A existência das cartas trocadas entre os indígenas brasileiros é conhecida desde 1885, no entanto, esta é a primeira vez em que elas são inteiramente traduzidas. O professor Eduardo Navarro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo (USP), responsável pela transcrição, afirma que as dificuldades em compreender o tupi antigo contribuíram para que se levasse tanto tempo até a tradução dos registros.
“O tupi antigo foi muito mal interpretado. Só a partir de 1935 é que a língua começou a ser estudada numa universidade brasileira, a USP. Mas havia muita imprecisão, desconhecimento e confusão sobre isso”, conta.
A transcrição agora só foi possível graças a um dicionário criado por Navarro, que reuniu registros de diferentes gramáticas, vocabulários, catecismos, poesias e de outros dicionários para modernizar a metodologia de ensino da língua.
Antes disso, esclarece Eduardo Navarro, foi necessário percorrer um longo caminho para chegar até aqui. “Em 1956, o padre mineiro Lemos Barbosa escreveu um curso de tupi antigo. Foi o primeiro trabalho de qualidade sobre a língua. Até o final do século passado, essa obra foi usada para estudar o dialeto”, explica.
“A didática não era grande coisa, mas o trabalho era bem feito”, emenda. “Em 1998, depois de eu ter aprendido tupi nas páginas do livro do padre Lemos, consegui aperfeiçoar a grafia e ortografia, e atualmente esse é o método que se usa para estudar a língua”, diz Navarro.
O professor conta que não teve acesso aos escritos originais, que estão na Holanda. “Em 1990, Arion Rodrigues, linguista da Unicamp (SP), foi àquele País, tirou cópias do material e me mostrou. Foi aí que eu fiquei sabendo da existência dessas cartas e fiquei muito interessado. Ainda na década de 1990, solicitei os textos à Biblioteca. Eles me mandaram um microfilme que continha todas as cartas e todos os documentos da Companhia das Índias Ocidentais”, detalha.
A existência das cartas foi revelada pelo historiador José Hygino Duarte Pereira, em 1885. Elas vêm acompanhadas de resumos em holandês, feitos pelo pastor calvinista Johannes Eduards, que participou da ocupação holandesa no litoral nordestino. Eduardo Navarro, professor da USP, relata que Pereira entregou os documentos ao engenheiro baiano Theodoro Sampaio, que escreveu o artigo “Cartas Tupis dos Camarões”.
No artigo, segundo Navarro, o engenheiro reconhece ter conseguido somente uma tradução superficial de duas das cartas e teria reconhecido que as demais eram um 'verdadeiro mistério'. Eduardo Navarro sublinha que a possibilidade de existência de outros escritos semelhantes é grande. De acordo com ele, o pastor calvinista Johanners Edwards traduziu a Bíblia para o tupi, por exemplo.
“Mas não sabemos onde ela está. Então, é bem possível que haja outras cartas, sim”, estima. A pesquisa do professor da USP será publicada no Museu Emílio Goeldi, em Belém (PA) e, no ano que vem, o trabalho deverá virar livro com os textos traduzidos.
As cartas, conforme analisa Navarro, representam um legado importante para o País, e, de modo especial, para os potiguares. “É uma contribuição muito grande. Pela primeira vez a história é narrada pela pena dos próprios indígenas. O RN tem que comemorar essa conquista, porque não existe mais nada do tipo. Deveria haver uma campanha para repatriação dessas cartas, afinal, elas são dos potiguares”, pontua.