Notícias
Perspectivas e desafios da diplomacia do novo governo brasileiro (Revista TCU, 1º semestre 2023)
Entrevista com Ministro Mauro Vieira
Ministro Mauro Vieira Ministro das Relações Exteriores do Brasil. É diplomata pelo Instituto Rio Branco, bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense e doutor honoris causa em Letras pela Universidade de Georgetown (Washington, DC). Foi embaixador do Brasil na Croácia no período de 2020 a 2022 e liderou a equipe diplomática brasileira na Argentina (2004-2010), nos Estados Unidos da América (2010-2015) e nas Nações Unidas (2016-2022).
[Revista TCU] No governo anterior, segundo muitos especialistas, houve uma ruptura dos padrões diplomáticos e da política externa brasileira. Quais as perspectivas da diplomacia no terceiro Governo do Presidente Lula?
[Ministro Mauro Vieira] Já está em pleno andamento, desde o dia 1º de janeiro, a retomada de linhas tradicionais de política externa e de diplomacia presidencial do Brasil, que, nos últimos anos, haviam sido substituídas por uma antidiplomacia que somente trouxe prejuízos ao país. Essa antidiplomacia nos levou a uma situação de isolamento inédita; chegamos a ter um Ministro das Relações Exteriores que ousou vangloriar-se, publicamente, da condição de pária internacional. Foi um choque para a diplomacia brasileira – conhecida pelo profissionalismo – sobreviver a esse retrocesso e passar por essa experiência, mas a página foi virada com as eleições e com a posse. De lá para cá, a instrução do Presidente Lula é a de que nossa prioridade deve ser a de reconstruir pontes entre o Brasil e o mundo. A imagem das pontes destruídas ou danificadas define bem o legado negativo que recebemos, mas, felizmente, já nos primeiros meses de gestão, as pontes entre os principais parceiros foram reconstruídas, e voltamos a trabalhar nos projetos e iniciativas que interessam ao Brasil e que são ditadas pelo interesse nacional, e não por sectarismos e bravatas que não levaram a nada de positivo.
[Revista TCU] Muitas potências internacionais manifestaram apoio ao Governo do Presidente Lula após o resultado das últimas eleições, depositando nele esperanças de retomada do enfrentamento da crise climática mundial. Tendo em vista que a questão ambiental é tema da maior importância para a política externa brasileira, como o governo pretende lidar com essa questão e quais ações específicas estão sendo adotadas?
[Ministro Mauro Vieira] O governo do Presidente Lula tem adotado, desde o primeiro dia de gestão, ações drásticas para combater a criminalidade ambiental, que avançou significativamente nos últimos anos, por razões que são conhecidas e que contribuíram para manchar a imagem e para aprofundar o isolamento internacional do Brasil. Graças a essas ações, e à retomada de um diálogo construtivo com a sociedade e com nossos parceiros internacionais, o mundo hoje conhece o desastre humanitário e ambiental das comunidades ianomâmis, bem como o avanço do desmatamento. Essas tendências destrutivas já começaram a ser revertidas, na prática, e as metas de redução do desmatamento serão atingidas, como já ocorreu nas gestões anteriores do Presidente. Além disso, o Brasil sediará, em agosto, uma reunião de cúpula dos oito países amazônicos, membros da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), para discutir estratégias conjuntas diante de desafios que são comuns em matéria de sustentabilidade.
[Revista TCU] Espera-se que o novo governo retome o protagonismo do Brasil na integração sul-americana. Como deverá ser a atuação do Brasil no Mercosul para que esse objetivo seja atingido? Há planos de revitalização da Unasul ou de criação de outros blocos de integração regional?
[Ministro Mauro Vieira] Uma das primeiras medidas do novo governo foi a de reintegrar o Brasil à Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), ainda em janeiro, com a participação do Presidente Lula na cúpula do grupo, em Buenos Aires. A mesma decisão foi tomada em relação à Unasul, que é um âmbito de concertação na América do Sul com ótimos serviços prestados aos países da região, não apenas na resolução de situações de crise, mas também na discussão e implantação de iniciativas de integração, inclusive de projetos de infraestrutura. O trabalho na Celac e o relançamento da Unasul vão contar com o decidido engajamento do Brasil, até porque, não podemos nos esquecer, a integração latinoamericana é um mandamento constitucional.
Quanto ao Mercosul, concordo que existe a necessidade de revitalização de seus mecanismos. Mas noto um certo exagero nas críticas; acho que não cabe, por exemplo, falar em paralisia. As cifras recentes de retomada do comércio intrabloco e os próprios agentes econômicos vêm desmentindo essa visão pessimista, e todos os países do bloco vêm se beneficiando desses fluxos, e da recuperação que estamos acompanhando.
[Revista TCU] No panorama internacional nos últimos anos, o país foi relegado a um incontestável isolamento. Como o governo pretende retomar o diálogo com importantes atores, como os Estados Unidos da América, a China, a Comunidade Europeia, os países da África e do Oriente?
[Ministro Mauro Vieira] Essa retomada já está acontecendo, a pleno vapor. E minha agenda de viagens e as viagens presidenciais evidenciam a prioridade que estamos conferindo a esse esforço. Para que se tenha uma ideia, nos três primeiros meses de governo mantive 70 reuniões bilaterais com chanceleres, autoridades de primeiro escalão, dirigentes de organismos internacionais e chefes de Estado e de governo, sem falar nos encontros do Presidente Lula com chefes de Estado e de governo que também tive a oportunidade de acompanhar.
