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Visibilidade indígena: Francineia Baniwa é a entrevistada do Museu do Índio no encerramento da semana da mulher
Francineia com uma camisa com a frase: "Lute como uma mulher Baniwa". Foto: arquivo pessoal
Ser mulher, por si só, já é um grande desafio. Ser mulher indígena representa um desafio ainda maior. É lutar e tentar ocupar espaços a todo instante. O protagonismo da mulher indígena não se mantém apenas no papel orientador das aldeias. A mulher indígena busca reafirmar sua cultura, gênero e identidade incansavelmente. Encerrando a Semana Internacional da Mulher, o Museu do Índio realizou uma entrevista em que destaca o trabalho de Francineia Baniwa, doutoranda em antropologia pelo Museu Nacional.
Nascida na Terra Indígena Alto Rio Negro, na região que concentra a maior variedade de povos indígenas do país, Francineia, mais conhecida como Francy ou Fran Baniwa, é responsável pela primeira iniciativa autoetnográfica do MI, resultante da pesquisa sob sua coordenação entitulada: " Arte e vida das mulheres Baniwa: uma visão de dentro pra fora", no âmbito do Programa de Documentação de Culturas (Prodocult) do projeto desenvolvido em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura ( Unesco) .
O objetivo do projeto é construir um olhar feminino sobre a vida e a arte das mulheres Baniwa. Um processo de documentação coordenado por uma antropóloga indígena, resultando num olhar “de dentro para fora”, de quem cresceu ouvindo e aprendendo as línguas (baniwa e nheengatu), a forma de trabalhar a roça e fazer suas ferramentas, escutando as narrativas de mãe, avós e tias. iniciativa pioneira e representativa para o fortalecimento da cultura Baniwa. U sando recursos audiovisuais de vídeos e fotografias, Fran acompanhou e registrou todas as rotinas das mulheres Baniwa com seus trabalhos com cestaria de tucum, cerâmica e roça. Trata-se de u m olhar compartilhado com mulheres, indígenas do povo Baniwa (em especial das comunidades de Assunção, Castelo Branco, Ucuqui e Tucumã), e não indígenas, numa parceria feminina, agregando conhecimentos da antropologia e da comunicação.
Entre as ações de processamento técnico dos acervos, destaca-se a qualificação das coleções realizada pela pesquisadora juntamente com seus pais, em 2021. Ao todo, foi realizado o processamento técnico e qualificação da coleção de 64 itens incorporados ao acervo museológico em 2020.
A “cerâmica branca” é uma arte exclusivamente feminina entre os Baniwa, e funciona como um importante marcador de identidade no sistema interetinico do alto rio Negro. Ela é transmitida de geração a geração, das avós às netas, das mães às filhas. Como toda arte, a cerâmica encontra-se ligada a outros campos da cultura indígena: mitos, ritos, técnicas artísticas e corporais, trocas econômicas, matrimoniais e ecológicas. Confira a entrevista a seguir.
MI: Enquanto mulheres não-indígenas lutam para uma equiparação salarial, as mulheres indígenas ainda lutam para se inserirem no mercado de trabalho, serem reconhecidas como artistas, artesãs, professoras, médicas e toda diversidade de profissões nas quais vêm se destacando para, assim, se tornarem referência na educação, ciência e tecnologia. Quais as principais dificuldades que você enfrentou durante sua trajetória profissional?
Francineia: Ser mulher indígena, mãe e acadêmica é bastante desafiador, pois somos de uma realidade totalmente diferente, nossa sabedoria está na base da oralidade e da coletividade, praticamos nosso conhecimento adquirido na prática do dia a dia, a nossa formação está na base de observação e prática. Sair da minha comunidade, deixar minha vida, meus pais e filhos, e viver na cidade de pedra é uma das principais dificuldades, além de falar e escrever a língua portuguesa. Mas, como carregamos nas veias a força de mulher indígena, conseguimos superar os medos e a ausência, pois precisamos ir buscar conhecimento e, assim, fortalecer as nossas técnicas e saberes femininos.
