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Museu - Estudo analisa atuação de profissionais da saúde em seringais da Amazônia
Karine Rodrigues (COC/Fiocruz)
Na seca, chuva é sinônimo de boas novas. Assim foi encarado o temporal em Senador Pompeu (CE), naquele 16 de fevereiro de 1943, após meses de estiagem. Quem não gostou do que viu foi o médico José Lins de Souza, que chegara à cidade do sertão cearense na tarde daquele dia. Contratado no mês anterior pelo Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta) com a função de recrutar e selecionar futuros seringueiros, considerou que o tempo não estava nada favorável ao alistamento. Sem escassez, seria mais difícil angariar nordestinos para tentar o sustento tão longe de casa.
Na Batalha da Borracha, 85% dos nordestinos foram considerados aptos a trabalhar nos seringais, apesar de suas frágeis condições de saúde (imagens: Coleção Jean Pierre Chabloz/Mauc)
Souza integrou o grupo de médicos do Semta na Batalha da Borracha, ocorrida durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), após o Brasil ter rompido relações com os países do Eixo. Artigo dos historiadores Gabriela Miranda e Gilberto Hochman, doutoranda e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), publicado no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, analisa a atuação dos profissionais da saúde no esforço de guerra .
“A historiografia sobre a Batalha da Borracha já é bastante conhecida. Mas o artigo aborda especificamente o papel dos médicos do Semta, uma atuação pouco explorada”, observa Gabriela, que tratou do tema em sua dissertação no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz. Criado em novembro de 1942, o Semta foi uma das organizações que se ocupou do programa de migração da Amazônia, especialmente da seleção médica de trabalhadores.
Propaganda nacionalista com promessas vãs na Amazônia
Com o Japão barrando o acesso ao látex do sudeste asiático, líder na produção mundial do produto, os Estados Unidos decidiram investir nos seringais da Amazônia para conseguir a borracha necessária à fabricação de armamentos. Em 1942, os dois países selaram, então, os Acordos de Washington, por meio dos quais os norte-americanos financiariam o recrutamento de mão de obra local. O compromisso assumido foi enviar 50 mil homens até maio de 1943.
Mas quem toparia tentar a vida no Inferno Verde, como, então, chamavam a região amazônica? Para os idealizadores da iniciativa, os nordestinos, já calejados pelas privações de longos períodos de estiagem, estariam “potencialmente disponíveis” para trabalhar nos seringais. E assim foi elaborada a campanha de recrutamento da Batalha da Borracha, anunciada como um front de guerra atuante na Amazônia.
A propaganda oficial de cunho nacionalista usava sem parcimônia termos inerentes ao universo bélico, como batalha, soldados, front. Nos cartazes, não faltavam símbolos do patriotismo, além de uma Amazônia paradisíaca, onde os nordestinos encontrariam muita fartura. Também havia a promessa de assistência médica e educacional e alojamento para suas famílias, que, em geral, ficavam em núcleos no Nordeste, enquanto os provedores migravam sozinhos para o Norte. Expectativas que depois se mostraram vãs.
Diante dos médicos, uma população carente e a meta de 50 mil trabalhadores
Os médicos foram “atores centrais na intrincada relação entre demanda por mão de obra para os seringais e as condições de saúde dos recrutados”, destacam os autores do artigo. Eles analisaram, em particular, a documentação administrativa do Semta encontrada no Fundo Paulo de Assis Ribeiro, engenheiro e geógrafo que assumiu a chefia do serviço, sob a guarda do Arquivo Nacional. Também investigaram o acervo do artista plástico suíço que elaborou o material de campanha do Semta, Jean-Pierre Chabloz (1910-1984), disponível no Museu de Arte da Universidade do Ceará (Mauc), em Fortaleza, além de artigos de periódicos da grande imprensa.
Cabia aos médicos a tarefa de recrutar e selecionar pessoas saudáveis e capazes de desempenhar a tarefa de trabalhar nos seringais. Após ser examinado, o candidato poderia ser aprovado, considerado incapaz para a função, ou encaminhado para receber assistência médica em unidades mantidas pelo Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp). Determinadas doenças tornariam o inscrito inapto para o embarque, como enfisema pulmonar, cirrose, reumatismo e tuberculose. E havia ainda o caso dos inscritos recuperáveis, que, após tratamento, poderiam alcançar as condições de saúde necessárias à ida à Amazônia. Os aprovados aguardavam ser chamados em um dos pousos mantidos pelo Semta.
Porém, eles logo perceberam que seria difícil alcançar a meta acordada com o governo norte-americano, de enviar 50 mil trabalhadores para a Amazônia até 31 de maio de 1943. Além de disputarem mão de obra com outras instituições prestadoras de assistência aos afetados pela seca, como a Inspetoria Federal de Obras contra as Secas (Ifocs), os médicos se deram conta do tamanho das pressões nacionais e internacionais, dos conflitos regionais e locais e da contradição vivenciada cotidianamente.
Para o sucesso da Batalha da Borracha, quanto mais seca, melhor
O Semta, segundo o artigo, “era demandado pelo governo federal a cuidar dos problemas advindos da seca e, ao mesmo tempo, seu sucesso dependia dos efeitos da seca, que produzia um exército de homens desempregados, sem perspectivas e disponíveis para serem recrutados. Alguns relatos e relatórios são reveladores dessas contradições”.
