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Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, por ocasião de entrega do Prêmio Félix Houphouët-Boigny pela Busca da Paz – Paris, 7 de julho de 2009
Excelentíssimo senhor Pedro Pires, Presidente da República de Cabo Verde,
Excelentíssimo senhor Abdoulaye Wade, Presidente da República do Senegal,
Excelentíssimo senhor José Sócrates, Primeiro-ministro da República portuguesa,
Excelentíssimo e querido amigo Mário Soares, ex-Presidente de Portugal e Vice-Presidente do júri,
Excelentíssimo senhor Henri Konan Bédié, ex-Presidente da Costa do Marfim e protetor do Prêmio,
Senhor Abdou Diouf, ex-Presidente do Senegal e paraninfo do Prêmio,
Minha querida companheira Marisa,
Senhor Koichiro Matsuura, Diretor-geral da Unesco,
Meu caro Alioune Traoré, Secretário executivo do Prêmio Félix Houphouët-Boigny,
Meus queridos companheiros Ministros brasileiros que me acompanham nesta viagem, Celso Amorim, das Relações Exteriores; Tarso Genro, da Justiça; Fernando Haddad, da Educação; e Juca Ferreira, da Cultura,
Convidados, amigos e amigas da Unesco,
Primeiro, eu queria que os tradutores pudessem me ajudar. Pedir desculpas aos jovens que entraram aqui com a faixa "Lula, tome conta da Amazônia! Não deixe a Amazônia acabar!". Muitas vezes, por um problema de linguagem, não se sabe quem é, e o papel da segurança, às vezes, é não permitir. Mas eu acho que o alerta destes jovens é um alerta que vale para todos nós, porque a Amazônia tem que ser, realmente, preservada. Eu queria que, também, eles não ficassem nervosos com os seguranças, porque é o papel da segurança não permitir. De qualquer forma, o mal-entendido permitiu que toda a imprensa fotografasse a reivindicação dos jovens, que deve ser a reivindicação de toda a Humanidade. A Amazônia tem que ser preservada e cuidada com muito carinho.
Agradeço ao presidente Mário Soares e ao senhor Alioune Traoré por me terem indicado para o Prêmio Houphouët-Boigny. Sinto-me honrado de compartilhar essa distinção com mulheres e homens que dedicaram suas vidas em favor da paz e de um mundo mais justo. Agradeço aos chefes de Estado e de Governo que se deslocaram a Paris para participar desta cerimônia.
Os ideais que inspiram o Prêmio, que são também os da Unesco, decorrem do legado do presidente Félix Houphouët-Boigny. Ele liderou a libertação de seu país. Integrou uma geração de líderes africanos que conduziram a luta de seu continente contra o colonialismo. Foi um precursor da integração econômica, social e cultural da África. Seu exemplo de tolerância é fonte de inspiração.
Recebo este Prêmio, não tanto como uma homenagem à minha trajetória pessoal - sindical e política - e mais como o reconhecimento das conquistas recentes do povo brasileiro.
Lutei nas fábricas, nos espaços sindicais e na arena política de meu país. Em todos esses momentos, sem perder a combatividade, nunca renunciei à busca do entendimento, à construção de consensos e ao fortalecimento da democracia.
Senhoras e senhores,
A promoção de uma cultura de paz é um dos pilares da Unesco.
Conhecemos os horrores e os sofrimentos produzidos por todas as guerras. Os conflitos armados são uma afronta à racionalidade humana. É inadmissível tentar invocar o nome de Deus para justificá-los. É inaceitável justificar a agressão como medida preventiva. É intolerável querer transformar a diferença entre as civilizações -- em motivo de conflitos.
A paz é causa e conseqüência da luta pela liberdade, da democracia. É prerrogativa para o fortalecimento do estado de Direito, para a promoção da igualdade, para o combate à pobreza e à fome. Ela se confunde com a própria dignidade humana e dela se alimenta.
A paz tem múltiplas faces. Construí-la requer persistência. Exige mais do que pôr de lado as armas. Não haverá paz verdadeira enquanto não forem enfrentadas as raízes profundas dos conflitos, enquanto houver fome, desigualdade e desemprego, mas também enquanto persistir a intolerância étnica, religiosa, cultural e ideológica.
A paz no plano doméstico é tão importante quanto a ausência de guerras entre as nações. Com intensa participação da sociedade civil, elaboramos um conjunto de políticas voltadas para os setores menos favorecidos.
