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Discurso na solenidade de abertura da Exposição Universal do Ano 2000 - Hannover, Alemanha, 31 de maio de 2000
A Exposição Universal de Hannover, que coincide com a celebração dos 500 anos do descobrimento do Brasil, é um acontecimento marco na entrada do terceiro milénio. É, portanto, uma grande honra para mim comparecer à sua inauguração e dirigir-me às personalidades aqui presentes. Hannover traz a marca das exposições universais que a precederam, em que a inovação técnica esteve sempre em pauta. Na Filadélfia, em 1876, Graham Bell anunciou a invenção do telefone, e ali esteve Dom Pedro II, Imperador do Brasil. Em 1889, na França, foi a vez de Thomas Edison revelar o fonógrafo. A cada conclave, descobertas de impacto vieram a lume, ampliando as fronteiras do saber, revolucionando as comunicações. Seguindo essa tradição, a Expo-iooo se reúne sob o signo da tecnologia, posta a serviço do bem comum e com ênfase na preservação ambiental. Se existe algo a caracterizar a passagem do século, é precisamente o avanço extraordinário que se observa nas tecnologias de informação, diluindo fronteiras, integrando mercados, acelerando a globalização dos processos de produção, dotando os agentes económicos de maior flexibilidade, multiplicando os fluxos financeiros. Um grande pensador contemporâneo, Manuel Castells, chega a situar o paradigma tecnológico baseado na informação como inspirador de um novo modelo de desenvolvimento. Esse modelo não substitui o modo de produção capitalista, mas lhe dá nova face com a emergência da sociedade em rede. O fato é que passamos a deter uma capacidade inaudita de geração de riquezas, que se sabe em permanente expansão. A sociedade da informação permite intensificar os investimentos produtivos, a livre circulação de ideias e serviços, dinamizando imensamente as economias. Mas também há perdas nessa equação, a começar pela questão do emprego, que aumenta o desafio de qualificação da mão-de-obra, notadamente nos setores nos quais é mais intensa a utilização de tecnologia. Hoje temos a necessidade de encontrar caminhos para evitar que se marginalize um contingente crescente de excluídos sem chances aparentes de usufruto e ingresso na economia do conhecimento. Para isso, é fundamental não perdermos a perspectiva do Estado Nacional, que, longe de estar obsoleto, tem papel insubstituível na tarefa de aproveitar os impulsos da globalização e enquadrá-los dentro dos objetivos mais amplos do desenvolvimento. O risco da exclusão não ocorre apenas no interior das comunidades nacionais. Ele também se dá no plano internacional. Basta lembrar o impacto das recentes crises financeiras. A ação desordenada dos mercados torna mais difícil para os países emergentes a gestão de políticas públicas duradouras, exatamente aquelas que provêem emprego, saúde, educação, favorecendo o progresso e a coesão social. É preciso, dessa forma, que se combata o fundamentalismo de mercado, que se criem condições para que o avanço técnico resulte em maior justiça e equidade. Isso exige - e sei que assim também pensam outros líderes socialdemocratas, como o Chanceler Schrõder - uma nova arquitetura financeira internacional, que seja capaz de conferir maior racionalidade aos movimentos de capital.
Os recentes ecos de Seattle, de Davos e dos foros de Bretton Woods mostram que ainda temos um longo caminho a percorrer. Alguns passos já foram dados, como o envolvimento das nações emergentes em discussões financeiras antes restritas a um grupo fechado. Temos agora, um G-ao, e não apenas o G-/ ou G-8. Progresso e coesão social, justiça e equidade passam também pela promoção de iniciativas identificadas com o desenvolvimento sustentável, tema que tanto nos mobilizou na Conferência do Rio, cujas decisões, entretanto, continuam a requerer vontade política para serem implementadas. É hora de resgatar o espírito de convergência da Agenda 21, que concebeu a questão ambiental de modo inovador. Hora de estabelecer os mecanismos necessários para o acesso do mundo em desenvolvimento a recursos financeiros novos e adicionais e a tecnologias limpas. De 1992 para hoje muita coisa mudou na política ambiental brasileira. Começamos a enfrentar não apenas os desafios inerentes à condição de país tropical, com a conservação da biodiversidade e a preservação de florestas, mas também problemas típicos da urbanização e das sociedades industriais.
