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Brasil quer EUA, China, Índia, Turquia e UE no seu “clube da paz” para a Ucrânia (Público, Portugal, 23/04/2023)
Mauro Vieira Chefe da diplomacia brasileira diz que aÄrmações de Lula sobre o conÅito “não são de neutralidade”, são de quem “quer falar com todos”: não se pode “estimular apenas a guerra”
António Rodrigues Texto
Rui Gaudêncio Fotografia
O ministro das Relações Exteriores do Brasil acabou de cumprir no princípio deste mês 50 anos de carreira diplomática e está a pensar reformar-se quando deixar de ser ministro. Justamente considerado um dos mais experientes diplomatas do Itamaraty, o palácio em Brasília que é a sede da política externa brasileira, Mauro Vieira insistiu, em entrevista ao PÚBLICO, na tese de que não ouviu as críticas dos Estados Unidos (EUA) ao Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, considerando a posição brasileira “profundamente diplomática” e acusando o Brasil de estar “a repetir a propaganda russa”. “
“Não tomei conhecimento”, diz Mauro Vieira. “Falo com o secretário de Estado americano, o Presidente Lula falou com o Presidente Biden e não tivemos nenhum tipo de conversa que possa levar a essas declarações feitas pelo porta-voz da Casa Branca ou seja o que for.” Segundo o ministro, apesar de o conselheiro do Presidente Lula ter ido a Moscovo e não a Kiev e o ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov, ter sido recebido em Brasília, o Brasil tem canais diplomáticos abertos com os dois lados e tudo o que está a fazer tem um único objectivo: os dois lados se sentarem à mesa para falar de paz
O Brasil tem uma tradição de neutralidade na sua política externa e o Presidente Lula da Silva vem reiterando isso mesmo desde que voltou ao poder, no entanto, as recentes declarações em relação à guerra na Ucrânia não são vistas como neutrais. Não há aqui um contra-senso?
Não acho, porque as declarações não são de neutralidade, as declarações são de alguém de um país que quer todos os canais abertos, quer falar com todos. Tanto que nós, nas Nações Unidas, aprovámos resoluções que condenavam a invasão e a agressão à integridade territorial da Ucrânia. Apesar disso, o Presidente diz que ouve falar muito de guerra e nada de paz, ele quer promover o encontro das duas partes, quer manter canais com as duas partes e quer encontrar um grupo de países que estejam dispostos a promover conversas que levem à paz.
Mas não abriu um canal com a Ucrânia…
Nós temos canais com a Ucrânia. Ele [Lula] já falou duas vezes ao telefone com o Presidente [Volodymyr] Zelensky, eu já me encontrei pessoalmente com o ministro do Exterior, [Dmitro] Kuleba, já falei com ele ao telefone. Nós temos todos os canais.
Para fora, não é bem assim. O assessor de política externa do Presidente Lula, Celso Amorim, foi a Moscovo falar com Vladimir Putin, mas não foi a Kiev; o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, foi recebido por si e pelo Presidente Lula em Brasília, e não há nenhuma acção para que o Brasil seja visto a fazer o mesmo em relação à Ucrânia.
A visão que o público tem pode não ser a perfeita, a mais transparente, mas há contactos dos dois lados; o facto de ter enviado um emissário à Rússia não quer dizer que não vá um emissário também a outras partes…
Mas ainda não foi e até ir há muitas interpretações políticas que estão a ser feitas.
A guerra tem mais de um ano, quantos já mandaram emissários ou já estiveram? Quantos países, quantos Estados? Poucos. Outros talvez tenham ido e não se tenha sabido.
Do G7, por exemplo, já estiveram todos. A União Europeia (UE) até já levou comissários para fazer uma reunião na capital ucraniana.
E já estiveram esses com a Rússia?
Mas eles assumiram que apoiam a Ucrânia neste conflito. Aqui há um Presidente que diz que quer ser neutro.
O Brasil tem canais de comunicação com os dois lados, tanto com a Rússia quanto com a Ucrânia. E o Brasil fala com os dois. Os tempos diplomáticos são especiais, não são tempos cronológicos. O Brasil não quer e não se arvora em ser o negociador da paz e ter a chave para a solução. Nós queremos é mobilizar todos, inclusive as duas partes, para que haja um início de conversas que possam levar à paz.