No Brasil, entendemos o elevado preço de deixar tantos de seus filhos entregues à própria sorte. O Estado brasileiro retomou seu papel essencial no fomento ao desenvolvimento e na promoção do bem-estar, sobretudo em face da enorme dívida social do País. Isso nos ajuda a construir uma cultura de paz.
Investimos no aprimoramento do ensino público e gratuito em todos os níveis. A Educação para Todos é uma ferramenta essencial para que todos possam tornar-se cidadãos. Pouco mais de seis anos após o lançamento do programa Fome Zero, a desnutrição já se tornou problema marginal no Brasil. Com o programa Bolsa Família, mais de 40 milhões de brasileiros deixaram a condição de indigentes. O índice de desigualdade é o mais baixo das últimas três décadas no meu país.
Provamos ser perfeitamente compatível articular equilíbrio macroeconômico com ações capazes de distribuir renda e gerar inclusão social. O País voltou a crescer de modo sustentado. Foram criados milhões de novos empregos formais. Consolidamos uma ampla rede de proteção social.
O Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer. Muitas demandas ainda seguem pendentes.
Mas os brasileiros voltaram a confiar em si próprios, a ter esperança no futuro.
Senhoras e senhores,
Para vencer a pobreza, a desigualdade e a exclusão social, não basta avançar no âmbito nacional. É uma ilusão imaginar que a prosperidade e a democracia podem ser logradas em meio à miséria. O desenvolvimento e a estabilidade de nossos vizinhos são fundamentais para a construção de nosso próprio progresso.
Não tenho dúvidas de que as Metas de Desenvolvimento do Milênio serão alcançadas no Brasil. Mas é necessário assegurar que sejam atingidas na América Latina como um todo e nos demais países em desenvolvimento.
O momento é propício. A América do Sul vive uma vigorosa onda de democracia, encabeçada por segmentos historicamente deserdados e marginalizados, que hoje encontram seu lugar e sua voz numa sociedade mais solidária. Por isso, não podemos permitir retrocessos. Por isso, condenamos de forma veemente o golpe em Honduras, no último domingo.
Estamos forjando instituições supranacionais novas que refletem uma concepção de integração ampliada, solidária, com forte componente social e que leva em consideração a necessidade de reduzir as assimetrias entre os seus membros.
A Unasul já mostrou a que veio. Foi decisiva para a solução pacífica das disputas internas que sacudiam a Bolívia. Vai enfrentar a violência e a criminalidade transnacional com instrumentos próprios, como os Conselhos de Defesa e o Conselho de Combate às Drogas.
Nossa parceria vai além da criação de um espaço econômico continental. Queremos que a articulação de nossa diversidade seja um fator de multiplicação de nossa força.
A América Latina e o Caribe formam a primeira zona desnuclearizada do globo. O Brasil é um dos poucos países a consagrar em sua Constituição o uso da energia nuclear para fins exclusivamente pacíficos.
Os arsenais nucleares são peças ultrapassadas e obsoletas, de um tempo já superado de equilíbrio do terror. Por essa razão, não basta opor-se à proliferação nuclear. É necessário, igualmente, lutar pelo desarmamento nuclear.
Outra relíquia da Guerra Fria que acabamos de sepultar foi a exclusão de Cuba do convívio regional. O próximo passo deverá ser o fim do embargo a esse país. Essa medida será um sinal importante da disposição dos Estados Unidos em relacionar-se com toda a região, e certamente contribuirá muito para a paz nas Américas.
No Haiti, emprestamos um novo significado a operações de paz da ONU. A atuação do Brasil e de outros países no âmbito da Minustah mostra que a segurança coletiva tem de combinar-se com a justiça social e o respeito à soberania nacional.
Senhoras e senhores,
Por meio da cooperação Sul-Sul, procuramos contribuir para a redução das desigualdades no mundo. Acabo de participar da reunião de Cúpula da União Africana e verifiquei a vitalidade com que aquele continente irmão se impõe como senhor de seu destino, com respeito à diversidade e à pluralidade das opções políticas entre seus membros.
Sem ingerências externas, a África forja sua inserção soberana no mundo, preservando o espaço necessário para a elaboração e a execução de políticas que permitam superar suas vulnerabilidades e realizar todo o seu potencial. As ações no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa nos permitem ampliar o leque de parcerias para o desenvolvimento.
Na condição de coordenador dos trabalhos da Comissão de Consolidação da Paz das Nações Unidas em Guiné-Bissau, saudamos a realização de eleições pacíficas, na sequência dos tristes acontecimentos que vitimaram o presidente Nino Vieira e outros líderes políticos daquele país.
