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Exposição digital conta a história de luta dos Kayapó
Agência Museu Goeldi - O Museu Americano de História Natural (AMNH, sigla em inglês), o Programa de Pós-Graduação em Antropologia de Museus da Universidade de Columbia, ambos localizados na cidade de Nova Iorque, e o Museu Paraense Emílio Goeldi, sediado em Belém do Pará, lançam nesta quarta, dia 08 de julho, a exposição digital “A câmera é nossa arma” sobre os indígenas de etnia Mebêngôkre (Kayapó).
A exposição inclui fotos e vídeos produzidos pelos próprios Kayapó, entrevistas com lideranças e uma vitrine em 3D, que será inaugurada presencialmente na Sala dos Povos Indígenas da América do Sul, quando o AMHN retornar às atividades, paralisadas em função da pandemia do novo coronavírus.
O título faz referência a uma frase de Kiabieti, pioneiro cineasta Kayapó que participou da filmagem da Constituinte em 1988. “O vídeo é nosso arco e flecha, é nossa arma”, declarou ele em entrevista à National Geographic, em 2015.
“Os Kayapó têm uma capacidade fenomenal de incorporar e apropriar armas, adornos, nomes, canções e outros bens culturais capturados de seus inimigos. O uso da câmera como uma arma de autodefesa cultural e territorial parece ser uma nítida extensão dessa tradução antiga dos Kayapó de capturar e apropriar tais troféus de guerra. A câmera virou literalmente uma borduna na mão deles”, conta o antropólogo Glenn Shepard, pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi e um dos idealizadores da exposição.
Curadoria - A exposição é um resultado do curso “Culturas em Exposição”, realizado pelo AMNH em parceria com a Universidade de Columbia.
Ofertado anualmente desde 2015, o curso envolve os estudantes do programa que, em colaboração com professores, técnicos do AMNH e especialistas convidados, passam durante um semestre por todas as fases de desenvolvimento de uma exposição, desde a concepção original à seleção de objetos, textos e design final da vitrine.
Glenn Shepard participou como professor visitante do curso durante o primeiro semestre de 2020, junto com o designer de exposições David Harvey e a curadora de etnologia asiática, Laurel Kendall, do AMNH. Nesse mesmo semestre, o grupo contou também com a colaboração de cineastas e caciques Kayapó de diferentes aldeias.
“Devido ao meu trabalho com povo Kayapó há mais de 10 anos e também com a ajuda da doutora Laura Zanotti, da Universidade de Purdue, consultamos cineastas e caciques Kayapó de diferentes aldeias ao longo do processo de preparação da exposição, seleção e, em alguns casos, autoria das fotos que aparecem na vitrine, assim como da seleção dos vídeos que compõem o componente online da exposição”, explica Shepard.
“Através desses contatos com diferentes membros do povo Kayapó, consegui localizar um dos lideres Kayapó, Kubei, que visitou Nova York em 1990 e conheceu a exposição no AMNH sobre povos indígenas da Amazônia, logo após a sua inauguração há mais de 40 anos. Kubei lutou juntou com ativistas históricos como cacique Raoni e Paulinho Paiakan no final dos anos 1980 contra a usina de Belo Monte. O cineasta Kayapó Pat-I foi visitar Kubei na sua aldeia em março de 2020 e realizou uma entrevista com o ancião sobre as suas lembranças da visita ao Museu em 1990, o seu histórico de ativismo e as suas percepções e intervenções naquele tempo sobre a exposição Kayapó (ele pintou e deu adornos corporais ao seu “amigo”, o manequim de um guerreiro Kayapó que continua na exposição até hoje). Com ajuda de Laura Zanotti, a entrevista foi traduzida e legendada e aparece na versão online da exposição”, relata ainda o antropólogo.
Dinamismo e sobrevivência - Sociedade indígena dinâmica com mais de 12.000 pessoas, o povo Kayapó se autodenomina como Mẽbêngôkre.
“Sobreviventes de séculos de guerra e migração forçada, [os Kayapós] usam sua herança guerreira para proteger as suas terras de novos invasores. Os Kayapó apropriam novas tecnologias e estilos, incorporando-os de maneiras que são distintamente Kayapó. Por exemplo, eles misturam ritmos brasileiros com letras em Kayapó para criar o ‘Kaya-Pop’”, relata a exposição.
Com uma mensagem sobre dinamismo cultural, capacidade de mudança e sobrevivência, a exposição é lançada em um contexto preocupante para os povos indígenas em todo o país.