O relatório do médico José Lins de Souza, por exemplo, detalha os esforços empreendidos para conseguir mão de obra. Constam reuniões com o prefeito, o gerente do banco, o delegado, o vigário, o locutor da rádio. E até uma negociação com um encarregado do Serviço de Estrada Central do Ceará, para que ele dispensasse, propositalmente, os interessados em atuar na obra, obrigando-os, de forma indireta, a buscar o recrutamento para a Amazônia.
No documento, Souza qualificou como "estupidez da mentalidade nordestina" determinadas justificativas para a recusa ao alistamento, como a de que os primeiros enviados à Amazônia teriam sido devorados por um índio ou que os homens teriam sido vendidos a peso de ouro. Mas o fato é que se o céu estava bonito de chuva, os cearenses escolhiam buscar o sustento na própria terra, em atividades agropecuárias.
“Existia um discurso moral, salvacionista, de que o Estado estava ali ajudando o nordestino assolado pela seca e pela fome, com uma solução apresentada como maravilhosa, com todas aquelas promessas que estão nos cartazes e que não foram realizadas, como um pedaço de terra, assistência familiar, religiosa. Não contavam com a vontade do próprio nordestino. Diante do fato de que a seca estava acabando, havia quem preferisse ficar tentando o sustento perto da família”, relata Gabriela, para quem a Batalha da Borracha, por sua importância histórica, é pouco divulgada no país, com exceção das regiões Norte e Nordeste. “Foi um ícone da história do trabalho análogo à escravidão”, frisa.
Para recrutar seringueiros, critérios elásticos em nome das metas
Diante do cenário desfavorável ao recrutamento, Souza decidiu ser flexível em relação às determinações impostas como regulamento da seleção. Como muitos eram portadores de doença, confessou ter considerado alguns deles como homens aptos para o trabalho nos seringais, quando, na verdade, requeriam tratamento médico antes de embarcarem. A propaganda oficial vendia a imagem do nordestino corajoso, capaz de enfrentar a vida nos seringais amazônicos, mas a realidade é que era uma população marcada pela doença e pela subnutrição, carente de assistência médica, alimentar e social.
Milhares de nordestinos partiram para trabalhar na Amazônia (foto: Arquivo Jean Pierre Chabloz/Mauc)
A conduta de Souza não foi exceção. Informações sobre os exames de seleção realizados de janeiro a maio de 1943 apontam que as recusas representavam cerca de 15% do total de examinados. A documentação revela ainda que o maior contingente de enviados à Amazônia partiu do Ceará e do Rio Grande do Norte.
“A maioria dos médicos do Semta utilizou critérios elásticos quando da identificação de doenças que poderiam inviabilizar a seleção de um número expressivo de trabalhadores. O olhar médico, pretensamente neutro porque científico, foi emoldurado pela lógica da demanda por borracha dentro do esforço de guerra”, acrescenta Gabriela. No artigo, ela e Hochman destacam que a atuação deles foi “conformada por problemas históricos da sociedade brasileira” - doenças, desnutrição, analfabetismo - e pela pressão para o cumprimento de metas em relação ao envio de trabalhadores.
Médicos ocultaram participação na Batalha da Borracha
Além de José Lins de Souza, o Departamento de Assistência Médica do Semta contava com mais 28 médicos e era chefiado por Manoel José Ferreira, profissional já com larga experiência, que participara de uma bem-sucedida campanha no Nordeste, contra o mosquito transmissor da malária, coordenada e financiada pela Fundação Rockefeller. “Parte significativa destes médicos teve carreira expressiva na medicina e na saúde pública tanto em órgãos governamentais como em universidades, instituições de pesquisa e organizações internacionais”, diz o artigo.
Contratado como assistente sanitarista, Marcolino Gomes Candau (1911-1983), por exemplo, foi diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) durante duas décadas (1953-1973). Ele foi um dos médicos que ganhavam os maiores salários, por ocuparem posições mais altas na hierarquia: 4 mil cruzeiros. Já a remuneração dos chamados médicos de seleção variava entre 1,5 mil e 3 mil cruzeiros. Eram rendimentos atraentes, considerando que, à época, o salário-mínimo, instituído em julho de 1940, era de 220 cruzeiros, valor que subiu para 275 em julho de 1943, segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Segundo Gabriela, a documentação analisada aponta que médicos do Semta apagaram participação na Batalha da Borracha em suas carreiras. “Esse silêncio pode ser atribuído à curta duração do Semta, mas, principalmente, pela imagem negativa do programa que, se lembrada, macularia suas trajetórias”. O Semta funcionou de novembro de 1942 a setembro de 1943.
Com o aprimoramento da indústria da borracha sintética norte-americana, a proximidade do fim da guerra e a crise política do governo Vargas, o programa foi suspenso. Os soldados da borracha, assim como suas famílias, foram deixados à míngua. Milhares morreram, embora, segundo Gabriela, não exista consenso em relação ao total. Pelo menos cerca de 30 mil nordestinos teriam sido enviados à Amazônia, segundo pesquisadores, mas há quem trabalhe com um número bem maior, de 50 mil trabalhadores.
A Comissão de Inquérito da Borracha instaurada em 1946 não responsabilizou nem puniu ninguém. Sequer precisou o número dos que morreram ou desapareceram. Após décadas tentando ser reconhecidos pelo trabalho realizado, conseguiram, em 1988, o direito a receber pensão de dois salários-mínimos, mediante uma série de comprovações.