A solução para a crise no Oriente Médio também nos interessa, porque interessa à Humanidade. E nada que interesse à Humanidade pode nos ser alheio.
A experiência brasileira de abrigar grandes comunidades árabe e judaica em convivência harmoniosa desmente as teses sobre a inevitabilidade do choque de civilizações. O Oriente Médio não está fadado a ser fonte de conflito e de sofrimento. É fundamental avançar rapidamente na criação de um Estado palestino que seja economicamente viável, socialmente integrado e que possa conviver em paz com o Estado de Israel.
Meu governo apoia o Plano Árabe de Paz e outras iniciativas internacionais, como as da Conferência de Annapolis. Esses esforços precisam ter continuidade para que tragédias, como a que assistimos recentemente em Gaza, não se repitam.
Caros amigos e amigas,
Não podemos ficar prisioneiros dos paradigmas que ruíram. A exclusão não é inerente às sociedades humanas, tampouco, inevitável. Nas últimas décadas, predominou a tese, nem sempre de forma explícita, de que o desenvolvimento era possível apenas para uma parcela da população. Os que não podiam ser incorporados à produção, ao mercado e à cidadania eram vistos como empecilhos ao crescimento econômico, como elementos disfuncionais. Qualquer esforço para enfrentar a pobreza e a desigualdade era visto, e até hoje o é por alguns, como assistencialismo ou populismo. Milhões de homens e mulheres eram tidos como um estorvo e não como importante ativo para construir nações prósperas, livres, democráticas e soberanas.
A história está se encarregando de desmentir essas falsas teorias. Felizmente, já não vigoram as teses do Estado mínimo, sem presença reguladora forte. O mercado já não é uma panacéia que resolve tudo.
É hora de recuperar as melhores tradições humanistas de líderes como o presidente Houphouët-Boigny, fazendo desses ideais uma agenda progressista e uma agenda factível.
É hora de colocar o tema do desenvolvimento no centro da agenda internacional.
Segundo dados da FAO, mais de 1 bilhão de pessoas no mundo passam fome nos dias de hoje. É lamentável que no início do século XXI, marcado pelos avanços científicos e tecnológicos sem precedentes, um sexto da população do globo ainda padece do flagelo da fome.
A Ação Global Contra a Fome e a Pobreza, que lancei em 2004 em parceria com outros líderes, concluiu que seriam necessárias outras iniciativas baseadas em Mecanismos Financeiros Inovadores. Alguns passos foram dados, especialmente no campo dos medicamentos para os países pobres da África. Mas é preciso aprofundar esse esforço.
A crise econômica mundial só tende a agravar a situação dos mais pobres. Nos países desenvolvidos o impacto social da recessão é absorvido mais facilmente, tendo em vista a persistência de uma ampla rede de proteção social.
Em muitos países em desenvolvimento a situação é outra. Há uma perversa combinação entre redução das exportações e dificuldades para obter financiamento internacional.
As remessas enviadas pelos trabalhadores migrantes que vivem nos países desenvolvidos diminuem, comprometendo uma importante fonte de recursos de vários governos mas, sobretudo, de muitas famílias. Os imigrantes vêem sua situação piorar a cada dia, com o recrudescimento da xenofobia nos países ricos.
Não é substituindo um conservadorismo fracassado por um nacionalismo protecionista que vamos sair dessa crise. É a atuação conjunta e o esforço coordenado que surtirão efeito.
Em meu país, respondemos à recessão com políticas anticíclicas. Legalizamos também dezenas de milhares de trabalhadores estrangeiros que ajudam a construir a prosperidade do Brasil. Eles passam a ter todos os benefícios dos cidadãos brasileiros.
A crise tornou evidente que a concentração do processo decisório nas mãos de poucos é uma receita falida. As reuniões do G-20 Financeiro, em Washington e Londres, reconheceram o papel dos países em desenvolvimento na manutenção da estabilidade econômica global.
A consolidação do diálogo entre países emergentes, como a recente Cúpula dos Brics realizada em Ecaterimburgo, ajuda a preencher a lacuna deixada pela crise de representação nas relações internacionais.
Da mesma forma, meu governo se empenhou na criação do Fórum Índia-Brasil-África do Sul, o Ibas, que reúne três grandes democracias pluriculturais e pluriétnicas da África, da Ásia e da América do Sul.
Vemos nesta multiplicidade de iniciativas passos importantes em direção a um mundo multipolar, regido pelos princípios do multilateralismo.