Mas, ainda mais importante que essas cifras, tem sido a atitude de abertura ao diálogo e à reconstrução de canais e projetos comuns que tenho encontrado da parte de todos esses interlocutores internacionais. Graças a isso, já recuperamos muito terreno. Temos ainda muito trabalho pela frente, mas a comunidade internacional recebeu a volta do Brasil de braços abertos.
[Revista TCU] Nos últimos anos, houve grande mudança de cenário para os integrantes dos Brics. China e Índia se estabeleceram em 2º e 5º lugares no pódio das economias mundiais; a Rússia entrou em guerra com a Ucrânia, deteriorando a relação com o Ocidente, enquanto Brasil e África do Sul ficaram envolvidos em crises internas. O Presidente Lula declarou que fortaleceria o bloco, esquecido pelo governo anterior. Quais diretrizes o governo pretende adotar para implementar esse fortalecimento?
[Ministro Mauro Vieira] A velocidade da mudança é realmente impressionante no mundo, e os Brics são referência em matéria de vitalidade econômica, como mostram esses números da China e da Índia. Não podemos nos esquecer de que o Brasil chegou a ocupar, em 2011, a posição de sexta maior economia do mundo, e isso demonstra que temos muito terreno a recuperar nos próximos anos, e que a diplomacia é uma das ferramentas para alcançar esse objetivo.
Além disso, não me canso de repetir uma obviedade, mas uma obviedade poderosa: os participantes dos Brics são países que reúnem, em termos de população, a metade da humanidade. Têm, portanto, muito a dizer e também muito a compartilhar, e isso tem sido feito desde a formalização do grupo. É um papel que vai muito além da dimensão econômica desses países, e que envolve também desafios existenciais enfrentados pela humanidade no momento, como o das mudanças climáticas.
A cúpula dos Brics este ano está marcada para agosto, na África do Sul, e não há dúvidas de que o novo governo encontrará um bloco e um mundo muito diferentes, na comparação com os mandatos anteriores do Presidente Lula. Vamos saber lidar com isso e, no que diz respeito à guerra na Ucrânia, o Brasil tem trabalhado com intensidade em busca da promoção do diálogo, e fará isso também no Brics.
[Revista TCU] Se, por um lado, o ingresso do Brasil na OCDE teria potencial de atrair investimentos e melhorar a nota do país em consultoria de risco, por outro lado, com a participação no grupo, o país teria de contribuir anualmente para o orçamento da instituição. Diante disso, como o governo pretende conduzir as negociações de entrada do Brasil nesse importante grupo econômico?
[Ministro Mauro Vieira] São negociações complexas, que requerem tempo e mudanças legislativas internas. Mas é preciso conter expectativas exageradas quanto a prazos, por exemplo; para que tenhamos uma ideia, os países latino-americanos de ingresso mais recente, como a Costa Rica e a Colômbia, negociaram o processo de acessão durante sete anos. Nosso processo de acessão foi anunciado há pouco menos de um ano; temos muito trabalho pela frente, em várias áreas, e o novo governo está avaliando as obrigações e vantagens decorrentes do ingresso como membro pleno da OCDE.
É bom lembrar também que o Brasil participa há décadas de diferentes foros da OCDE, com bons resultados setoriais. Mas é sempre importante reiterar o fato de que ingressar em uma organização não tem o poder de mudar o “status” de desenvolvimento econômico de um país, e a própria composição da OCDE demonstra esse fato. Ser aceito como membro pleno, ao final do longo e complexo processo negociador que se iniciou em 2022, é uma consequência natural desse processo histórico de aproximação, e os benefícios são mútuos: a OCDE também tem muito a ganhar com o ingresso de um país com o peso do Brasil
[Revista TCU] Neste momento em que a Guerra na Ucrânia perdura por mais de um ano, a paz e a segurança mundiais são assuntos relevantes. Recentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva propôs a criação de um grupo de países para mediar saída pacífica para o conflito. Como deve ser a política do Governo Lula em casos como esse, já que o Brasil condena o uso da força e a quebra da integridade territorial?
[Ministro Mauro Vieira] Nossa condenação à invasão da Ucrânia é clara, mas o Presidente Lula tem repetido, desde a posse, e estou plenamente de acordo, que é preciso falar em caminhos para a paz. Sabemos que esses caminhos ainda terão de ser abertos, mas tenho conversado com colegas de vários países que compartilham esse interesse, e que podem ajudar quando as partes entenderem que é o momento de se sentar à mesa para negociar.
O Brasil está à disposição para contribuir para a busca de uma solução, e a comunidade internacional sabe disso. Todos sabemos que essa tarefa só pode ser concluída com um esforço coletivo, de vários países, e com a vontade das partes e dos seus aliados.
[Revista TCU] A diplomacia brasileira sempre teve papel de destaque nos governos anteriores do Presidente Lula. Quais os principais desafios para consolidar a imagem do Brasil como um player importante no cenário internacional?
[Ministro Mauro Vieira] O fim do isolamento já é uma realidade, felizmente. O Brasil voltou ao centro do debate global, e tem sido muito bem recebido. Manifestações dos meus colegas chanceleres têm sido muito eloquentes nesse sentido – de que o Brasil fazia falta. Agora chegou o momento de aproveitar os canais de diálogo reabertos para propor temas que são caros ao país, em áreas como o desenvolvimento sustentável, a democracia, a mudança climática, o resgate do multilateralismo comercial e político e a construção da paz. Teremos uma grande oportunidade em 2024, para a qual já estamos nos preparando internamente: no ano que vem o Brasil presidirá o G20; é uma tarefa que dura o ano inteiro e que nos permitirá propor assuntos prioritários e possíveis soluções para alguns dos desafios da realidade global de hoje.