SAF) desenvolvido pela comunidade. O sistema foi trazido para a comunidade por um estudante, Rodrigo Trindade Oliveira, que teve acesso a informações sobre SAFs na Conferência Jovem de Meio Ambiente, em 2012. Rodrigo transformou a ideia em um projeto para a Feira de Ciências das Escolas de Caxiuanã e após reproduzi-lo em sua propriedade familiar, incentivou a comunidade a fazer o mesmo, até que a própria escola adotou o sistema para reaproveitar uma área inutilizada por sucessivas queimas e cultivar frutas que enriquecem a merenda escolar.
Agrofloresta - De acordo com a estudante do nono ano da Escola de São Sebastião, Jaqueline Gomes de Oliveira, os SAFs são positivos justamente porque são usados para recuperar áreas degradas com plantas uteis e por beneficiarem a merenda. “De outro modo, essas áreas demorariam muito mais pra se recuperar e ficariam cheias de ‘mato’, e não de frutas”, conta.
Os sistemas agroflorestais são uma alternativa aos cultivos que se utilizam da queima para ajudar a fertilizar ao solo, muito comuns em áreas rurais do interior do Pará – mas que o tornam inutilizável a curto prazo.
Ao invés disso, os sistemas agroflorestais tentam reproduzir as dinâmicas florestais sem utilizar fogo, com o plantio de diferentes espécies consorciadas. Assim, diferentes plantas podem agir em diferentes níveis do substrato e prestar “serviços” umas às outras, como sombra para espécies mais frágeis ao sol. Espécies com raízes mais “fortes” podem também “abrir caminho” para outras com raízes mais frágeis, e assim por diante. Em São Sebastião, são utilizados ainda fertilizantes orgânicos feitos a partir de restos de alimentos.
Os visitantes dos Estados Unidos e seus professores tiveram a chance não apenas de conhecer os SAFs locais, com suas mudas de goiaba, graviola abacaxi e outras variedades de frutas, mas a ver a colheita de um dos frutos mais tradicionais da alimentação paraense, o açaí, testemunhar seu processo de processamento e consumir sua polpa fresca.
Açaí – O estudante da quinta série do ensino fundamental Joaderson dos Santos Gonçalves escala açaizeiros usando peconha (trançado de folhas da palmeira que dão suporte aos pés) desde que tinha sete anos. É uma atividade diária, dependendo da disponibilidade do fruto, que é a base de boa parte da alimentação na vila de São Sebastião. Mães e avós da comunidade dizem, com mistura de encantamento e cansaço, que muitas crianças nem sequer comem sem o açaí como complemento das refeições.
Joaderson foi quem demonstrou aos visitantes americanos (com uma peconha feita de saca plástica) como subir na árvore, cortar o cacho de açaí com um terçado transportado no cós de sua bermuda jeans e retornar ao chão, são e salvo. Por isso ele ficou impressionado com a habilidade com que a estudante americana Maia Mneimne subiu no açaizeiro com rapidez considerável e arrancou o cacho do fruto com as próprias mãos, sem nunca ter feito isso antes. “Achei engraçado. Ela subiu ‘tudo’ estranho!”, disse ele sorrindo.
Maia revela que sua experiência prévia com escalada a ajudou nesse momento. “Eu amava escalada. Costumava fazer, alguns anos atrás. Mas agora faço só yoga, trilhas, caminhadas, bicicleta, canoagem.... Tentei [ lembrar da experiência da escalada] pra colocar meus braços, fechar meus joelhos e me impulsionar pra cima na árvore. Mas ele [Joaderson] fez um negócio com os pés que não consegui, manteve eles num ângulo que eu não podia. Ele subiu tão rápido!”, conta Maia sobre a performance de Joaderson e a sua própria.
Ela e os outros estudantes também puderam ver como o fruto é escaldado para amolecer a polpa e depois batido em uma máquina própria, onde ela é misturada com água para ser consumida pura ou com farinha, açúcar e complementos como peixe e camarão. Puderam ainda experimentar cupuaçu e uma iguaria local, feita com chá de gengibre, açúcar e macaxeira cozida. Ao final, foram presentados ainda com artesanato local, feito de materiais como ouriços de castanha e madeira.
Educação – O intercambio iniciado em São Sebastião prossegue na Estação Científica do Museu Goeldi na Floresta de Caxiuanã, onde a delegação americana poderá interagir em oficinas de ciência e arte com outros 100 jovens de outras vilas rurais amazônicas durante a VII Olimpíadas de Ciências da Floresta Nacional de Caxiuanã. As Olimpiadas são a culminância das atividades anuais do Programa de Educação do Museu Goeldi na Flona de Caxiuanã.
O principal objetivo do Programa é promover a capacitação dos professores locais e inserir temas de educação ambiental e científica nos currículos escolares. Nesse sentido, promove atividades como a Feira de Ciências, que serve para promover a elaboração de projetos no ambiente escolar e as Olímpiadas de Ciências, que juntam oficinas de ciência, atividades culturais e esportivas. Tudo para possibilitar que estudantes e professores reúnam referências para a conservação dos ecossistemas locais e o entendimento das culturas amazônicas.
A estudante do nono ano da escola de São Sebastião, Jaqueline Gomes de Oliveira conta que os estudantes locais enfrentarem grandes problemas em seu cotidiano. Uma delas é a redução da carga horária de aulas, que no campo são intervalares. De acordo com ela, antes eram 20 aulas por mês, mas mais recentemente já chegaram a ser apenas sete.
“ De seis professores que tínhamos, passamos a ter três. Já tivemos que assistir aulas com a sala muito lotada, com muito calor e o professor tendo que gritar para ser ouvido por todos. Nos esforçamos muito para nos destacar, queremos ser reconhecidos e ter nossos direitos. Não é por incompetência dos governantes que vou desistir do sonho de me formar” opina Jaqueline.
Museums Connect - O Programa é uma iniciativa conjunta da Aliança Americana de Museus e do Escritório de Assuntos Culturais e Educacionais do Departamento de Estado. Por meio de uma concorrida seleção, o Museums Connect concede prêmios para o financiamento de projetos de museus e comunidades nos Estados Unidos em parceria com instituições de outros países.
O objetivo é promover intercâmbios culturais que impactem principalmente populações jovens. Os participantes desenvolvem projetos comunitários que tratam de temas como empoderamento feminino, sustentabilidade ambiental e expansão do acesso à educação de qualidade. Em seu nono e último ano, o Museums Connect já promoveu atividades conjuntas entre museus de 30 estados americanos, mais o distrito de Columbia, e parceiros em outros 51 países.
O projeto “Lifelines/Aspectos Vitais: A convergência das Artes, Ecologia e Cultura na Amazônia e Nova Inglaterra” propõe que estudantes dos Estados Unidos e do Brasil discutam a importância dos ecossistemas aquáticos para a vida das populações dos dois países.
Em sua preparação para a vida conectada pelas mídias digitais e artes, os jovens de São Sebastião terão ajuda dos participantes da comunidade Cabelo Seco (Marabá – PA) do premiado projeto Rios de Encontro do Instituto Transformance, do projeto “Nortear”, coordenado pelo professor de cinema da UFPa, Luiz Adriano Daminello e do Laboratório de Comunicação Multimídia do Museu Goeldi.
O material produzido pelos jovens será compartilhado nas mídias e em exposições em ambos os museus. O aprendizado dos jovens brasileiros também será compartilhado com as comunidades da Flona.