Senhoras e senhores,
Um mundo mais democrático na tomada de decisões que afetam a todos é a melhor garantia de nossa segurança coletiva, dos direitos dos mais vulneráveis e da preservação da saúde do Planeta. Isso só será possível com a reforma dos mecanismos de governança globais. A reforma do Conselho de Segurança da ONU é um passo fundamental nesse sentido. O déficit de participação permanente dos países em desenvolvimento no Conselho só agrava o risco de erosão de sua legitimidade e autoridade.
Reordenar a arquitetura financeira mundial, aumentar os recursos do FMI e do Banco Mundial, e criar linhas de crédito sem as absurdas condicionalidades do passado, eram decisões inadiáveis. Agora precisam ser colocadas em prática.
Concluir a Rodada de Doha, da Organização Mundial do Comércio, de forma equilibrada também será positivo para reanimar os fluxos comerciais, capaz de gerar círculos virtuosos de crescimento nos países em desenvolvimento.
A proteção e a promoção dos direitos humanos é tarefa inadiável. Para o Brasil, o engajamento construtivo é sempre preferível ao isolamento. O estabelecimento do Conselho de Direitos Humanos em 2005, primeiro órgão reformado da ONU, confere enfoque universalista e não-discriminatório no tratamento internacional do tema.
O Mecanismo de Revisão Periódica Universal, imune à antiga seletividade política, é ferramenta singular em sua imparcialidade. A solidariedade e a persuasão - e não a mera condenação - são os meios mais eficazes para o engajamento dos governos e da sociedade civil.
Outro desafio a ser enfrentado de forma resoluta é a mudança do clima. Em Copenhague, no final do ano, precisamos chegar a um pacto global que seja justo e ambicioso para que possamos legar às gerações seguintes um planeta viável. A responsabilidade histórica dos países desenvolvidos pelas emissões de gases de efeito estufa é indiscutível. Seus compromissos de redução não podem ser tergiversados.
Os países em desenvolvimento também contribuirão para enfrentar o aquecimento global. Com o Plano Amazônia e uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo, o Brasil está fazendo a sua parte. Nosso esforço, contudo, deve ser compatível com as necessidades da promoção do desenvolvimento e da luta contra a fome e a miséria.
Senhoras e senhores, meus amigos e minhas amigas,
A Unesco tem um papel importante frente ao desafio de construir um mundo mais próspero, igualitário e democrático, como está registrado em sua própria Constituição. Diz a Constituição da Unesco: "uma vez que as guerras se iniciam nas mentes dos homens, é nas mentes dos homens que devem ser construídas as defesas da paz".
É no ambiente arejado dessa Organização que temas sensíveis poderão ser tratados de modo construtivo em escala global. O diálogo contínuo que se trava na Unesco tem facilitado o abrandamento de tensões políticas internacionais, com soluções inovadoras e pacíficas.
Assim como o desenvolvimento e a igualdade social, o diálogo é componente essencial para a paz.
O Brasil crê na convivência pacífica entre culturas e civilizações diferentes. Por isso, o Rio de Janeiro vai sediar, em 2010, o terceiro Fórum Mundial da Aliança das Civilizações. Esperamos poder recebê-los no Brasil nessa ocasião, motivados pelo mesmo espírito de paz que nos une neste dia tão especial.
Amigos e amigas,
É sempre possível eleger a paz e não a guerra; a democracia e não a tirania; o triunfo dos direitos humanos e não o arbítrio; a igualdade social e o bem-estar coletivo, não a exploração. Essas escolhas demandam coragem, vontade política e clareza de objetivos. Espero que esses valores não faltem nunca à Humanidade.
Uma vez mais, gostaria de agradecer pela indicação deste tão importante Prêmio, não só como presidente do Brasil, mas também em nome do menino do sertão brasileiro que sonhou que, um dia, sua vila, seu país e seu planeta poderiam ser um lugar diferente.
Eu tenho a convicção... meu caro presidente do júri, Mário Soares, meus companheiros presidentes da Unesco, meus companheiros presidentes de países africanos, companheiros convidados,
Eu estou convencido de que a liberdade que nós conquistamos no mundo, que ainda tem muita deficiência, será vencida totalmente porque nós, líderes importantes como vocês, já aprenderam que a única possibilidade de uma nação crescer, educar os seus filhos e garantir cidadania é se essa nação estiver em paz. A paz não é uma coisa qualquer. Ela é fundamental para garantir a subsistência da vida humana.
Um grande abraço e muito obrigado.