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Museu - As contribuições do esquecido Serviço Meteorológico do Museu Paraense Emílio Goeldi
[RESUMO] O Serviço Meteorológico do Museu Paraense Emílio Goeldi funcionou ininterruptamente entre os anos de 1896 a 1922 e foi o primeiro do tipo em toda a Amazônia. Infelizmente, essas contribuições foram esquecidas e são hoje desconhecidas do público em geral, inclusive entre os próprios meteorologistas da região
Um breve histórico
Os primórdios da ciência moderna feita na Amazônia apontam para a Belém do século XIX, que vivia o boom de transformações e riquezas saídas do primeiro ciclo da borracha. Antes disso, não foram poucos os eminentes naturalistas europeus que exploraram a região com suas expedições científicas. É certo que a expedição de Alexander von Humboldt (1799-1804) não passou pelo Brasil Colônia, mas a rota de Johann von Spix e Carl von Martius (1817-1820) desde o Rio de Janeiro até Tabatinga pode ser considerada a primeira grande expedição puramente científica no Grão-Pará.
Algumas décadas depois, a passagem da Expedição Thayer (1865-1866) pelo Brasil, também desde a capital Rio de Janeiro até o recém-formado Amazonas, capitaneada por Louis Agassiz resultou não apenas em novos resultados científicos aos naturalistas do velho continente, mas também plantou a semente que ergueu fundações técnico-científicas por todo o Vale Amazônico. A presença na Amazônia de Agassiz, por si só uma das grandes mentes do século XIX, deu o ímpeto necessário para o surgimento da Associação Philomática (1866) em Belém, presidida pelo mineiro Domingos Soares Ferreira Pena.
O embrião criado na Associação Philomática rapidamente gerou o Museu Paraense de História Natural e Ethnografia, a instituição científica mais antiga da Amazônia em território brasileiro. Para fins de comparação, o Museu é quase um século mais antigo que sua instituição irmã, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) em Manaus. A riquíssima história do Museu está brilhantemente descrita em detalhes na tese de doutorado de Nelson Rodrigues Sanjad (Sanjad, 2005).
Depois de muitas idas e vindas, encarando a falta de pessoal e recursos financeiros que lembram a situação do Brasil atual e um breve fechamento após o final do Império, o governador Lauro Sodré convidou o naturalista suíço Émil Göldi para presidir e reerguer o Museu Paraense em 1894. O próprio Émil Göldi, abrasileirado para Emílio Goeldi, já tinha grande experiência adquirida em seu tempo no Museu Nacional no Rio de Janeiro, mas caiu em desgraça com sua demissão por conta do início da República e o exílio de seu patrono Dom Pedro II. Foi com Goeldi que o Museu Paraense viria a se tornar uma instituição respeitada e valorizada, responsável pelo avanço do conhecimento sobre a própria Amazônia e sobre o amazônida até os tempos atuais.
A Criação do Serviço Meteorológico do Museu Paraense
Ao final do século XIX, a ciência que conhecemos como Meteorologia ainda não tinha suas fronteiras de conhecimento (e muito menos profissionais) bem definidas em relação à matemática, física e até mesmo à geografia. Mesmo assim, algumas redes de Estações Meteorológicas espalhadas pela Europa já encontravam-se em pleno funcionamento de maneira consistente desde a primeira metade do mesmo século. Na Amazônia, no entanto, a chegada de instrumentos sofisticados e a formação de recursos humanos na área levaria tempo para surgir e ainda mais para se estabelecer.
São raros os relatos e observações meteorológicas na região durante esse período. O trabalho recente de Domínguez-Castro et al. (2017) no periódico Scientific Data resgatou as observações feitas pelo cônsul americano Henry Bond Dewey (1818-1856) em Belém durante 1845-1846. É provável que os registros do cônsul tenham sido as primeiras medições quantitativas modernas de temperatura e precipitação na região ainda que, segundo Oliveira (2009), os supostos registros qualitativos do padre Ignácio Sermatoni em Barcelos (atual Amazonas), entre 1754-1756, mereçam o seu devido lugar na história da Meteorologia no Brasil.
