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A área mais ameaçada da Amazônia brasileira
Agência Museu Goeldi – O território que registra o maior índice de desmatamento do bioma amazônico está situado entre o oeste do Maranhão e o leste do Pará, e se destaca por grande diversidade cultural e biológica sustentada pela conexão entre terras indígenas e uma reserva biológica. Formalizar esse território como Mosaico Gurupi e reconhecer um corredor ecológico na região são ferramentas urgentes para consolidar sua capacidade de resistência à predação ambiental e à violência étnica predominantes. Essa é a proposta de 16 pesquisadores que assinam artigo recém-publicado na revista Estudos Avançados, da Universidade de São Paulo (USP).
A primeira autora do artigo “Corredor Etnoecológico da Amazônia Maranhense: conectando áreas protegidas do Mosaico Gurupi” é Danielle Celentano Augusto , engenheira florestal com pós-doutorado em Agroecologia e professora da Universidade Estadual do Maranhão. Entre os autores está Marlúcia Bonifácio Martins , bióloga com pós-doutorado em Ecologia e Evolução e pesquisadora titular do Museu Emílio Goeldi. Os pesquisadores apresentam vários argumentos científicos para apoiar as ações na esfera federal e estadual.
Na definição do Ministério do Meio Ambiente (MMA), um mosaico de unidades de conservação é um modelo de gestão que busca a participação, integração e envolvimento dos gestores das unidades e da população local na gestão das mesmas, com o propósito de compatibilizar a presença da biodiversidade, a valorização da sociodiversidade e o desenvolvimento sustentável no contexto regional. O reconhecimento de um mosaico se dá quando existir um conjunto de unidades próximas, justapostas ou sobrepostas, pertencentes a diferentes esferas de governo ou não.
O processo de formalização do mosaico é responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente. Atualmente existem 15 deles no país. O Mosaico do Gurupi está proposto desde 2014 e corresponderia a um território de 17,9 mil quilômetros quadrados. Em paralelo, é preciso garantir também a segurança da conectividade entre as áreas protegidas do mosaico, protegendo os interstícios entre elas, como as matas ciliares de recursos hídricos daquela região (rios Gurupi, Pindaré, Buriticupu e Zutiua), que precisam ser restauradas ecologicamente. E para isso é necessário o reconhecimento oficial do Corredor Ecológico da Amazônia Maranhense pelo Governo Estadual.
Os cientistas defendem que, a partir dessas duas medidas, haverá sustentação jurídica para “orientar a proteção do território, potencializar o acesso a políticas públicas de fomento e outros mecanismos de financiamento que aumentem o potencial de conservação, proteção e restauração na região”. Danielle Celentano alerta que os autores procuram demonstrar “a grande diversidade biológica e cultural da região, o estado de devastação associado a violência e atividades ilegais e, principalmente, a necessidade de esforços integrados do poder público e da sociedade para garantir a restauração ecológica, pois, esta região se configura como uma área prioritária para a restauração na Amazônia”.
Perfil – O Mosaico Gurupi contempla seis Terras Indígenas (Alto Turiaçu, Awá, Caru, Arariboia, Rio Pindaré, Alto Rio Guamá) e uma Unidade de Conservação, a Reserva Biológica do Gurupi (Rebio Gurupi). Nele, foi identificada uma riqueza de fauna e flora que inclui mais de 46 espécies endêmicas e ameaçadas de extinção.
Nesse território também se encontra uma das etnias mais ameaçadas do mundo, a Awá-Guajá, população altamente vulnerável, constituída por grupos isolados, nômades e com hábitos caçadores-coletores. E com essa situação limite de perigo, os autores ressaltam a importância de garantir os direitos dos povos indígenas.
Na zona de amortecimento da Rebio Gurupi existem 108 Projetos de Assentamento (PA) de reforma agrária. Além disso, a área de influência do Mosaico Gurupi é cortada pelas rodovias BR-316, BR-222 e pela Estrada de Ferro Carajás (EFC), que desde 2012 passa por um processo controverso de duplicação. Nessa área estão abrangidos integralmente quatro municípios maranhenses (São João do Carú, Alto Alegre do Pindaré, Buriticupu e Bom Jesus das Selvas), e parcialmente outros 22 municípios no Maranhão e oito no Pará, por onde passam os rios Gurupi, Pindaré, Turiaçu, Buriticupu, Zutiua e Guamá, entre outros tributários.
