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Estudo inédito revela impactos da caça comercial na Amazônia no século XX
Agência Museu Goeldi - A caça comercial deixou profundos impactos na Floresta Amazônica durante o século XX. Mas também deixou uma verdadeira “mina de ouro” em documentação histórica – que aponta direcionamentos para o manejo de fauna na Amazônia nos dias atuais. Um estudo brasileiro, que acaba de ser publicado na prestigiada revista Science Advances, avalia pela primeira vez a resiliência da fauna amazônica sob a perspectiva do comércio internacional de peles e couros silvestres. A pesquisa mostra que, enquanto a caça comercial causou o colapso das populações de espécies aquáticas, a maioria das espécies terrestres, porém, mantiveram extrações relativamente consistentes ao longo do tempo.
A pesquisa, liderada pelo especialista em fauna André Antunes, ligado à Wildlife Conservation Society Brasil (WCS Brasil), revela que, entre as décadas de 1930 e 1960, as 11 principais espécies exploradas comercialmente movimentaram cerca de US$ 500 milhões (reajustados para o ano base de 2015) nos estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima. O estudo estima ainda que, entre 1904 e 1969, um total de 23,3 milhões de animais, de 20 espécies de mamíferos e répteis selvagens, foram caçados para a extração de suas peles nesses quatro estados.
Os autores afirmam, porém, que esses números são subestimados: “É impossível de contabilizar os animais mortos em decorrência de ferimentos graves, ou mesmo as peles contrabandeadas ou não aproveitadas devido ao mal estado de conservação”, aponta a pesquisa de Antunes, que é resultado de um doutorado sanduíche realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e Universidade de Auckland (Nova Zelândia), ao lado dos pesquisadores Rachel Fewster (orientadora pela Universidade de Auckland), Eduardo Venticinque (orientador pelo INPA) e Glenn Shepard (co-orientador pelo Museu Paraense Emílio Goeldi). Colaboraram também para o estudo Carlos Peres (Universidade de East Anglia, do Reino Unido), Taal Levi (Universidade do Estado de Oregon, EUA) e Fábio Rohe (INPA).
Mercado - Segundo o levantamento de fontes históricas, pautavam a praça comercial de Manaus peles e couros de onça-pintada, maracajá-açu, maracajá-peludo, ariranha, lontra, queixada, caititu, veado-vermelho, capivara, peixe-boi, anta, cutia, jacaré-açu, jacaré-tinga, iguana, sucuri, jiboia, jacuraru e jacuruxi.
“O comércio de peles em Manaus, previamente mínimo e focado no veado-vermelho, se diversificou e intensificou logo após a crise nos preços da borracha em 1912. Atingiu um pico primeiro nas décadas de 1930 e 1940 e um segundo pico durante a década de 1960, ambos impulsionados pela aceleração nos preços das peles devido à demanda crescente pelos mercados dos Estados Unidos e Europa”, afirmam os autores.
Apesar de, no Brasil, a caça ter sido oficialmente proibida em 1967, brechas permitindo o comércio de peles armazenadas e a baixa fiscalização facilitaram a caça ilegal, até a ratificação da Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Extinção (CITES), em 1975. O comércio clandestino de peles silvestres persistiu até os anos 1980, quando a demanda internacional começou a diminuir em resposta à intensificação da CITES e ao declínio da popularidade de peles na indústria da moda. Finalmente, a conferência ECO 92 consolidou a consciência ambiental internacional em 1992.
Os autores discutem a resiliência diferencial à caça comercial entre espécies terrestres e aquáticas, contrastando o acesso à fauna nesses dois ambientes. “Enquanto as áreas alagáveis representam cerca de 12% da Amazônia centro-ocidental brasileira, a grande maioria das habitações humanas são estabelecidas ali, além do que, o acesso é facilitado pelo uso de embarcações, o principal meio de transporte na região onde não há estradas; em contraposição, as florestas de terra firme, além de muita mais extensas, são restritamente acessadas por meio de caminhadas, garantindo extensos refúgios para a fauna. Os refúgio mantém populações íntegras onde as espécies podem se reproduzir livremente da caça, e, através da migração, podem repor os indivíduos caçados nas áreas mais próxima das habitações humana”, diz o estudo.
Conservação - Esse mecanismo, conhecido por dinâmica populacional de fonte-sumidouro (“source-sink dynamics”), é em grande parte garantido pelo modelo tradicional de ocupação humana na Amazônia, caracterizado por aldeias e comunidades ribeirinhas dispersas em meio às extensas paisagens naturais. “Esse deve ser o principal mecanismo de resiliência da fauna à caça na Amazônia”, concluem os autores.
No entanto, o queixada, vital para a manutenção de funções ecológicas e um dos poucos ungulados (grupo de mamíferos que apresentam cascos nas extremidades dos membros) florestais que vivem em grupos enormes, parece ter sido seriamente sobre-explorado. Essa espécie merece especial atenção do ponto de vista da conservação e gestão da fauna, principalmente em unidades de uso sustentável e terras indígenas, onde a regulamentação no uso dos recursos naturais tem encontrado respaldo nas políticas socioambientais atuais.
Os autores alertam que o sistema que deu suporte à resiliência das espécies terrestres até mesmo durante o apogeu da era das peles na Amazônia deve entrar em colapso quando a floresta é desmatada ou fragmentada, diminuindo os efetivos populacionais da fauna através da perda de habitat e do aumento do acesso às áreas que até então serviam como refúgios ou fontes. “Se quisermos garantir a conservação da fauna e a soberania alimentar das centenas de povos tradicionais amazônicos, será necessária a manutenção da interconectividade da floresta e dos rios para além dos limites de unidades de conservação e territórios indígenas”, ressalta o estudo.
Texto: produzido com a colaboração de Glenn Shepard Jr.