Os relatos da Expedição Thayer escritos por Elizabeth Agassiz, publicados no diário A Journey in Brazil (1868), possuem breves anotações qualitativas de fenômenos meteorológicos na Amazônia, que são inclusive passíveis de serem revisitadas com suficiente consistência por meio de conjuntos de dados que estão disponíveis aos meteorologistas de hoje. Em relação ao Serviço Meteorológico do Museu Paraense Emílio Goeldi, o único relato organizado sobre seu funcionamento vem do artigo de Cunha e Bastos (1973), que serve como fonte primordial e primária do presente texto.
Quando Goeldi chegou a Belém em 1894 para dirigir o Museu, ele também trouxe consigo além de sua bagagem de naturalista, o seu treinamento meteorológico obtido em Viena com Julius Hann, um dos fundadores da Meteorologia moderna e um dos gigantes da instrumentação meteorológica. Mesmo com as dificuldades financeiras, logísticas e de recursos humanos, nada tão muito diferente da situação da Meteorologia atual na região, Goeldi buscou a criação de um Serviço Meteorológico que tinha como objetivo abranger todo o Pará, mas que teve que contentar-se com as medições no Parque Zoobotânico em Belém e em alguns outros poucos e infrutíferos pontos pelo interior.
O investimento financeiro para a criação e manutenção do Serviço em seus primeiros anos certamente não foi pequeno e em grande parte saiu dos cofres do próprio Museu, mas felizmente também pôde contar com o apoio do governador Lauro Sodré para a empreitada. Os instrumentos meteorológicos, como barômetros, termômetros e pluviômetros, tiveram que ser adquiridos e trazidos da Europa e só começaram a ser utilizados no ano seguinte, em 1865. Além da dificuldade para obtenção de instrumentos, a falta de pessoal qualificado foi um problema que demandou tempo para ser resolvido até depois do início de fato do Serviço Meteorológico em 1896.
A solução para a falta de recursos humanos no Serviço foi tão simples quanto pioneira. Em 1897, o Museu criou pela primeira vez na Amazônia em território brasileiro o cargo de “encarregado da meteorologia”. A significância histórica dessa função na região não pode ser menosprezada, já que a profissão de meteorologista no Brasil só viria a ser regulamentada quase um século depois, em 14 de Outubro de 1980.
O primeiro responsável pelas medições, contratado pelo Serviço Meteorológico, foi o alemão Ernst Clément. No entanto, Clément aparentemente não nutria amores pela Amazônia e logo voltou ao seu país de origem, sendo substituído em 1897 pelo suíço Joseph Schoenemann. A fantástica consistência das medições do Serviço Meteorológico até 1906 foi fruto do empenho de Schoenemann, que também tinha a responsabilidade pelos dados que rotineiramente eram enviados a Julius Hann em Viena.
A base da meteorologia no Museu foi realmente norteada por pioneirismo em todos os sentidos da palavra. Contam Cunha e Bastos (1973) que Goeldi em 1899 pretendia erguer uma torre no Parque Zoobotânico para medições de velocidade e direção dos ventos, já que a densa vegetação no entorno interferia nos trabalhos com o catavento de Wild. Essa estrutura nunca chegou a ser montada, mas torres meteorológicas mais tarde viriam a ter um papel de protagonismo na área de micrometeorologia. Talvez a visão de Goeldi esteja presente nas torres do Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA) e na famosíssima torre do projeto Amazon Tall Tower Observatory (ATTO) na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Uatumã.
A visão do Museu também resultou na criação do primeiro periódico científico na Amazônia em 1894, em continuidade até hoje, mas a Meteorologia nunca teve destaque nos trabalhos acadêmicos publicados. Certamente, essa foi uma das razões para o esquecimento do Serviço Meteorológico no Brasil, mesmo que os dados registrados tenham tido uma atenção maior dos cientistas na Europa junto a Julius Hann.
Serviços Complementares ou Concorrentes?
A estação do Serviço Meteorológico não era a única mantida em funcionamento por uma instituição pública em Belém no início do século XX. O Instituto Lauro Sodré, que se destinava a atender meninos pobres e órfãos do Pará (Sousa, 2010), também possuía uma estação desde 1902. No entanto, essa atividade foi descontinuada pelo Governo do Pará e os instrumentos foram entregues (em péssimo estado) aos cuidados do Museu em 1907.
