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Discurso da ministra Cida Gonçalves na 66ª Reunião da Mesa Diretora da Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e Caribe
Bom dia.
Gostaria de cumprimentar a minha colega do Ministério do Paraguai, o nosso Secretário Executivo, os meus colegas aqui presentes na Mesa. Eu tenho um discurso que trata muito mais dos desafios, especialmente os desafios do Estado brasileiro.
Temos uma tarefa que é falar do que acontecerá daqui a 30 anos. Este é o horizonte do nosso trabalho. E a primeira coisa que gostaria de comentar é sobre a democracia. Nenhum direito das mulheres sobrevive sem um país democrático. O Brasil, há oito anos, sofreu um golpe de Estado, motivado pela misoginia, contra a primeira presidenta eleita do nosso país, Dilma Rousseff.
O nosso maior líder do país, Luiz Inácio Lula da Silva, esteve preso por quase 600 dias num processo jurídico questionável, em que foi provada a sua inocência. Em 8 de janeiro de 2023, nós tivemos um novo golpe com a ocupação de prédios do governo, o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. Foram invadidos e vandalizados por um bando de marginais que não aceitavam a derrota eleitoral dada pelo povo brasileiro.
E há 15 dias nós descobrimos um plano para assassinar o presidente, o vice-presidente e o presidente do Superior Tribunal Eleitoral. E, mais uma vez, estávamos propícios à falta da democracia e ao golpe. Portanto, a defesa dos direitos das mulheres, a defesa das políticas públicas para as mulheres passa por um primeiro pressuposto, que é o pressuposto da democracia. E nós do Brasil queremos dizer: isso é um critério importante para todas as mulheres.
Desde 2010, 2012, no Brasil, a gente começou com uma tal de “ideologia de gênero”. Uma caça a todas as políticas para as mulheres – que foi culminar no golpe contra a presidenta Dilma. Nós tivemos uma busca permanente de retirada dos direitos das mulheres no nosso país.
O segundo elemento que gostaria de abordar é a questão de quais são as prioridades e os desafios que nós temos. Nós precisamos discutir a igualdade quando falamos da pobreza. Os nossos países discutem a pobreza com que caráter? Só sob a perspectiva da fome? Porque no Brasil não é só a fome. No Brasil, a fome tem cara, tem raça, tem sexo.
No nosso país, entre as pessoas que passam fome, a maioria é de mulheres. Entre elas, há, principalmente, mães-solo e mulheres negras. Portanto, precisamos definir o que é essa pobreza, onde ela está e de que forma ela acontece. Porque a situação não é a mesma para uma professora universitária e para uma mulher que passa fome. Então, a inclusão é um processo constante e permanente para nós, mulheres.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva presidiu o G20 e chamou o mundo para discutir uma Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza. Os países ricos precisam ajudar os países pobres a saírem da fome e da miséria. E o presidente disse que, no âmbito da Aliança, temos que discutir a igualdade de gênero e de raça; elas não estão separadas em uma perspectiva de combate à pobreza e à fome.
A política pública deve ser pensada com essa perspectiva, com esse olhar. Não podemos pensá-la isoladamente. Isso, para nós, é importante.
Não é possível pensar em igualdade de gênero sem discutir políticas de cuidados, sem discutir a questão do uso do tempo, a responsabilidade do Estado sobre o uso do tempo das mulheres. Mas também não é possível que a gente, mais uma vez, como Estado, não possa fazer o debate sobre a divisão sexual do trabalho.
Nossa Política Nacional de Cuidados está sendo aprovada neste exato momento no Senado Federal. Mas não é possível discuti-la sem considerar quem é que, finalmente, vai buscar as crianças na creche. Porque tudo isto envolve, por exemplo, outras questões, como a progressão na carreira, os estudos, a ideia e o conceito que devemos ter das mulheres que queremos nos nossos países no futuro. É uma questão de inclusão.
No Brasil, aprovamos a Lei da Igualdade Salarial no ano passado. Mas nós sabemos que a Lei de Igualdade Salarial se aplica às mulheres que trabalham com carteira assinada. Não são todas as mulheres. E, mais uma vez, falando de igualdade, vejam a ironia.