A agenda é complexa, multifacetada, como não poderia deixar de ser a de um país que, detendo a maior diversidade biológica do planeta, 40% das florestas tropicais, 20% da água doce disponível no mundo e um litoral de cinco mil milhas, ainda conta com o maior parque industrial do hemisfério sul e tem 75% de sua população vivendo em cidades, algumas mais populosas do que muitas capitais europeias. Nos anos 90, emergiu um Brasil novo, que refez sua prática em relação ao meio ambiente e que também procedeu a uma histórica correção de rumo na economia. O Brasil dominou a inflação e assegurou as condições de estabilidade necessárias ao crescimento. Iniciou a reforma e o soerguimento do Estado, de modo a habilitá-lo a cuidar com eficiência do desenvolvimento social. Nossas empresas souberam reagir à liberalização comercial com empenho e criatividade, reduzindo custos, melhorando a qualidade dos produtos, aumentando sua competitividade, investindo na modernização e expansão do parque produtivo e ampliando o acesso aos mercados internacionais. Recordo que na Exposição Universal de São Petersburgo, em 1884, o patrono da diplomacia brasileira, Barão do Rio Branco, comandou com muito êxito uma ofensiva de promoção do café brasileiro. Cento e vinte anos depois continuamos a ter orgulho do nosso café, que está cada dia mais refinado, mas também podemos falar, com satisfação, da qualidade de nossas aeronaves, de nossos veículos automotores, de nossos calçados, de nossas chapas siderúrgicas e de vários outros produtos que compõem a pauta externa brasileira. Podemos falar também das nossas empresas que exportam serviços e know-how, desde obras de engenharia até exploração de petróleo.
O dinamismo de setores como energia e telecomunicações, a expansão do acesso à Internet, a tradição do nosso sistema de pesquisa científica revelam muito da feição atual do Brasil, da sua propensão à incorporação de novos padrões tecnológicos, inclusive daqueles associados à economia do conhecimento. Isso concorre para a excelência de áreas como a tecnologia agrícola, que trouxe efeitos imediatos sobre a produtividade no campo, credenciando o Brasil a uma disputa competitiva no mercado externo, sem recorrer a subsídios como os que continuam a amparar a produção em países desenvolvidos e que distorcem o comércio internacional. A pecuária brasileira, graças também ao avanço da ciência, tem sabido responder às crescentes exigências internacionais de controle sanitário, esforço há pouco recompensado com a certificação de áreas livres da febre aftosa em nosso território. Tecnologias, progressos em infra-estrutura, estabilidade económica e crescimento não são metas que o Brasil persegue sozinho. Fazem parte de uma agenda mais ampla, que partilhamos com todos nossos vizinhos: a agenda de uma América do Sul coesa e integrada. Em breve, estarei reunido em Brasília com os demais Presidentes sul-americanos para lançarmos, juntos, as bases de uma associação mais efetiva, lastreada em nossa tradição pacífica e na defesa da democracia. Vamos avançar nas questões da nossa geografia comum e responder, com mais confiança, aos desafios do mundo globalizado. É uma iniciativa que não seria possível sem o êxito que é o Mercosul, que se fortalece a cada dia. Uma América do Sul coesa e mais integrada concorrerá para o esforço de associação entre o Mercosul e a União Europeia. Quanto mais unidos estivermos a nossos vizinhos imediatos, maiores as possibilidades comerciais e os ganhos de escala para iniciativas conjuntas com o empresariado europeu, inclusive o alemão, que tem demonstrado sua confiança no Brasil. Brasil e Alemanha mantêm uma parceria privilegiada.