Segundo os dados do Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena até o dia 04 de julho, 11.385 indígenas foram infectados pelo novo coronavírus em todo o Brasil. São 124 povos indígenas com casos de contaminações e o registro de 426 mortes nesses territórios. Os estados com mais registros de mortes de indígenas por Covid-19 são o Amazonas, com 162; seguido do Pará, com 74; Roraima, com 43; Mato Grosso, com 41; e Maranhão, com 26.
De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), entre os indígenas mortos pela Covid-19, sete eram do território Kayapó localizado no Pará, onde foram confirmados até o momento 434 casos de pessoas atingidas pela doença. Entre as lideranças indígenas falecidas em virtude da Covid-19, estão Bepkaroti, cacique da aldeia Katete; o professor e intelectual Bepkraipo; Bepkororoti, conhecido mundialmente como Paulinho Paiakan; e Zé Yté Kayapó, reconhecido guardião de conhecimentos ancestrais, que colaborou com o antropólogo Darrell Posey no contexto do Projeto Kayapó, coordenado pelo Museu Goeldi.
Como o vírus está se espalhando rapidamente entre várias aldeias Kayapó, a organização indígena Associação Floresta Protegida criou um fundo emergencial especial para arrecadar recursos que permitam a realização de intervenções médicas nas aldeias mais afetadas.
Para Shepard, apesar da exposição não tratar especificamente do tema da pandemia e de abordar apenas um entre as centenas de povos indígenas da Amazônia, a sua mensagem é muito relevante no presente momento.
“A exposição fala sobre a resistência histórica do povo Kayapó, que migrou cerca de 1.600 quilômetros do cerrado do Brasil Central até a Amazônia para se defender contra os invasores portugueses. A exposição trata da luta do povo Kayapó, em conjunto com outros povos da floresta, contra a usina hidrelétrica de Belo Monte. A exposição aponta esse espírito guerreiro do povo Kayapó, a sua capacidade e criatividade em se adaptar ao mundo moderno e em defender sua cultura e seus territórios”, aponta o pesquisador.
Estética Kayapó - Considerando a capacidade dos Kayapó de se apropriarem de tecnologias de outros povos, transformando-as em seu próprio patrimônio cultural, a vitrine que fará parte da Sala dos Povos Indígenas da América do Sul do AMHN, também disponível em versão 3D, destaca como artefatos indígenas uma câmera que pertencia a uma aldeia Kayapó; um cocar de canudos de plástico; uma braçadeira de miçanga com a bandeira do Canadá, que indica a parceria com o país; um colar peitoral de miçanga e alumínio; e uma cabaça com pintura corporal de jenipapo.
Todas as peças foram coletadas entre os Kayapó por Shepard, com contribuições também da pesquisadora Janet Chernela, da Universidade de Maryland.
Disponível tanto em inglês quanto em português, a versão digital inclui, entre outros recursos, seis curta-metragens, sendo a maioria de autoria de cineastas Kayapó.
Quando questionado sobre as características da produção audiovisual Kayapó, Shepard destaca a sua relação com os processos ritualísticos, assim como as habilidades dos cineastas em filmar os eventos nas aldeias com muita qualidade e naturalidade.
“Como foi indicado pelo falecido antropólogo Terrence Turner, que introduziu as primeiras câmeras de vídeo junto aos Kayapó no final dos anos (19)80, o processo de filmar para eles representa uma extensão do próprio processo ritual. Os Kayapó são cineastas natos, parece que a longa experiência desde jovens em cerimônias públicas espetaculares deixa os cineastas deste povo especialmente preparados para filmar eventos rituais com muita qualidade e naturalidade”, explica.
Os curtas disponíveis apresentam temas variados e incluem filmes sobre a coleta da castanha-do-Pará, o trabalho na roça e a festa da Mandioca assim como um trailer em formato contemporâneo para a Semana dos Povos Indígenas e uma versão Kaya-Pop do clássico dos Beatles, “Hey Jude”.
“Mesmo cineastas novatos produzem filmes de alta qualidade, mas a estética de filmagem é algo bem único, refletindo as normas estéticas dos Kayapó. Os cineastas têm muita habilidade e estabilidade em manusear a câmera, especialmente para filmar as danças circulares. Eles capturam todos os momentos essenciais de cada ritual e fazem um esforço de incluir todos os participantes”, completa o antropólogo.
A exposição contou com a colaboração de cineastas indígenas do projeto Kôkôjagõti e do Coletivo Beture, entre outros videógrafos e fotógrafos Kayapó. Nela, também são destacadas imagens cedidas pelo fotojornalista Dado Galdieri.
Serviço | Exposição virtual “A câmera é nossa arma”
Dia: 08 de julho (quarta)
Link: https://archaeology.columbia.edu/video-guerreiros-kayapo/
Texto: Brenda Taketa