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Museu - Registro de poeta Mário Andrade enaltece Belém
Na década de 1920, do século passado, um dos maiores escritores do país,
domingo, 01/05/2022, 05:57 - Atualizado em 01/05/2022, 05:56 - Autor: Cintia Magno / Diário do Pará
“Em Belém o calorão dilata os esqueletos e meu corpo ficou exatamente do tamanho de minha alma”. O relato escrito pelo poeta Mário de Andrade consta em seu diário de viagens no dia 23 de maio de 1927. Apesar dos 95 anos passados, a descrição do clima quente bem poderia ser a da capital paraense hoje, em 2022. Um dos fundadores do modernismo brasileiro, o autor de ‘Macunaíma’ deu início, ainda nos anos 20, a uma viagem, passando pela capital paraense. Da experiência vivenciada na Amazônia, ele deixou não apenas relatos apaixonados, como também fotografias que, ainda hoje, apresentam a Belém vista pelo olhar do escritor, a Belém de Mário de Andrade.
Professor do curso de Letras e do mestrado e doutorado em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia, o poeta Paulo Nunes lembra que Mário de Andrade deu início à viagem que incluiu a capital paraense patrocinado por dona Olívia Guedes, ‘baronesa do café’. Mais do que um passeio, a expedição tinha uma relação muito próxima com os ideais valorizados pelo próprio movimento modernista. “Mário de Andrade, investido na sua função de um curioso ‘pesquisador de campo’ resolveu percorrer o Brasil grande para conhecê-lo melhor, na fonte”, explica o professor, que também é curador do acervo Dalcídio Jurandir do Fórum Landi/projeto Moronguetá (FAU/UFPa) e consultor da Casa de Cultura Dalcídio Jurandir, em Niterói (RJ). “É bom lembrar que um dos objetivos do Modernismo era redescobrir os Brasis contidos no Brasil. Mário, na minha opinião, foi o intelectual modernista que mais exercitou o conhecimento do ‘outro’, a cultura alheia: diferente do que ele conhecia em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais”.
As experiências vivenciadas por Mário em Belém são descritas, por várias vezes, em escritos organizados em formato de diário, material que resultou no livro ‘O Turista Aprendiz’, que também abarca os relatos das experiências vivenciadas em outras cidades das regiões Norte e Nordeste do país, incluídas na expedição nomeada como ‘Viagem pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega’.
Ainda que muitos aspectos de Belém tenham despertado o interesse do poeta, o professor Paulo Nunes destaca que um lugar, em especial, o fisgou. “Mário se fascinou por muita coisa de Belém, achava a cidade meio malaia, meio indígena, meio indiana, marcada pelo forte suor que empapava a todos que usavam roupas francesas na época. Admirava sentar e tomar sorvete na terrace do Grand Hotel. Mas sua preferência era mesmo ir ao Ver-O-Peso, observar o cotidiano da cidade, olhar os barcos à vela na baía do Guajará”.
No dia 23 de maio de 1927, Mário deixa evidente o encantamento pelo principal cartão-postal da cidade das mangueiras. “Belém me entusiasma cada vez mais. O mercado hoje esteve fantástico de tão acolhedor. Só aquela sensação do mungunzá!...”, escreve, ao descrever a lida dos trabalhadores na feira. “Sentada no chão, era uma blusa branca branca numa preta preta que levantando pra nós os dentes os olhos e as angélicas da trunfa, tudo branco, oferecia com o braço estendido preto uma cuia envernizada preta donde saía a fumaça branquinha do mungunzá branco branco... Tenho gozado por demais. Belém foi feita pra mim e caibo nela que nem mão dentro de luva”.
Além do Ver-o-Peso, porém, o modernista também teve curiosidade de visitar o Museu Paraense Emílio Goeldi e ainda foi às praias do distrito de Mosqueiro, com direito a registro fotográfico do banho em meio às ondas de água doce. Além de Belém, também visitou outras regiões do Estado, como a Praia do Caripi, em Barcarena, e o Marajó. “Há registros radiofônicos de Mário em terreiros de religiões de terreiro, de bois-bumbás; Mário não se cansava de andar e fotografar, anotar. Acredito que Mário foi preparado por Manuel Bandeira, seu grande amigo, para amar Belém e olhá-la de modo original”, acredita Paulo Nunes. “Vejo que para Mário, Belém não era europeia, nem americana, nem indígena, nem africana, mas era tudo junto e misturado”.
