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Empréstimo de acervo
Exposição faz reflexão sobre ancestralidades brasileiras e o papel dos museus
Um percurso pela história, tendo a arte e a cultura como alicerces para pensar a ancestralidade brasileira e o papel dos museus. Essa é uma das propostas da exposição “Ensaios Para o Museu das Origens”, que está sendo realizada até 28 de janeiro de 2024, no Itaú Cultural e no Instituto Tomie Ohtake. A mostra reúne obras de artistas e coletivos, além de registros e documentos de mais de 20 instituições culturais. O Museu do Índio (MI) é um dos participantes, tendo emprestado 168 peças de seu acervo etnográfico.
Apesar de ocupar dois locais diferentes, a mostra é uma só e pode ser visitada em qualquer ordem, mas os curadores dizem que é importante conhecer a montagem nos dois ambientes para se completar o percurso. A curadoria geral é de Izabela Pucu e Paulo Miyada, a curadoria adjunta, de Ana Carolina Roman, e Daiara Tukano e Thiago de Paula são curadores convidados.
A exposição deriva de proposta do crítico de arte, jornalista e professor Mario Pedrosa, um dos principais agentes no debate da função da arte no Brasil. Em 1978, após o incêndio que atingiu o Museu de Arte Moderna (MAM) no Rio de Janeiro tendo destruído 90% de seu acervo, ele se perguntava se poderíamos sonhar em dar um novo passo na museologia no país reunindo sob o guarda-chuva do Museu das Origens cinco instituições. Três delas já existiam, mas passavam por dificuldades de funcionamento e formalização: Museu de Arte Moderna, Museu do Índio e Museu do Inconsciente. E duas deveriam ser criadas: o Museu do Negro e o Museu das Artes Populares. A ideia era que, mesmo organizadas de maneira independente, as instituições estivessem organicamente articuladas.
O projeto de Pedrosa não avançou. Entretanto, após ampla pesquisa, os curadores identificaram outras iniciativas e as reuniram nesta exposição, que exibe acervos de matrizes culturais e instituições diferentes. Diante da ampla diversidade e quantidade de peças, além de o diálogo que foi se estabelecendo entre umas e outras, a curadoria optou por desenvolver a mostra em círculos crescentes, a partir dos objetos, histórias e projetos de Mario Pedrosa, seguidos de núcleos documentais e conjuntos expressivos desses lugares.
A curadora Izabela Pucu destacou que a participação do MI na exposição tem uma grande relevância. Primeiro porque Mário Pedrosa já enxergava o museu num lugar central na cultura brasileira, por ter sido criado associado a uma causa: a defesa dos direitos dos povos indígenas; depois pela relevância do acervo da instituição e pela precariedade em que se encontrava. “Antes de o MAM pegar foto, ele havia planejado a exposição ‘Alegria de Viver, Alegria de Criar’, que iria incluir uma série de peças do Museu do Índio e pretendia também trazer de volta o manto Tupinambá, que se encontrava num museu europeu. Portanto, em 1978, ele já entendia que o paradigma das sociedades indígenas era muito interessante para embasar o processo de redemocratização do Brasil”, pontua.
Contribuição indígena
A artista, ativista, educadora e comunicadora Daiara Tukano foi convidada para contribuir com uma visão crítica sobre a contribuição indígena. Na avaliação dela, a proposta de Mário Pedrosa para o Museu das Origens considerou a importância das culturas indígenas e do acervo do Museu do Índio para o reconhecimento da matriz originária.
“O Museu do Índio, fundado em 1953 a partir do acervo coletado por Darcy e Berta Ribeiro, constituiu uma primeira política nacional para preservação e salvaguarda dos patrimônios indígenas. Essa proposta era distinta da natureza do Museu Nacional, fundado em 1818 por Dom João VI - então denominado Museu Real - onde os objetos indígenas eram, a princípio, tratados como objetos de ‘gabinete de curiosidades’, assim como nos primórdios de todos os museus coloniais”. Hoje, destaca, são poucos os museus que contam com acervos indígenas e a grande maioria enfrenta dificuldade para mantê-los.
No processo curatorial, Daiara participou do IV Fórum Estadual de Museus Indígenas do Ceará, realizado, em março de 2023, no território do povo Pitaguary. Na oportunidade, ela visitou as aldeias Canindé, Jenipapo Canindé e Pitaguari onde conversou com os anciãos, que são guardiões e mestres de cultura. “A maneira como cada um desses museus se constitui é diferente, mas eles têm muitas histórias, não apenas a história do território, mas histórias de vida. Então, o museu é muito mais do que o espaço. Os museus indígenas, nesses territórios, se estendem também pela escola, pelas famílias e pelas gerações. São muito provocadores em relação ao histórico das práticas museológicas, e do entendimento do que é e do que pode ser um museu”, avalia.
Ela afirma que os museus nos territórios indígenas são um contraponto histórico aos museus etnográficos construídos dentro de uma perspectiva não indígena e frequentemente colonial. E diz que o contraste entre os museus indígenas e não indígenas “está na tensão das práticas coloniais instituídas nos espaços museológicos, nas inquietações decoloniais trazidas pelo exercício democrático, e nas práticas contracoloniais exercidas pelos indígenas na defesa de seus territórios. Territórios físicos, terras e aldeias, mas acima disso, territórios de pensamento, de linguagem e de relações de mundos possíveis”.
Para ampliar e fortalecer essas iniciativas, ela defende a importância das políticas de incentivo, a exemplo das adotadas pelo Ceará, único estado a dar continuidade à política de prêmio de cultura indígena nos últimos anos. A curadora convidada lembra que desde o governo Temer essas políticas foram descontinuadas nos demais estados do Brasil, e agora, em 2023, com a volta do Ministério da Cultura, está sendo retomada a valorização da cultura indígena, e, principalmente, dos detentores e fazedores dessa cultura.
Ao refletir sobre os projetos de Mário Pedrosa e de Darcy Ribeiro e as iniciativas das comunidades indígenas, ela destacou: “Mário Pedrosa pensou no Museu do Índio, mas acho que ele nunca imaginou uma rede de museus indígenas como a que existe no Ceará. Acho que ele não estava no tempo de pensar nessa possibilidade. Ele e Darcy eram homens do seu próprio tempo, e tiveram um trabalho muito importante. A fundação do Museu do Índio no contexto em que se deu já marca uma grande diferença em relação aos grandes museus criados ainda no período do Império”.
Daiara afirma que Darcy fez uma provocação sobre a importância da preservação da cultura, e sobre o extermínio e o genocídio. “Ele sofreu perseguição e foi exilado durante a ditadura militar. Era um gigante e sua luta era ainda maior. Esses museus indígenas, que começaram a aparecer na aurora do século vinte e um, trazem não apenas povos, antes considerados menores, isolados ou incapazes, mas povos que se mantêm originários e contemporâneos”, enfatiza.
Acervo do Museu do Índio
No Instituto Tomie Ohtake estão expostos 120 itens das etnias Karajá e Baniwa do acervo etnográfico do Museu do Índio, e no Instituto Itaú Cultural, 47 peças Baniwa, como artefatos e placas com grafismos característicos do povo. Entre as peças Karajá, destacam-se 79 cerâmicas figurativas, chamadas ritxoko na fala feminina da etnia. Essas bonecas foram reconhecidas como patrimônio cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2012.