A pesquisa identificou graves ameaças ao patrimônio incluído na área de abrangência do Mosaico Gurupi. O desmatamento predatório é uma delas, produzido por grandes projetos agrícolas, construção de estradas, exploração madeireira e atividade mineral. Após ciclos de intenso impacto, marcadamente nas décadas de 1960, 1970 e 1980, chegou-se a 2016 com um dramático cenário: estavam desmatadas 17,2% da área florestal original dentro de áreas protegidas formalmente. Além disso, comunidades indígenas passaram a sofrer com o assoreamento dos rios e a diminuição da oferta de animais de caça, que impactam diretamente na sua fonte alimentar.
Mas há quem obtenha vantagens com as atividades predatórias. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (Pnuma) e a Interpol, o crime ambiental figura como a quarta atividade ilegal mais lucrativa do mundo.
Os danos ambientais são agravados por atividades rurais, como a pecuária, que extrapolam o impacto florestal mais imediato. “O processo digestivo do gado emite grandes quantidades de gás metano, gás de efeito estufa que causa o aquecimento climático”, relatam como exemplo os autores do artigo. Também ocorre “o ataque ao rebanho por predadores silvestres, como a onça pintada, que acabam por ser abatidos pelos moradores locais, em uma região onde deveriam ser protegidos”, acrescentam os pesquisadores.
As opções de produção geram riquezas para alguns e ampliam os problemas ambientais. Dados de 2014 do IBGE levantados pelos autores mostram que hoje o Maranhão é o maior produtor de carvão vegetal da Amazônia Legal.
É uma cadeia de fatores iniciada pelo desrespeito aos limites da Rebio Gurupi e às terras indígenas que causam tensões e deixam todos vulneráveis.
Direitos humanos – As atividades predatórias têm gerado situação tensa junto às populações indígenas e não-indígenas pobres, conforme identificou o estudo, provocando violações aos direitos humanos, como assassinatos e manutenção de pessoas em regime de trabalho análogo à escravidão. O artigo cita que, entre 2010 e 2016, pelo menos 30 indígenas foram assassinados no Maranhão e outros 12 no Pará.
A falta de assistência do Estado na oferta de serviços e instituições públicas às comunidades indígenas e rurais propiciam também o aparecimento de patronos que compram sua aceitação junto a população local. Madeireiros e carvoeiros oferecem, por exemplo, transporte de água e emergências de saúde, abertura e melhoria de áreas de circulação. “Por isso, as ações repressivas não terão resultado enquanto não forem acompanhadas de políticas e investimentos que atendam às necessidades das comunidades”, alertam os pesquisadores.
Recomendações – Marlúcia Martins é direta ao justificar o estudo, que recomenda tanto o reconhecimento do Mosaico Gurupi, por parte do MMA, quanto a criação da Lei Estadual de Desmatamento Zero, pelo Maranhão: “Nossa expectativa é fornecer aos gestores argumentação cientifica sólida para justificar ambas as ações, que concretizam anseios da sociedade”.
“Este artigo praticamente nos foi encomendado pelo conselho da Rebio Gurupi, que reúne comunidade científica, sociedade civil organizada e representantes de povos indígenas tanto do Pará quanto do Maranhão”, explica Marlucia. Esses segmentos, desde 2014 estão dedicados em viabilizar ferramentas de gestão territorial para solucionar os graves conflitos encontrados no Vale do Gurupi, garantindo a conservação e restauração ambiental, o provimento dos serviços ecossistêmicos (importantes para todas as atividades produtivas) e a integridade das áreas protegidas e dos direitos humanos.
No artigo, os autores propõem uma série de medidas: “que se estabeleçam novas Unidades de Conservação, o que pode ser viabilizado economicamente por meio de mecanismos de compensação de Reserva Legal, previstos no novo Código Florestal. É preciso ainda restaurar as áreas já degradas do Mosaico Gurupi, assim como os passivos ambientais de APP [Áreas de Preservação Permanentes] e RL [Reserva Legal] das propriedades privadas e dos assentamentos rurais na Área de Influência do mosaico. Nestes casos, pode-se apostar tanto em processos naturais quanto nas intervenções humanas intensas, quando as áreas se apresentarem muito degradadas”. Os autores recomendam especificamente ao Maranhão que fortaleça suas políticas florestais e proíba o desmatamento na região amazônica, por meio da Lei Estadual de Desmatamento Zero. A expectativa é converter a região em um exemplo de conservação e sustentabilidade econômica e social.
Texto: Erika Morhy