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Manual de Etnobotânica reconecta saberes indígenas e ciência
Agência Museu Goeldi – O Manual de Etnobotânica – Plantas, Artefatos e Conhecimentos Indígenas é resultado de um projeto pioneiro que envolve instituições brasileiras e inglesas, com o objetivo de reconectar os povos indígenas com as observações e coleções realizadas pelo botânico britânico Richard Spruce, no século XIX. Lançada nesta terça-feira (10) no Museu do Meio Ambiente, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro , o manual faz parte de um amplo projeto que une os conhecimentos indígenas e científicos sobre plantas e seus usos guardadas em coleções de diversas instituições, assim como sistemas de classificação e visões de mundo.
Com apoio do Fundo Newton do Reino Unido, por meio do Conselho Britânico (Edital – Institutional Skills 2015), o projeto traz à tona dados e objetos coletados principalmente na Amazônia brasileira, que foram guardados em instituições inglesas há cerca de 150 anos. O Museu Paraense Emílio Goeldi é uma das instituições parceiras do projeto, coordenado pelo Jardim Botânico Real de Kew (GBR) e Jardim Botânico do Rio de Janeiro (BR) , e que também conta com a atuação do Instituto Socioambiental (ISA) , da Birkbeck – Universidade de Londres e da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) .
Pesquisadora do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e coordenadora do projeto no Brasil, Viviane Stern da Fonseca Kruel destaca a sólida parceria firmada entre as diferentes instituições: “Este projeto vem sendo uma experiência interessante e desafiadora. Ele incentiva pesquisas colaborativas, integrando equipes de pesquisadores no Brasil e Reino Unido e a perspectiva indígena atual em torno das coleções históricas de Richard Spruce sobre o Alto Rio Negro. Os conhecimentos científicos podem ser retornados aos descendentes dos povos visitados por Spruce, assim como podem complementar as informações sobre a biodiversidade da Amazônia através do repatriamento digital do material coletado por Spruce”, destaca.
A ideia central é aproximar os povos indígenas da Amazônia dessas coleções, que contam com aproximadamente 14 mil espécimes de plantas secas no herbário e 350 artefatos etnobotânicos na Coleção de Botânica Econômica de Kew. O acervo conta ainda com diários, manuscritos e cartas com descrições sobre o uso das plantas, assim como desenhos de pessoas e paisagens. Os dados e imagens dos artefatos e das amostras de plantas foram repatriadas e estão agora acessíveis em uma plataforma livre ( Herbário Virtual Reflora ), sendo disponibilizados de maneira digital aos descendentes dos povos visitados por Spruce há mais de um século, assim como ao público em geral.
Para a pesquisadora do Museu Emílio Goeldi Marlia Coelho , uma das envolvidas no estudo, o projeto marca um avanço importante nas pesquisas sobre botânica tropical na Amazônia: “Além de proporcionar o estreitamento da colaboração com o JBRJ e possibilitar a colaboração com instituições internacionais, organizações não-governamentais e indígenas, esse projeto me proporcionou conhecer e iniciar estudos sobre a região do Alto Rio Negro, tão rica em termos biológicos e socioculturais. Para o Museu Goeldi, a importância desse projeto se amplia consideravelmente, se considerarmos a missão dessa instituição devotada à Amazônia, e o envolvimento da antropóloga e atual curadora da Coleção Etnográfica, a Dra. Claudia Lopez , no projeto”, afirma.
A reconexão proposta pelo projeto estimulou o interesse dos curadores científicos sobre a importância da percepção e da participação indígenas na curadoria das coleções bioculturais – prática já incorporada à atuação do Museu Goeldi tanto nos estudo dos itens resguardados nos acervos quanto na montagem das exposições que contam com objetos da cultura material das populações indígenas amazônicas.
Para as pesquisadoras do Goeldi o projeto do Manual de Etnobotânica pode também ser um subsídio importante para as reivindicações dos povos indígenas para garantir seus modos tradicionais de viver. “Ademais, através do repatriamento virtual das coleções bioculturais, pretende-se incentivar a pesquisa sobre recursos naturais, sustentabilidade e saúde feita pelos próprios indígenas de maneira colaborativa com os cientistas”, acrescenta Marlia.