O ano de 1907 foi um ano importante na história do Museu Paraense, pois foi quando Goeldi retornou à Europa para cuidar de sua saúde e da criação de seus filhos. Em seu lugar ficou como diretor o botânico suíço Jacques Huber, outro símbolo dos tempos áureos do Museu. Com a saída de Schoenemann de suas funções no Serviço Meteorológico em meados de 1906, o desenhista-litógrafo Ernst Lohse e a ornitóloga Dra. Emília Snethlage assumiram o desafio de continuar com os registros do Tempo. A Dra. Emília também é um dos grandes nomes da história do Museu e é reconhecida até hoje pelos seus trabalhos científicos sobre a fauna amazônica, mas a sua primeira participação no Serviço durou apenas até abril de 1907.
André Goeldi, primo de Emílio também radicado em Belém, tornou-se diretor e responsável pela Estação Agrícola Experimental de Peixe Boi criada por decreto em 1907. Logo após a sua criação, um marco histórico da meteorologia brasileira veio a acontecer em 1909 com a criação do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) vinculado ao então Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. O INMET viria a centralizar e unificar a atividade de meteorologia no país, o que fez com que a estação de Peixe Boi fosse incorporada ao Instituto em 1912.
Mesmo com essa unificação objetivada pelo INMET, a parceria com o Museu foi infrutífera. O Serviço Meteorológico não recebeu financiamento, pessoal, equipamentos ou qualquer tipo de ajuda vinda do Governo Federal até o fim das relações que se deu com a cessão da estação experimental mencionada acima. O Museu já era acostumado a não receber muito apoio financeiro externo para manter o Serviço ativo, o que só foi piorando com o fim do primeiro ciclo da borracha e o início da Primeira Guerra Mundial.
Às vésperas do conflito, Lohse foi exonerado do Museu em 1911 e novamente a Dra. Emília assume essa responsabilidade no Serviço Meteorológico, juntamente com o seu assistente Otto Bertram. Logo depois, os dois decidiram, por razões distintas, o retorno para a Europa em abril de 1913 e janeiro de 1914.
O Fim do Serviço Meteorológico
A Grande Guerra trouxe uma maré de má sorte ao Museu. Logo no início de 1914 morreu o diretor Jacques Huber, por conta de uma apendicite. A Primeira Guerra Mundial marca efetivamente o fim dos anos dourados do Museu e a época dos grandes naturalistas estrangeiros: Goeldi, Huber, Snethlage e Ducke. A Dra. Emília ainda retornaria às suas funções após a guerra e comandaria o Museu como diretora até 1921, quando saiu para assumir um cargo no Museu Nacional no Rio de Janeiro. O Museu Paraense também sofreu com o fim dos ânimos e das riquezas do primeiro ciclo da borracha, certamente perdendo recursos financeiros importantes ano após ano.
Com o conflito e com o fato de que a Alemanha fazia parte da Tríplice Aliança e as relações do Brasil da época sempre foram mais próximas com a Inglaterra, desde a Independência, não pareceria adequado manter estrangeiros em cargos importantes no Museu. De 1914 até 1922, o Serviço Meteorológico ficou nas mãos de brasileiros. O então preparador de zoologia Oscar R. Martins foi o primeiro encarregado da meteorologia nascido em território nacional, até sua exoneração em 1918. Os últimos encarregados da história do Serviço foram Francisco Queirós Lima e Justino Queirós Lima, evidentemente da mesma família.
Após o afastamento definitivo da Dra. Emília, o médico paraense Antônio O’ de Almeida assume a direção do Museu Goeldi. Não havia muito o que dirigir e a mais antiga instituição científica da Amazônia logo aceitaria o colapso financeiro e cessaria suas atividades por alguns duros anos. Assim acabava o primeiro Serviço Meteorológico criado na Amazônia, mantido de maneira impressionante e mais que pioneira por quase três décadas.
Por essa história fantástica e para fazer uma justa homenagem ao Museu, que completa 155 anos em 1921, bem como ao quase centenário do fim do Serviço Meteorológico, o presente autor decidiu revisitar essas grandes contribuições e revitalizar os dados históricos resgatados por Cunha e Bastos (1973) em um formato atualizado e disponível a todos (Rego, 2021).
Willy Hagi Teles Rego é meteorologista (UEA) e mestre em Clima e Ambiente (INPA/UEA), com especialidade nas áreas de Climatologia da Amazônia, Meteorologia Tropical e Variabilidade Climática.
Foto em destaque é de autoria de José Luiz Pizzol
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