Um ano depois, temos dois processos no Supremo Tribunal Federal que alegam a inconstitucionalidade dessa Lei, e mais de 400 ações nas primeiras instâncias do Judiciário pedindo para que a Lei não seja implementada. Então, não é só fazer a lei. Há um debate a ser feito que enfrenta resistências, e precisamos que trabalhar para vencer essas resistências. Há muitas pessoas que não estão dispostas a discutir e aceitar a inclusão das mulheres.
Não posso discutir políticas públicas sem discutir as diversas mulheres: as mulheres da Amazônia, do Pantanal, das periferias de São Paulo e do Rio, as mulheres que perdem seus filhos mortos por um tiro, por serem negros, as mulheres do campo e das florestas, as pescadoras. No meu país, não temos uma mulher, temos diversas. E cada uma tem uma realidade, uma cultura, que vem do seu povo, da sua região, e que deve ser considerada no processo de elaboração de políticas públicas. Nós não podemos enquadrá-las num único item, da palavra “mulher”. São mulheres, são diversas, e essa diversidade tem que estar colocada e posta nas políticas públicas e nós temos que assumir isso como Estado.
Portanto, temos de assumir este debate e essa responsabilidade. A responsabilidade é nossa, das ministras de Mulheres dos países, sob pena de um retrocesso de 10, 15 anos, cair sobre nossas costas. Nós já tivemos retrocessos suficientes nesses 30 anos de Beijing. E olha que a conjuntura de 1995 já foi difícil. Este é o debate que gostaria colocar.
Gostaria também de discutir a questão da paridade. Não é possível que não possamos incluir isso nos nossos documentos. No Brasil, temos uma Lei de Cotas que determina 30% das candidaturas legislativas para as mulheres e garante que 30% do financiamento de campanha seja destinado às mulheres. Ainda assim, neste ano, o número de mulheres candidatas aumentou apenas 1%. É um desafio permanente que estes recursos cheguem efetivamente às mulheres para as suas campanhas. Nós não temos mais que discutir apenas cotas de candidaturas e de financiamento, nós temos que discutir a garantia de cadeiras no Congresso para que haja paridade, para nós possamos ter direito à voz e para que nós não fiquemos mais escondidas.
Então, nós, como ministras, temos que ter coragem. Não podemos, em cima da institucionalidade, deixar a responsabilidade única e exclusivamente com os movimentos sociais. É algo pelo qual nós também temos responsabilidade como Estado. O Estado precisa assumir aquilo que lhe é de direito: o avanço, o debate, a construção, todos os processos necessários para que possamos avançar.
Outro problema preocupante para o Brasil é a misoginia. Nós temos discutido isto desde o dia em que assumi o Ministério: aumentou o número de estupros, de feminicídios, da violência e a razão disso está colocada. Não podemos fingir que não há polarização e ódio e que esse ódio é dirigido, sobretudo, aos corpos e às vozes das mulheres. Nós estamos respondendo e pagando por isso, porque quando não nos matam por feminicídios, eles nos calam via violência política de gênero, via rede social. Estamos dispostas a discutir a misoginia que vemos hoje, nas redes sociais, que tem tirado as mulheres das esferas públicas, as lideranças, as defensoras de direitos humanos que, na maioria das vezes, têm se calado, ou como Mãe Bernadete, morta, ou como muitas que saíram da vida pública.
É um debate que temos que promover. Não é fácil. No Brasil, os movimentos sociais sabem o que estamos passando, mas temos de enfrentar. E o presidente Lula é parceiro. Todos os debates que eu peço ele vem junto. Mas nós precisamos trazer o mundo.
Não podemos estar em um espaço de institucionalidade e não conseguimos mudá-lo porque não conseguimos romper com algumas questões que são importantes e estratégicas para as mulheres. E, quando a gente fala de misoginia, não é só sobre o Estado.
