Notícias
Discurso durante jantar oferecido pelo Chicago Council of Foreign Relations - Chicago, EUA - 27 de setembro de 1990
Sejam minhas primeiras palavras para agradecer o amável convite que me dirigiu o «Chicago Council on Foreign Relations». Fiquei particularmente feliz com a oportunidade de vir até aqui para falar-lhes das mudanças que ocorrem no Brasil, e, em especial, da perspectiva de nossa presença no sistema internacional. Escolhi para breves considerações o seguinte tema: «O Brasil e o Mundo no Final do Século XX». A cidade de Chicago é ambiente que inspira a realização das grandes transformações. Isto se vê no arrojo da arquitetura, na força plástica de um skyline que revela a pujança econômica e a ousadia empreendedora desta comunidade. Já no início do século, em 1908, o primeiro Embaixador do Brasil em Washington, Joaquim Nabuco, grande estadista e escritor, afirmava na Universidade de Chicago: «Aqui nos achamos em um dos portões do mundo, por onde entram novas concepções sociais, novas formas de ser, em uma das fontes da civilização moderna». Chicago, acrescentava Nabuco, «... é a primeira de todas as estações de experiência de americanização». Foi muito intenso o impacto que me causou esta metrópole quando aqui estive pela primeira vez no começo dos anos 70. Vim para adquirir equipamentos de composição e impressão off-set para o nosso jornal em Alagoas, estado brasileiro. Encontrei uma ampla oferta de tecnologia moderna, preços competitivos, rigor no cumprimento dos prazos. Guardo a melhor recordação dessa viagem, desse contato com o vigor de uma cidade que, ao longo do tempo, soube confirmar a sua condição de símbolo de uma atitude pioneira madura, da coragem que o tempo não enfraquece mas consolida, uma expressão fiel do caráter do povo deste país.
O Brasil vive um momento decisivo na história de sua modernização, com profundas transformações da ordem interna e de nossa inserção no cenário internacional. Com o fim do processo de transição democrática, marcado pela realização das primeiras eleições diretas para a Presidência da República desde 1960, os brasileiros conquistaram finalmente a plena cidadania política. Reencontramo-nos com a vocação pluralista que tem por origem a própria história da formação de nossa sociedade. O Brasil é uma nação erguida com a participação de pessoas que vieram de todos os cantos do mundo — da Europa, da África, do Oriente Médio, da Ásia — e que lá tiveram a oportunidade de uma vida melhor, para elas e para seus descendentes. Faz parte da alma brasileira o desejo de progredir na diversidade, com liberdade. Somos fortemente avessos aos modelos que procuram subjugar os particularismos e o direito dos indivíduos e das comunidades de serem diferentes. Compartilhamos o sentimento dos povos das Américas. Como disse Joaquim Nabuco quando aqui esteve, «o espírito político americano é uma combinação do espírito da liberdade individual com o da igualdade. A liberdade por si só não converteria o imigrante estrangeiro num novo cidadão; ... o imigrante... eleva-se socialmente na América, e eis o que o, faz desejar ser americano».
O povo brasileiro alcançou a liberdade. Restanos agora o enorme desafio de alcançar a prosperidade e a justiça social. Não fomos capazes até hoje de traduzir o progresso que realizamos em melhora substantiva da qualidade de vida da maioria de nossa população. O Brasil tem um dos piores perfis de distribuição de renda do mundo, um quadro humano absurdo e inaceitável. Numa sociedade marcada por contrastes dramáticos, é muito forte o apelo dos projetos de igualdade. É natural que seja assim. E é natural também que trabalhar pela igualdade torne-se o núcleo da ação do Governo. Mas a nossa aspiração de igualdade não ê menor do que a determinação em consolidar a democracia, inclusive porque a democracia, nós o sabemos muito bem, é a única forma de garantir a construção de uma sociedade verdadeiramente igualitária. Está em curso um amplo trabalho de transformação da realidade brasileira. A democracia é fortalecida com o funcionamento pleno de todos os poderes constituídos e com a crescente organização dos vários setores da sociedade nacional. Meu governo participa da implantação dos hábitos democráticos no dia-a-dia de nossa gente e de nossas instituições. Com esse mesmo propósito, lidera um esforço de revisão e mudança do papel do Estado, que deve concentrar sua presença nas atividades que lhe são próprias numa democracia fundada no pluralismo político e na livre iniciativa, isto é, na assistência aos desassistidos, na educação, na saúde, na segurança e na infra-estrutura de energia, transportes e comunicações. Estamos empenhados em sensibilizar a sociedade para o imperativo da valorização do trabalhador e da recompensa adequada por sua contribuição. Não cabe ao Governo mudar as relações de trabalho no País, mas é nossa obrigação apresentar idéias e propor caminhos. Esse é o sentido com que vimos insistindo na responsabilidade social dos empresários e defendendo a participação dos trabalhadores no lucro das empresas. 45 Em suma, tratamos de estabelecer no Brasil as condições que o habilitem a recuperar o tempo perdido e a avançar rapidamente para a modernidade. Ao enfrentarmos esse desafio, pretendemos estabelecer com o resto do mundo um intercâmbio que favoreça nosso empreendimento. A perspectiva de mudança facilita uma inserção renovada do País no meio internacional. A modificação da natureza e da qualidade de nossos laços externos impulsiona, por sua vez, a evolução interna. Será fundamental a preservação do bom equilíbrio entre esses dois movimentos.
