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Aviamento foi imposto a indígenas pela colonização e se reproduz até hoje
Agência Museu Goeldi - “Sempre me surpreendo com a enorme criatividade e capacidade de reinvenção dos povos indígenas, mesmo diante de tantas barbáries que caracterizam o processo colonial com o qual se confrontaram. Mas, me surpreendo ainda mais com o cinismo dos ‘vencedores’ de sempre”. O desabafo do antropólogo e historiador Márcio Meira resume o que encontrou em sua análise acurada do que viveram as populações originárias da grande bacia do rio Negro a partir do século XVII. Pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi e ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), ele acaba de defender a tese “A persistência do aviamento: colonialismo e história indígena no noroeste amazônico” no programa de Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Seu estudo foi recomendado pela banca para concorrer a melhor tese da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação (MEC).
Evidências arqueológicas e linguísticas dão conta de que povos da fala Tukano, Aruak e Maku ocupam há pelo menos três mil anos o território localizado na tríplice fronteira do Brasil, Venezuela e Colômbia. No entanto, foi com o início do processo colonial, nos anos 1640, que os indígenas passaram a ser submetidos ao sistema de escambo a crédito, em que compradores adiantam mercadorias aos vendedores, que por sua vez usam produtos como pagamento. Criava-se, desta maneira, uma relação de dívida e uma rede hierárquica de dominação entre patrões e fregueses. No período da borracha, a evolução desse regime de escravidão por dívida a que foram subjugados os indígenas não raro era acompanhado por abuso sexual, tortura e morte.
“Em memória de Izabel Garcia” – Em delicada relação com o trabalho de investigação acadêmica e sensível às vítimas do sistema de aviamento, conhecido por este nome apenas no século XX, Márcio Meira dedica sua tese “em memória de Izabel Garcia”, mulher indígena do noroeste amazônico assassinada em 1914. Como milhares de outras mulheres e crianças, ela foi estuprada e chicoteada até às últimas consequências, a mando do dono do barracão em que ficava confinada, o espanhol Diogo Gonçalves, comerciante de borracha e piaçaba. É possível que ela tivesse outro fim trágico: planejava envenenar-se e envenenar seus filhos, dadas as grotescas condições impostas ao seu cotidiano.
O pesquisador explica que Izabel Garcia “representa um raro ‘nome’, mesmo sem rosto, de tantas pessoas anônimas que foram vítimas do processo colonial. De certa forma, ao ‘resgatar’ do esquecimento sua história, procuro hoje fazer um ato de justiça histórica, a única que a ela restou”, explica Meira.
Foi numa série documental do antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), localizado no arquivo do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, que Márcio Meira tomou conhecimento de parte da dramática trajetória de Izabel Garcia. A sua análise também considerou documentos encontrados nos acervos do Arquivo Público do Pará, do Museu Goeldi, da Diocese de São Gabriel da Cachoeira e do Museu Amazônico, em Manaus. Além de relatos impressos de missionários jesuítas, militares e naturalistas viajantes, Meira ainda lançou mão de entrevistas realizadas por ele em pesquisas de campo na região ao longo da década de 1990. Foi um minucioso e longo trabalho interdisciplinar, que contemplou metodologias antropológicas e historiográficas.
Precursores – Márcio Meira ressalta que o sistema de aviamento alvo de seu trabalho não é um tema novo, pelo contrário, é um tema clássico na Amazônia. Exemplo disso são as análises do também pesquisador do Museu Goeldi, Eduardo Galvão, nos anos 1950 e 1960. Antes dele, Charles Wagley já o havia estudado em seu célebre “Uma Comunidade Amazônica”, no município paraense de Gurupá. A própria tese faz referência a muitos dos estudiosos do aviamento, que se dedicaram sobretudo ao contexto da economia da borracha, como o professor Roberto Santos, em seu “História Econômica da Amazônia”, que é referência na área. Meira pondera que seu trabalho foi seguir a trilha deixada por vários estudos, “focando na história indígena do Noroeste Amazônico, e enfatizando a gênese colonial desse sistema e sua continuidade naquela região, onde ganhou no período áureo da borracha uma feição de barbárie, muito semelhante ao que ocorria, por exemplo, no rio Putumayo, na fronteira do Peru e Colômbia”.
Após o extenso trabalho de coligir documentos, entrevistar e analisar, que resultou em mais de 300 páginas escritas para tese, Márcio Meira constata que, a despeito da escravidão e do comércio associados ao aviamento, os povos indígenas do noroeste amazônico conseguiram conservar e renovar seu antigo sistema social regional, “fluido e aberto”.
Mas, o cientista do Museu Goeldi alerta: o cruel sistema colonial do aviamento se atualiza e se reproduz. Ele “está vivo nas relações de exploração entre comerciantes e indígenas tanto na produção e comercialização de itens extrativos, como a piaçaba e o cipó titica, como também nos procedimentos ilegais de apropriação por alguns comerciantes dos cartões do bolsa família e da previdência especial indígena, que são usados para o ‘pagamento’ das ‘dívidas’ das famílias indígenas. É o que eu denomino de ‘aviamento eletrônico’”, pontua o antropólogo e historiador ao mostrar como se modernizam as formas de exploração.
Clique no link para saber mais sobre Izabel Garcia e o impacto do sistema de aviamento em populações indígenas no noroeste amazônico com a crônica do professor José Ribamar Bessa Freire , orientador da tese de Márcio Meira.
Texto: Erika Morhy