Nós estamos trabalhando com 40 Casas da Mulher Brasileira e reforçando os serviços de atendimento a mulheres em situação de violência. Estamos trabalhando a institucionalidade e fortalecendo as Secretarias Estaduais e Municipais de Mulheres. Queremos fortalecer todo o processo institucional de atendimento à mulher. Mas há também um outro debate: chamar a sociedade para dizer que a violência contra a mulher não é aceitável. E é por isso que nós estamos trabalhando com uma mobilização nacional pelo Feminicídio Zero.
E estamos levando isso para os estádios de futebol no Brasil. Os jogos têm 60 mil pessoas. Temos de falar com todos os torcedores e também com os jogadores para que falem com os seus torcedores e com as suas equipes, e possamos espalhar a palavra.
Todo mundo tem de se envolver, vizinhos, amigos, escolas, atletas. Todo mundo tem que falar sobre a violência contra a mulher. Não pode ser um debate superficial.
No Brasil, há professoras que são perseguidas por falarem de violência e de questões de gênero nas escolas. Temos de falar disso também.
E gostaria de levantar outra questão.
Quando falamos do nosso corpo, estamos falando de saúde. No Brasil, houve um aumento da violência obstétrica nos últimos anos. Sabem quem são as que mais morrem? As mulheres negras, não só da violência obstétrica, como também da mortalidade materna, o que não deveria mais existir 30 anos depois de Pequim.
Na semana passada, sofremos uma derrota na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, que aprovou um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) que proíbe o aborto legal que existe desde 1940 no nosso país. As situações permitidas são de violência sexual, do estupro; em casos de risco de vida da mulher; e, desde 2012, os casos de anencefalia incluídos pelo STF. Então, a PEC criminaliza as mulheres e criminaliza os profissionais de saúde. Desde então, a minha luta é para que essa PEC vá lá para o canto.
A grande questão é que esse debate está colocado: você quer retroceder nos corpos das mulheres, proibindo as mulheres daquilo que é essencialmente direito delas. E o mais grave: nós tivemos aumento de 20% em casos de violência sexual contra crianças de 0 a 5 anos, e de 25% contra crianças de 5 a 9 anos.
Essa é a realidade do Brasil e são essas meninas que estão brigando na Justiça pelo direito ao aborto legal. E é isto o que tentam fazer: que as meninas e crianças sejam mães e os estupradores sejam pais. Esse é o debate que tem que ser colocado no Brasil.
Precisamos entender que é isto que está acontecendo, inclusive para enfrentá-los. Quero dizer que temos de voltar a discutir os direitos sexuais e reprodutivos. Precisamos colocar em pauta questões fundamentais como o planejamento familiar, o acesso à informação e os direitos sobre o nosso corpo.
E se a CEPAL e a CSW não fizerem isso, não teremos força no nosso país para reagir e para resistir. Esse é o desafio que quero colocar.
Não posso terminar sem falar da justiça climática.
A maioria de vocês estará no Brasil na COP 30, e a COP 30 é um desafio grande para nós, porque não é só discutir a justiça climática. Nós temos um grande desafio, e a CEPAL tem que nos ajudar, que é discutir o desenvolvimento econômico e sustentável, que não é para as mulheres, é com as mulheres. Precisamos de um debate estruturante do desenvolvimento do país.
Nós não queremos uma política de qualificação profissional para as mulheres para depois elas serem camareiras ou cozinheiras. Nós queremos estar na inclusão digital e no desenvolvimento do projeto estruturante no nosso país. Eu tenho falado isso com a Ministra Marina [do Meio Ambiente] e o Ministro Haddad [da Fazenda].
E o movimento social sabe que eu tenho perdido muitas batalhas dentro do governo, e não poucas, são muitas. Mas eu preciso fazer. Com respaldo internacional, com posição internacional, nós temos condições de avançar.
E é por isso que nós não podemos aceitar nenhum retrocesso e nenhuma mudança. Esta instituição, Beijing, tem que se manter como está. Nós temos que fazer um documento da CEPAL que ajude a chegar daqui a 30 anos com a cabeça erguida, porque nós vamos dizer que, quando nós avaliamos os 30 anos, nós demos condições para que nossas meninas e mulheres estejam vivas, e apenas vivas, com todo o direito de ser, com todos os seus direitos garantidos pela humanidade.
Muito obrigada.