Tive a preocupação inicial de afastar de nós o espectro de uma imagem negativa de país sem rumo e pouco confiável. Encontrei o Brasil desgastado pelo peso e pela intensidade das críticas internacionais nos campos da ecologia, dos direitos humanos e da dívida externa. Encontrei o País até certo ponto intimidado pela opinião pública mundial.
Era evidente, entretanto, que das eleições presidenciais de novembro e dezembro saíra uma Nação engrandecida, urna realidade em que essa imagem adversa não mais faria sentido. Senti que um governo com a força da legitimidade popular poderia liderar essa reversão. Decidi que o caminho não seria nem o da negação teimosa dos fatos, nem o da maquiagem desses mesmos fatos. Optei por mudar a imagem pelo debate, pela transparência e, sobretudo, pela obstinação em mudar profundamente a nossa realidade. No que concerne ao meio ambiente, por exemplo, cuidei de colocar o Brasil numa posição de vanguarda. Meu governo deu início a um programa sem precedentes de defesa ambiental e de mobilização nacional em torno dessa causa. No plano externo, passamos à ofensiva com propostas de diálogo internacional maduro e equilibrado sobre o tema, de aumento do volume de recursos destinados à cooperação nesse campo e de total empenho na preparação da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que o Brasil se ofereceu para sediar, em 1992, por estar seguro de que o evento poderá mudar a história das relações entre o homem e a natureza em todo o planeta. Continuamos a insistir na necessidade de se ampliar o acesso às chamadas «tecnologias limpas», imprescindíveis à revolução ecológica mundial em que pretendemos tomar parte.
No campo dos direitos humanos, o meu governo pretende somar a força que essa causa adquiriu nos últimos tempos, em nível internacional, à determinação de nossa sociedade de fazer com que a cidadania no País não se limite à liberdade política e se estenda a todas as dimensões da dignidade da pessoa. Faço questão de tomar conhecimento, diretamente, das denúncias que chegam, de brasileiros e estrangeiros, sobre alegadas violações. Meu governo tem tomado as providências que lhe cabem e tem procurado sensibilizar a opinião pública e as administrações estaduais e municipais para que tratemos de erguer uma nação em que a paz social seja lastreada no bem-estar, na segurança, e no respeito mais rigoroso aos direitos do próximo, de todos os cidadãos. A proteção da existência e do modo de vida de nossos índios situa-se na confluência do respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente. O bem-estar e a cultura desses povos devem ser assegurados a qualquer custo, e um dos requisitos essenciais para tanto é a preservação de seu habitai natural. Deixar de fazer isso é uma violência que se comete contra o índio. Falei do tratamento que meu governo tem dado à questão dos direitos humanos, do meio ambiente e do índio, e da posição que elas ocupam em nossa agenda externa. Procurei ser claro, mas gostaria que fosse ressaltada uma conclusão central: o Brasil nada tem a esconder, porque tem a coragem de encarar de frente a verdade dos fatos, para resolver nossos maiores problemas com urgência e de uma vez por todas.
Passo agora à questão da dívida externa. Ao assumir o Governo em 15 de março, encontrei uma comunidade financeira internacional já inclinada a reconhecer que, nos termos em que estava originalmente fixada, era de pagamento rigorosamente impossível. As cifras são de uma magnitude tal que nem mesmo as economias dos países industrializados poderiam resistir a uma drenagem prolongada de recursos nessas proporções. Fiz questão de iniciar o saneamento de nossa economia interna antes de fazer contatos mais conclusivos com os credores e com os organismos financeiros internacionais. Precisávamos recuperar a estabilidade e um clima de confiança para só então começar conversações equilibradas e construtivas em que o critério básico para nós é o seguinte: cumpriremos os compromissos assumidos, mas daremos prioridade à inadiável retomada do crescimento econômico do Brasil. Estamos certos de que agindo dessa forma, com negociações serenas e racionais, atenderemos melhor aos interesses do povo brasileiro e do sistema econômico mundial. Ao final, o que desejam todos é a integração plena do País à comunidade financeira e ao mercado internacionais. Nestes três exemplos — do meio ambiente, dos direitos humanos e da divida externa — pode-se perceber claramente que o Brasil está determinado a se aliar firme e positivamente às tendências predominantes do contexto internacional no processo de renovação de sua sociedade. Vamos utilizar ao máximo o que o mundo tem a oferecer-nos neste momento da história, remando a favor da onda de transformações eminentemente criadoras que vai alterando a face política e econômica do planeta.