O Presidente Lula afirmou que os únicos interessados nesta guerra são a Rússia e a Ucrânia, mas a Ucrânia está a defender o seu território de uma invasão…
Que nós já reconhecemos em mais de uma ocasião, na ONU inclusive. Não poderíamos fazer diferente porque a Constituição [brasileira] estabelece como princípios que orientam a política externa a prevalência dos direitos humanos, do direito internacional e, sobretudo, a integridade territorial. Então não poderíamos concordar com a invasão. Nós somos contra e condenamos, agora queremos encontrar uma solução.
Mas querer encontrar uma solução é dizer que as duas partes estão ao mesmo nível quando um país foi invadido por outro?
Se os interesses são maiores do que julgar por essa posição que falou. E os interesses quais são? É a paz, é evitar que continue a haver perdas de vidas e perdas materiais.
Mas fazer uma paz permitindo aos russos ter mais com esta guerra do que tinham antes não é estar a enviar uma mensagem ao mundo de que vale a pena invadir um país?
Essa é a sua conclusão, não é o que estamos a fazer
Qual é então a paz que o Brasil quer que não seja a retirada total das forças russas para repor a ordem internacional que estava antes desta guerra?
Você está queimando etapas. O que nós queremos é que haja um início de conversa. Eu não posso estabelecer no início da conversa que vai ser assim. Eu não sei como vai ser, eu quero é que as duas partes se encontrem e conversem: o resultado é o que eles negociarem. Agora o que não se pode continuar a fazer é estimular apenas a guerra, nós precisamos de paz para o bem de todos, sobretudo da Europa que está tão próxima
O discurso do Presidente Lula, a dizer que a Ucrânia queria entrar na NATO e que foi isso que levou a Rússia a agir, não seria um discurso para ter até 23 de Fevereiro de 2022? Não estará com isso a respeitar as razões da Rússia para justificar a invasão?
O seu raciocínio e a sua conclusão estão equivocados.
Então, explique-me.
O Brasil tem excelentes relações com a Ucrânia. Há 500 ou 600 mil ucranianos e descendentes de ucranianos no Brasil e temos relação há 195 anos com a Rússia — excelentes, temos um grande comércio exterior. Nós mantemos contactos com ambas as partes. Gostaríamos de continuar a ter esses contactos, esse diálogo, essas pontes, para poder promover algum tipo de encontro ou de conversa. Nós não temos nenhuma posição apriorística de que está certa a invasão, aliás porque não está e a condenámos, e porque tem de haver tal ou tal condição. Nada disso, nós nunca estabelecemos — nem o Presidente Lula jamais disse isso — nenhuma condição prévia. Nós queremos é que as partes se sentem e discutam possibilidades de paz. Daí para diante, se conseguirmos isso, acho que é uma grande contribuição do Brasil para a paz.
Quais seriam os países que entrariam neste “clube da paz” referido pelo Presidente Lula?
Países que tenham contacto com os dois lados, países relevantes. Os Estados Unidos, China, Turquia, Índia, os países da União Europeia.
No entanto, as declarações do Presidente Lula não foram bem recebidas nos EUA.
Não sei, a mim não disseram. Disseram a você?
Disseram publicamente através do porta-voz do Conselho Nacional de Segurança da Casa Branca, o almirante John Kirby.
Não tomei conhecimento.
Senhor ministro, as declarações são públicas. Uma coisa é não querer responder, outra é afirmar que não as conhece, isso seria um pouco estranho, não?
Não levo em conta. Da mesma forma que temos contactos com ambos os lados — recebi o Lavrov, já falei com o ministro do Exterior da Ucrânia pessoalmente e por telefone, já o convidei para vir ao Brasil, inclusive —, falo com o secretário de Estado americano, o Presidente Lula falou com o Presidente Biden e não tivemos nenhum tipo de conversa que possa levar a essas declarações feitas pelo porta-voz da Casa Branca ou seja o que for.
Isso foi no dia em que recebi o ministro Lavrov e parti em seguida para África. Não sei, não ouvi, não tomei conhecimento. Depois tive outros compromissos e, realmente, sei que ele falou, que fez uma crítica…
Não lhe parece então que as posições do Presidente Lula em relação à guerra na Ucrânia, acusando até os EUA de estarem a promover a guerra…
Não acusou de promover a guerra, ele instou os dois lados a pararem de falar em guerra e falar em paz. Pode distorcer-se o que se quiser.
E paz pode ser feita com um exército ocupando uma parte do território do outro?
Como foi na II Guerra Mundial e noutras partes. Têm de conversar. Se negociar com pré-condições, fica tudo muito difícil
Disse no seu discurso na posse que o foco do Governo será “a reconstrução do património diplomático no grande palco das relações internacionais” e que o Presidente Lula quer uma política de “reconstrução de pontes”. Nestes meses do Governo, conseguiram reconstruir pontes?
