Discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Mauro Luiz Iecker Vieira, em debate aberto do Conselho de Segurança sobre a situação no Oriente Médio, inclusive a Palestina - 29 de outubro de 2024 (texto em português)
Senhor Presidente,
A ordem internacional do pós-guerra está desmoronando diante de nossos olhos. Os fundamentos estabelecidos após dois conflitos globais estão sendo corroídos.
Os eventos que se desenrolam no Oriente Médio não são apenas mais um capítulo em um antigo conflito. Eles refletem de forma clara uma crise mais profunda, onde o poder prevalece sobre o direito, e os princípios destinados a proteger a paz são ofuscados.
É por isso que o Presidente Lula convocou uma resposta vigorosa aos graves desafios de nosso tempo. Como ele enfatizou na abertura da 79ª sessão da Assembleia Geral, o mundo precisa de uma revisão abrangente da Carta das Nações Unidas.
Uma conferência de revisão da Carta pode parecer ambiciosa, mas reflete o espírito que fundou a ONU. O Artigo 109 deixa claro que nenhum sistema deve permanecer estático em um mundo em constante mudança.
Senhor Presidente,
O dever do Conselho é proteger toda a humanidade, não apenas atender a alguns poucos.
Sua incapacidade de agir de forma decisiva permitiu que atrocidades continuassem impunes, com populações inteiras pagando o preço. Isso não é mera retórica. Está refletido nos crimes cometidos contra civis em Gaza e no Líbano.
Senhor Presidente,
Mais de 43.000 palestinos e 2.500 libaneses já perderam a vida devido às fraturas de uma ordem global que, cada vez mais, falha em cumprir suas promessas.
O Brasil tem sido enfático ao pedir o fim da escalada de violência no Oriente Médio. Desde que assumimos a presidência deste Conselho em outubro do ano passado, quando Israel foi atingido por um ataque terrorista, testemunhamos uma escalada incessante de violência.
A resposta de Israel ao 7 de outubro ultrapassou qualquer senso de proporção. Mais bombas foram lançadas sobre Gaza do que em Dresden, Hamburgo e Londres durante a Segunda Guerra Mundial. Isso não é autodefesa; é punição coletiva e aniquilação.
Todos testemunhamos violações flagrantes e rotineiras do direito humanitário internacional em Gaza.
Áreas civis são indiscriminada e desproporcionalmente alvejadas em operações militares, levando à destruição de infraestrutura crítica e ao sofrimento de inocentes.
Fome e doenças se espalham à medida que o fornecimento de bens que suprem necessidades básicas é interrompido.
Até mesmo aqueles protegidos pelas Convenções de Genebra – trabalhadores humanitários, médicos e pessoal de saúde – estão sendo mortos. Jornalistas foram baleados e seus veículos de imprensa silenciados.
Senhor Presidente,
A Corte Internacional de Justiça emitiu medidas provisórias ordenando que Israel interrompa ações que possam violar a Convenção sobre Genocídio e facilite a entrega de ajuda humanitária.
Além disso, a Resolução 2735 (2024) exige um cessar-fogo completo, a retirada das forças israelenses de áreas densamente povoadas em Gaza e o retorno seguro dos civis palestinos às suas casas.
Essas não são recomendações; são obrigações vinculantes segundo o direito internacional.
Quando diretrizes mandatórias dos mais altos órgãos jurídicos e políticos são ignoradas impunemente, isso sinaliza uma perigosa desintegração da governança global.
A consequência desse desprezo é mais perda de vidas e destruição inimaginável.
Quando me dirigi a este Conselho há um mês, alertei que o Líbano estava à beira de um conflito. Hoje, lamentamos a perda de milhares de vidas inocentes, incluindo dois adolescentes brasileiros.
Em apenas 30 dias, o número de deslocados no Líbano multiplicou-se por dez.