MI: Quais as soluções você aponta para que essas dificuldades sejam superadas?
Francineia: Precisamos de mais mulheres ocupando espaços dentro das universidades, se formando em diversas áreas, no campo de educação, saúde, movimentos indígenas, no campo de audiovisual. Somente assim conseguiremos ecoar as nossas vozes em diferentes formas, ecoando vozes de mulheres que moram dentro das comunidades indígenas ao longo de rios e igarapés. A presença de mulheres dentro das instituições permite ter um olhar diferenciado, dando uma visibilidade para valorização de saberes ancestrais.
MI: Em 2018, você coordenou, junto ao Museu do Índio, o projeto Arte e vida das mulheres Baniwa: uma visão de dentro pra fora. Qual a importância de iniciativas como essa para a visibilidade da mulher indígena?
Francineia: Essa foi umas das conquistas mais importantes para os 23 povos do Rio Negro, principalmente para meu povo Baniwa. Essa iniciativa foi uma vitória para as mulheres rionegrinas, ser a primeira mulher indígena a coordenar um projeto para as mulheres e com mulheres indígenas. Este trabalho mostrou a visibilidade de que temos a capacidade de coordenar outros trabalhos, pois vivemos a realidade; e facilita a realização das atividades, pois falamos com elas na própria língua indígena. Esse trabalho foi uma porta que se abriu para apresentar ao mundo as técnicas, saberes e a ciência do saber feminino e mostrar o nosso protagonismo.
MI: As mulheres indígenas passaram muito tempo na invisibilidade mas vêm rompendo barreiras cada vez mais difíceis de serem superadas, mesmo diante de todas as dificuldades que ainda enfrentam. Deixe uma mensagem para todas as mulheres, sejam elas indígenas ou não-indígenas, que lerão essa matéria.
Francineia: Nós temos a capacidade de voar longe, mesmo que seja impossível, pois o que nos move a seguir em frente são os nossos filhos, nossos jovens, pais, anciões, parteiras, pajés, pois somos as porta-vozes deles nesse mundo ocidental. Nós temos muito a ensinar, precisamos apenas ter espaço, ter voz e vez. Quando olho para trás, me orgulho da minha luta e trajetória. Não foi fácil, às vezes digo “ quem diria a menina que nasceu no meio da floresta, que não nasceu falando português, que tem pais agricultores, estaria fazendo doutorado?”. Então, trilhar as barreiras, superar os preconceitos, superar os medos é fundamental para afirmar e reafirmar o quanto fomos fortes e guerreiras. Sejamos nós mesmas porque a geração que vem depois precisa de nós e da nossa força. Vamos continuar ecoando vozes de sabedoria e ensinando ao mundo sobre “respeito pela humanidade e pela natureza”.
Saiba mais: A Arte da Cerâmica das Mulheres Baniwa
No ano de 2014, um grupo de mulheres Baniwa buscou o MI para recuperar sua tradição cerâmica. Este complexo saber estava em vias de desaparecimento. No Museu, elas encontraram um acervo formado pelas suas antepassadas e, de volta à aldeia, se reuniram para recuperar os laços entre as técnicas, o conhecimento territorial e ritual.
A documentação, organizada pelo pesquisador Thiago Oliveira, foi produzida no âmbito do sub-projeto de Documentação da Cultura material e imaterial dos índios Baniwa do Alto Rio Negro _ ProdCult Baniwa – Hohodeni e faz parte das ações do Museu do Índio/FUNAI voltadas para a salvaguarda e a divulgação das culturas indígenas brasileiras.
Foto: Thiago Oliveira
Em "A Arte da Cerâmica das Mulheres Baniwa", o Museu do Índio apresenta, por meio de fotografias e material audiovisual, na Plataforma Google Arts & Culture, a tradição desse povo indígena que habita a região do Alto Rio Negro, noroeste da Amazônia brasileira.
Confira a exposição na Plataforma Google Arts & Culture: A Arte da Cerâmica das Mulheres Baniwa.