Totalmente. Sempre tivemos bons diálogos e boa relação com todos os nossos dez vizinhos da América do Sul, com a América Latina em geral, com os EUA, com a União Europeia, com a Ásia, China, Índia e retomámos isso. Tenho certeza de que estendemos pontes e recuperámos diálogos que tinham sido interrompidos.
O Presidente colombiano, Gustavo Petro, tem um plano para tentar resolver a situação política na Venezuela. Que posição tem o Brasil em relação a este plano?
Estamos participando no plano do Presidente Petro. Estamos participando em todos os encontros e em todas as acções diplomáticas com vista a recuperar e a trazer de novo a Venezuela.
Como é que está a avançar o processo?
Pensamos que vai ser muito bem-sucedido.
Não pode avançar mais nada em relação ao tema?
Não, isso são negociações, são encontros — a diplomacia não é totalmente pública, até haver um resultado Ænal.
Falando no assunto que o traz a Lisboa. Nenhum dos principais jornais brasileiros, na sexta-feira, fazia referência na primeira página à visita oficial de Lula a Portugal. No seu discurso na sua tomada de posse não há qualquer referência a Portugal. Isso é um reflexo de que Portugal não tem, para o Brasil, tirando os laços históricos, muita importância em termos de política externa?
Não, de forma alguma. Portugal sempre foi um parceiro económico muito importante, um parceiro na área de investimentos e todos os nossos interesses em relação à União Europeia sempre foram discutidos com Portugal.
Para a política externa do Brasil, qual é a importância de Portugal neste momento?
Portugal é um país amigo, próximo, sócio, temos grandes investimentos portugueses no Brasil, temos investimentos brasileiros importantes aqui. A Embraer tem a sua operação europeia baseada aqui, produzimos agora um avião, que é o KC-390, que tem um futuro enorme na modernização das forças aéreas de todos os países da Europa, aliás, vários já compraram, como Portugal. Mesmo nós, já comprámos. É um projecto binacional. Se não fosse um país importante, o Presidente Lula não teria vindo a Portugal na primeira visita que faz à Europa e Æcando quatro dias. Compare a extensão da visita dele a outros países e veja.
Portugal também é importante como porta de entrada para a UE?
Lógico. Sempre discutimos de forma muito próxima as posições da União Europeia com relação a todos os temas de interesse bilateral.
Vão conversar sobre o acordo UE-Mercosul?
O acordo Æcou concluído com o Governo passado, a parte comercial. E agora estamos na fase Ænal, recebemos a side letter da UE e estamos trabalhando no âmbito do Mercosul, a posição dos quatro, para dar a resposta. E Portugal receberá a comunicação antes de comunicarmos oÆcialmente à União Europeia.
Quando é que acha que esse acordo poderá entrar em vigor?
Entrar em vigor talvez leve uns dez anos, porque daqui até que seja aprovado por 27…
Ainda há muitas resistências dentro da UE.
Se me perguntar quando será concluído, isso é outra coisa, será concluído quando terminarmos os entendimentos com relação à side letter, que é uma carta interpretativa. Estando os dois lados de acordo, assinaremos.
É um dos diplomatas mais experientes do Itamaraty, foi embaixador na Argentina, foi embaixador nos Estados Unidos, na ONU, postos considerados pela diplomacia internacional como de topo de carreira, mas depois veio o Governo de Jair Bolsonaro e foi nomeado embaixador na Croácia. Havia uma relação de desrespeito do Governo Bolsonaro com a diplomacia?
Representar o Brasil é sempre uma honra. Fui designado para a Croácia, que é um país da União Europeia…
Isso é uma resposta diplomática.
E o que é que eu sou [risos]. Você disse que eu era o maior diplomata, queria o quê? Que eu declarasse guerra? [mais risos]. Representar o país é uma honra e ninguém obriga ninguém a fazer nada, se eu me sentisse de alguma forma violentado, podia dizer não. Eu fui porque é um país interessante — aliás, interessantíssimo, gostei muito — da UE, de uma região que eu conhecia pouco, só de livros e imprensa. Foi um período de dois anos e meio muito interessante.
Última pergunta, no seu discurso de posse disse: “Este cargo é a culminação de uma carreira de quase 50 anos ao serviço do Itamaraty e do Brasil.” Vai retirar-se depois disto?
Sem dúvida. Aliás, já mais de 50 anos, completei no dia 2 de Abril. Não pretendo depois continuar, também tenho direito a descansar.