Um dos alicerces dessa relação modelar é a presença de significativa comunidade de origem germânica no Brasil, sobretudo no sul do país. São cerca de 12 milhões de descendentes de alemães, uma das quatro principais contribuições da imigração europeia para a formação do Brasil. A importância dos investimentos alemães é outro dado a ressaltar. A Alemanha está entre nossos três maiores investidores, com estoque estimado em mais de 12 bilhões de euros. Essa é uma parceria que se traduz diretamente em geração de empregos nos dois países. Não se resume a transferência de capitais. Envolve aporte de conhecimento, incorporação de tecnologias e formação de recursos humanos. Manifesto minha satisfação de voltar à Alemanha, esta Nação que em cinco décadas reconstruiu sua identidade, criou uma democracia vibrante, uma economia competitiva e presta notável contribuição à paz, à segurança e à prosperidade internacional. A reunificação alemã é um símbolo vivo da superação da era dos confrontos e da tensão permanente. Como na Alemanha, redescobrem-se nos dias de hoje oportunidades em todas as latitudes. A América Latina avança nas reformas. A Europa é um exemplo admirável de integração, em permanente atualização e aperfeiçoamento. Os Estados Unidos são pólo indiscutível do crescimento global. A Ásia é uma das regiões mais dinâmicas.
No Oriente Médio, a sempre renovada esperança da paz tem sido reforçada por avanços efetivos. A África, continente sofrido, possui imenso potencial de desenvolvimento e não pode prescindir do apoio da comunidade internacional para que possa romper seu ciclo histórico de pobreza e de conflitos armados. Senhoras e Senhores, a vocação universalista do Brasil, em cujo reconhecimento identifico a origem do convite que me foi feito para vir a Hannover, é, sem dúvida, a nossa maior credencial para participar da nova era de construção da paz e do desenvolvimento em que está engajada hoje a comunidade internacional. Isso me estimula a afirmar, aqui em Hannover, um sonho maior, o sonho de que, para a humanidade, o terceiro milénio signifique caminhos de liberdade, de justiça e de solidariedade. O sonho de que, neste novo tempo que é a inspiração da Expo2000, a técnica comungue sempre com a natureza e que a ciência e a tecnologia possam traduzir-se em benefícios para todos, não só para os mais ricos ou para os mais privilegiados. Que o acesso à educação se universalize. Que a pobreza e a miséria sejam erradicadas. Que a cooperação prevaleça sobre o conflito. Não se deve buscar simplesmente uma globalização amparada na interdependência económica e financeira, mas a tessitura de uma sociedade global que se oriente por um humanismo renovado. Esse horizonte humanista é indispensável para entender que, se a ciência e a técnica são importantes, não se pode perder a perspectiva da política e dos valores. Os avanços tecnológicos não são suficientes para que o mundo se torne melhor. A garantia - se é que existem garantias na vida - está no fortalecimento da democracia e dos direitos humanos como valores fundamentais. O filósofo Jiirgen Habermas chamou a atenção para o fato de que a praxis humana não se limita à ação instrumental, mas envolve o que ele denominou de "ação comunicativa", a dimensão da interação pelo diálogo, pelo convencimento. Isso é a base da democracia, que não é apenas representação, mas é deliberação. O motor da história não é apenas o avanço da técnica, mas também a deliberação humana sobre como utilizar os resultados da técnica. É o que vemos no momento atual. Os efeitos da globalização - tanto no plano comercial quanto no financeiro - dependerão em larga medida de nossas decisões e de nossas ações. Depende de nós mesmos fazer com que ela promova as oportunidades de desenvolvimento, que favoreça o investimento produtivo, que reduza as assimetrias de riqueza e de bem-estar. A globalização e os avanços da ciência e da técnica devem valer para todos. E é esta mensagem de universalidade que, hoje, Hannover sinaliza ao mundo. É imperativo que a ordem internacional do século XXI supere os problemas herdados do século XX. É preciso que seja uma ordem melhor, mais justa, sem monopólios da prosperidade, do saber ou do poder. Uma ordem que aceite as especificidades locais e cujos traços distintivos sejam a preservação da paz, o respeito aos direitos humanos, o desenvolvimento sustentável, a luta contra o desemprego e a exclusão social. Hannover é hoje uma antevisão do futuro. E o Brasil está pronto para participar desse futuro e ajudar a torná-lo realidade.
Muito obrigado.