Desde a última vez em que estive nesta cadeira, tenho me dedicado à tarefa urgente de repatriar milhares de nossos cidadãos com dupla nacionalidade do Líbano, completando nove voos de resgate em aviões da Força Aérea Brasileira, enfrentando crescentes riscos de segurança, incluindo ataques aéreos israelenses em território libanês. Milhares ainda aguardam repatriação.
Senhor Presidente,
A expansão da guerra de Gaza para o Líbano revela um padrão familiar de desrespeito pela lei. Ataques contra a UNRWA e agora contra a UNIFIL são uma rejeição flagrante do sistema multilateral e de tudo o que a Carta das Nações Unidas representa.
Esta não é a primeira vez que a UNIFIL é atacada. Não devemos esquecer o bombardeio israelense ao complexo da UNIFIL em Qana, em 1996, onde 106 civis que buscavam refúgio foram mortos.
Esta tragédia serve como uma lição crítica do que ocorre quando a comunidade internacional permite que tais violações fiquem impunes.
Quando falhamos em responsabilizar os perpetradores, pavimentamos o caminho para que a história se repita.
Por isso, o Brasil condena, nos termos mais fortes, os recentes ataques deliberados contra o pessoal e a infraestrutura da missão de paz no Líbano.
O Brasil também condena a decisão do Knesset de aprovar ontem leis contra a UNRWA. Ao tentar desmantelar serviços essenciais para os palestinos, essas leis agravam o sofrimento de um povo já devastado e contrariam o pedido da Corte Internacional de Justiça para que Israel facilite o acesso a assistência humanitária em Gaza.
Esforços para enfraquecer a UNRWA não são apenas ataques a uma instituição, mas à própria sobrevivência e dignidade do povo palestino. Atacar a UNRWA não eliminará o status de refugiado do povo palestino, nem a responsabilidade da comunidade internacional de proteger aqueles que precisam.
Devemos rejeitar essa lei pelo que ela realmente é – um precedente perigoso que enfraquece o multilateralismo e abre caminho para uma maior erosão da ordem global.
Senhor Presidente,
Quando o direito internacional é violado, os responsáveis devem enfrentar as consequências. É nosso dever, como Estados-membros da ONU, garantir que a justiça seja aplicada, que investigações sejam realizadas, que responsabilidades sejam atribuídas e que penalidades sejam impostas para prevenir a impunidade e manter o Estado de Direito. Devemos defender a justiça, não apenas clamar por ela.
Diante de um caso plausível de genocídio e do ataque indiscriminado contra civis, a comunidade internacional não pode mais ser cúmplice fornecendo armas que possibilitem tais crimes. O mesmo vale para armas que prolongam a ocupação ilegal dos territórios palestinos.
Não podemos permitir que o veto se torne um escudo para a impunidade.
Senhor Presidente,
Cada vez que este Conselho se reúne para discutir o Oriente Médio, a situação se torna mais grave. Novas frentes surgem, mais vidas inocentes são perdidas, e a crise se aprofunda. Os recentes ataques ao Irã só reforçam o risco crescente de uma catástrofe regional.
Estamos caminhando para um mundo onde as futuras gerações herdarão apenas um legado de conflitos e sofrimentos sem fim. Quantas vidas inocentes serão contabilizadas na próxima vez que nos reunirmos? Quanto mais sofrimento permitiremos?
A guerra não trará paz ao Oriente Médio. A paz virá através de um compromisso decisivo com a diplomacia, fundamentado na justiça e no respeito pelo direito internacional.
Enquanto enfrentamos a escalada de violência e a expansão do conflito, o apelo do Presidente Lula para uma revisão da Carta da ONU ressoa mais urgentemente do que nunca. Devemos às futuras gerações assegurar que este órgão tenha a força e o mandato para defender a justiça, proteger a humanidade e garantir uma paz duradoura.
É hora de dar os passos ousados necessários para tornar a paz não apenas uma aspiração, mas uma realidade para todos.
Obrigado.