O coordenador do projeto no Jardim Botânico Real de Kew, William Milliken reforça a aproximação que o estudo faz entre os saberes indígenas e o conhecimento produzido pelo naturalista Spruce: “Compreender a relação entre plantas, pessoas e culturas é vital, não somente para o passado, como também para o futuro. Nosso acervo de Kew, que inclui os objetos, espécimes e notas coletados por Richard Spruce no século XIX, proporciona um olhar sobre o passado. Trabalhar com culturas locais, hoje , é igualmente importante. O caminho a seguir é conectar a comunidade científica com as comunidades locais, visando entendimento mútuo. Nosso projeto contribuiu para o estabelecimento de uma rede de colaboração no Alto Rio Negro, mas é apenas um começo. Precisamos continuar trabalhando juntos, através da Amazônia e além”, enfatiza.
Na oficina de Botânica que ocorreu em novembro de 2016 no município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, participantes das etnias Tukano, Tuyuka, Desana, Yebamasã, Baniwa, Koripaco e Pira-Tapuya apresentaram diversas pesquisas relativas à agrobiodiversidade, cultura material, paisagens florestais, cultivo da pimenta Baniwa e sobre os ciclos anuais do rio Tiquié. Esse último estudo está relacionado a um longo programa de colaboração entre o ISA e pesquisadores indígenas na região, denominados Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (Aimas). Iniciado em 2005, o programa resultou numa ampla gama de publicações e materiais educacionais relacionados ao manejo ambiental, gestão territorial, cultura, história e tecnologia.
Espera-se que essas informações e atividades de treinamento possam contribuir para que os povos indígenas da região continuem promovendo e fortalecendo seus conhecimentos e práticas.
"Esse projeto faz parte de um esforço mais amplo de conectar as comunidades indígenas à produção de conhecimentos e pesquisas relevantes sobre a região, em um ambiente colaborativo envolvendo especialistas de diferentes disciplinas e instituições", afirma Aloisio Cabalzar, antropólogo e coordenador adjunto do Programa Rio Negro do ISA. "Nesse caso, esse projeto traz uma contribuição importante para o entendimento da diversidade ambiental e, potencialmente, para a sustentabilidade da região do Rio Negro, através de um programa de pesquisa etnobotânica".
Tradução e distribuição – Dagoberto Lima Azevedo, pesquisador Tukano que participou da Oficina em São Gabriel da Cachoeira, ressalta a importância do Manual de Etnobotânica estar sendo traduzido para as línguas Baniwa e Tukano, em versão digital. Dagoberto é responsável pela tradução para o Tukano, uma das três línguas indígenas co-oficiais em São Gabriel. “Para fortalecer e dar maior visibilidade ao nosso trabalho, estamos preparando as traduções para as línguas indígenas. Com isso, vamos atender as demandas locais por conhecimento botânico da Amazônia, tanto para as escolas indígenas da região, como para as associações de bases”, afirma.
O manual impresso será distribuído para instituições e para as comunidades indígenas da região do Rio Negro. A versão digital pode se acessada pelo ISSUU e estará disponível nos websites das instituições parceiras.
Richard Spruce – O botânico inglês Richard Spruce (1817-1893) percorreu a América do Sul no século XIX, estudando as plantas da Amazônia, do Norte dos Andes peruanos e do Equador, coletando-as e enviando-as para a coleção do Jardim Botânico Real de Kew, na Inglaterra. Durante sua expedição, que durou 15 anos, de 1849 a 1864, a região do Rio Negro foi a que mais o encantou, coletando ali o maior número de espécies e gêneros desconhecidos. Além disso, Spruce fez anotações sobre o modo de viver e falar dos povos indígenas da região, desenhando retratos das pessoas e paisagens que encontrava. Ele também enviou para a Inglaterra vários artefatos, incluindo ornamentos rituais e utensílios do dia-a-dia, que se encontram ainda hoje preservados nos acervos de Kew e do Museu Britânico.
Texto: Jardim Botânico do Rio de Janeiro , Instituto Socioambental e Museu Goeldi