Mais do que o rico material fotográfico e os relatos em forma de diário, as impressões de Mário sobre Belém também influenciaram, em alguma medida, a sua obra literária. “Mário, em sua viagem era total imersão no clima, paisagem, pessoas. O Marajó também o fascinou... Macunaíma provavelmente sofreu impactos e foi modificado graças à viagem de 1927”, considera o professor Paulo Nunes. “Mário também colocava em xeque a ideia de generalização do Norte pelos paulistas, o que, segundo ele, era danoso para o desenvolvimento da ideia polimorfa e polifônica de ‘seu’ Modernismo, que era preciso ser pluralista”.
Uma curiosidade destacada por Paulo Nunes acerca da viagem de Mário de Andrade a Belém é o fato de ele não ter tido contato com o grupo modernista da ‘Academia do Peixe Frito’. “Costumo brincar com fato esdrúxulo: o pior desencontro (ou não encontro) que houve na história da cultura da Amazônia foi o Gastão Vieira ter sido instruído para afastar Mário do grupo dos modernistas paraenses, os ‘Novos’ ou os ‘do Peixe Frito’. Imaginemos o quão desafiador não teria sido um encontro de Mário com Bruno de Menezes”, finaliza.
Mário, em sua viagem era total imersão no clima, paisagem, pessoas. O Marajó também o fascinou... Macunaíma provavelmente sofreu impactos e foi modificado graças à viagem de 1927”, Paulo Nunes, professor
Aspectos destacados pelo poeta são vistos até hoje
Se nos relatos do ‘turista aprendiz’ Mário de Andrade, o mugunzá (ou mingau de milho) vendido no Ver-o-Peso o encantou em 1927, ainda hoje a iguaria é vendida no mercado que é o principal cartão-postal de Belém. Mesmo que a forma de trabalho das feirantes, assim como as vestimentas usadas hoje sejam diferentes, a tradição da venda do mingau permanece, ainda servido na cuia envernizada preta.
Responsável por comandar os panelões com variados sabores de mingau em um dos boxes do Ver-o-Peso, a feirante Geovana Santos Jesus, 49 anos, dá continuidade à tradição iniciada por sua mãe. Todos os dias, as manhãs são marcadas pela rotina de deslocamento até o mercado para servir o mingau aos clientes atraídos pelo cheiro adocicado do alimento. “Eu sempre trabalhei com mingau aqui no Ver-o-Peso. Já estou indo para 23 anos de trabalho aqui”, conta, ao lembrar que novas gerações da família também já vêm sendo inseridas no trabalho. “O meu sobrinho é quem abre a venda, às 4h. Depois eu venho e fico até umas 14h, 15h”.
Ainda que a variedade inclua o mingau de açaí com arroz, de miriti, de tapioca e outros, Geovana conta que o mingau de milho, ou o mugunzá destacado por Mário de Andrade, é a preferência da clientela. “O mingau de milho aqui no Ver-o-Peso é tradicional já. Tem gente que prefere na cuia, outros já pedem no copo, mas não deixam a tradição. Nós fomos criados pela minha mãe aqui nesse meio”.
Outra iguaria destacada por Mário, as frutas regionais também garantem perfume ao mercado ainda hoje. Na banca montada pelo feirante Francisco Martins, 48 anos de idade e 25 de Ver-o-Peso, o bacuri e o cupuaçu são o destaque. “O que os turistas mais gostam é dessas frutas que eles não conhecem, é do diferente”.
Nas palavras deixadas por Mário de Andrade no diário de viagens, os sabores do cupuaçu e do bacuri são ressaltados em deliciosos sorvetes. “Mas depois da janta, rapazes, ir tomar a fresca assentado na terrasse do Grande Hotel mordendo os sorvetes de cupuaçu ou bacuri, rapazes, me digam se tem coisa melhor neste mundo! Não tem não! Belém é sublime!”, escreveu em 21 de maio de 1927.
1º de agosto. Último dia de Belém, me sinto comovido, palavra. Nunca na minha vida encontrei uma cidade que me agradasse tanto, com que eu simpatizasse tanto. Como enchimento de gostosura, passei em Belém os melhores dias de minha vida, inesquecíveis”, Mário de Andrade.