Celebramos o fim da guerra fria, contra a qual sempre nos insurgimos, e tencionamos fazer com que as energias diplomáticas e os recursos materiais liberados propiciem um tratamento mais responsável, consistente e moral do problema do subdesenvolvimento. Não acreditamos que a nossa civilização possa sustentar-se sobre a paz entre os grandes, de um lado, e a tensão e a miséria grassando entre os outros dois terços da humanidade. A paz deve ser universal e, para que assim seja, deve fundar-se sobre o bem-estar universal. O Brasil defende a paz, não como um mero ideal, mas como um requisito indispensável à realização dos valores e das aspirações humanas. Sempre sustentamos que a paz só se alcança com a obediência rigorosa às regras da boa convivência e do direito internacionais. Consideramos fundamental o papel da Organização das Nações Unidas, libertada agora das discordâncias e vetos sistemáticos derivados do conflito Leste-Oeste. Suas resoluções de caráter obrigatório devem ser cumpridas rápida e integralmente. No dia em que a ONU for capaz de desempenhar por inteiro as funções para as quais foi concebida, certamente estaremos vivendo em um mundo melhor para todos. Alegramo-nos com o crescente predomínio do modo de vida democrático e não deixaremos de nos valer desse impulso para o fortalecimento de nossa própria democracia, nascida quando o autoritarismo ainda não deixara de existir em importantes países agora reencontrados com a liberdade.
Compreendemos perfeitamente o significado da ampliação do comércio internacional, da negociação das novas regras que passarão a regê-lo, e do peso cada vez maior da capacidade científica e tecnológica como requisito de uma participação benéfica nesse intercâmbio. Nossa resposta a essa evolução contemporânea é francamente positiva. Por meio de uma nova política industrial e de comércio exterior, resolvemos alargar a exposição de nossa economia à concorrência externa, convencidos de que assim daremos um empurrão decisivo na modernização que buscamos realizar.
O meu governo teve a coragem de romper com uma tradição mais restritiva e de tomar medidas abrangentes de liberalização das importações. Passamos da resistência firme às pressões por uma maior abertura, para uma posição de vanguarda no desmonte do protecionismo. Tratamos de acelerar a redução de nossas tarifas e de eliminar entraves burocráticos e proibições. Sustentamos a necessidade de se respeitarem com rigor as normas que regem o tratamento da propriedade industrial e intelectual e é esse o sentido em que trabalhamos na proposta de aprimoramento da legislação brasileira. Estamos fazendo a nossa parte e esperamos que a comunidade internacional reaja positivamente, em especial na «Rodada Uruguai» do GATT. Os países desenvolvidos precisam rever certas posições defensivas — como as referentes aos setores têxtil e agrícola — atitudes incompatíveis com o momento que estamos vivendo. Integramos a corrente pela formação de novos espaços econômicos regionais, fundados na proximidade geográfica e nas afinidades culturais e históricas. Nossa ação externa atribui a mais alta prioridade à integração com os países vizinhos da América do Sul, centrada, numa primeira etapa, nos entendimentos com a Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Trabalhamos para que essa rede de intercâmbios venha estender-se à América Latina como um todo, e aos demais países das Américas. Empenhados nesse projeto, vemos com satisfação e esperança o sentido da «Iniciativa para as Américas», anunciada recentemente pelo Presidente George Bush. Parecenos um passo relevante, em bom momento e boa direção. Compartilhamos todos a condição de Estados democráticos determinados a melhorar a qualidade de vida de seus povos. Juntos formamos, recorrendo uma vez mais à expressão de Joaquim Nabuco, «uma só unidade moral na história», viabilizada agora pela democracia.
O Brasil quer participar com intensidade cada vez maior na criação de um mundo de paz, liberdade, justiça e bem-estar. Aproveitaremos o que de melhor o ambiente internacional puder oferecer à transformação de nosso País e daremos o melhor de nossa contribuição para que o sonho de felicidade, que é de todos os homens, seja o quanto antes uma realidade concreta. Essa é a vocação do Brasil. Essa é a verdadeira vocação dos povos das Américas. Que Deus nos ajude!