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O Brasil não precisa pedir licença para tomar iniciativas (Entrevista do Ministro Celso Amorim à Swissinfo/Swiss Radio International, 03/09/2010)
Ele recebeu do presidente Lula a tarefa de coordenar as relações internacionais e colocar o Brasil em uma nova posição no contexto global.
Em entrevista exclusiva à swissinfo.ch, em Brasília, o chanceler Celso Amorim fala de livre-comércio, das relações com a Suíça, dos paraísos fiscais, do acordo com o Irã, entre outros temas. Nesta primeira parte, Amorim fala da Suíça e do Brasil. Na segunda parte, publicada sábado (04/9), o tema é o Brasil e o Mundo.
Ele acaba de bater o recorde de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o barão do Rio Branco, o maior mito da diplomacia brasileira. Quando terminar o governo Lula, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, será o chanceler que mais tempo esteve à frente do Itamaraty.
Ao receber swissinfo.ch na sua imponente sala de trabalho em Brasília, ele respondeu a todas as questões ligadas ao relacionamento entre a Suíça e o Brasil, lembrando também do apreço que tem pela cidade de Calvino, onde serviu por duas ocasiões. Ao final da entrevista, mostrou ao repórter o novelo de lã que colheu com as próprias mãos juntamente com o presidente do Mali. Em sua opinião, é o símbolo de um novo foco das prioridades do Brasil no mundo.
swissinfo.ch: Há pouco o ministro suíço do Interior, Didier Burkhalter, e uma delegação de 15 representantes da ciência helvética estiveram no Brasil. A viagem se deu no âmbito da priorização da cooperação científica com o país, uma priorização que existe também no contexto econômico. Como o senhor vê esse novo interesse?
Celso Amorim: Em primeiro lugar, temos uma parceria estratégica com a União Europeia, que ilustra o grande interesse europeu em relação ao Brasil. Para falar mais especificadamente da Suíça, onde fui embaixador em Genebra por duas vezes, acabei desenvolvendo vínculos com ela. Também participo regularmente do Fórum em Davos. Eu tive muito prazer de receber aqui a chanceler Micheline Calmy-Rey, a ministra da Economia Doris Leuthard e também de visitá-las na Suíça. Eu percebo que é uma decorrência natural da performance da economia brasileira, das ações que nós desenvolvemos no mundo e também de uma visão independente das relações internacionais. Eu tive, por exemplo, boas conversas com Micheline Calmy-Rey sobre o Irã, e isso muito antes do acordo que fizemos há pouco com a Turquia. Com a Doris Leuthard, minha colega nas negociações comerciais, nós tivemos sempre uma boa interação.
swissinfo.ch: Talvez uma forma simbólica de reconhecimento dessa importância teria sido a entrega do prêmio de Estadista Global no Fórum Econômico Mundial (WEF) em janeiro, não?
C.A.: É claro que Lula é uma pessoa muito especial. O presidente - acho que podemos dizer isso sem a preocupação de parecer querer estar adulando, até porque já estamos no final do mandato do presidente. Isso é indiscutível e é reconhecido por todos. É uma figura como muito poucas entre as lideranças mundiais. Mas é evidente que isso reflete o Brasil. Afinal, se você tem um líder excepcional, mas o país não corresponde ou não responde a essas lideranças, então as coisas não acontecem. No caso do presidente, ele foi um líder muito importante no sentido da recuperação econômica, da manutenção da estabilidade, quando as pessoas não acreditavam que isso fosse acontecer. Foi também um líder que deu uma ênfase muito grande à eliminação da desigualdade. Claro que isso não ocorre de um dia para outro, mas o que ocorreu no Brasil nesses anos é notável e foi reconhecido por todo mundo.
Além disso, Lula teve uma atuação internacional desassombrada. Ele é um presidente que acha que o Brasil não deve ficar pedindo licença a A ou B para tomar iniciativas. Graças a isso, hoje alargamos nossas relações de uma maneira notável. Acho que os outros países percebem isso. O Brasil tem hoje obviamente uma relação privilegiada com a própria América do Sul, América Latina e Caribe, mas tem também com a África, com os países árabes, no contexto de BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) ou no contexto de IBAS (Índia, Brasil e África do Sul). Ao mesmo tempo mantivemos com a Europa um bom relacionamento. Tudo isso explica essa projeção que o presidente tem.
O prêmio de Davos torna isso mais interessante, pois foi a primeira vez que ele foi atribuído. E também pelo fato dele ter sido dado a um líder operário que, quando disputava as eleições, despertava temores no mundo empresarial. Agora, ao final do governo, ele recebe uma honraria de estadista global da maior organização que, se não é exclusivamente empresarial, pelo menos é onde os empresários tem voz: Davos (WEF).
swissinfo.ch: Em um debate organizado recentemente pela Câmara de Comércio Latino-Americana da Suíça, empresários presentes reclamaram frente aos representantes do governo helvético da dificuldade de entrar no mercado Brasileiro devido a falta de um acordo de livre comércio. Só a Suíça tem 22 acordos bilaterais de livre-comércio fora da União Europeia, dos quais com quatro com países latino-americanos. Quando a situação vai melhorar?
C.A.: Temos um acordo muito bom com a Suíça, que tem funcionado, mas que não é de livre-comércio. É um acordo de cooperação econômica e comercial. Inclusive, ele permitiu que houvesse essa comissão mista e que já se reuniu algumas vezes. Ela tem produzido resultados, permitindo, por exemplo, resolver problemas que surgem nas relações. Agora, com relação a um acordo de livre-comércio, teria de ser com o Mercosul, Isso, pois somos uma união aduaneira. Não temos nenhuma restrição a isso. Acho que o fato de estarmos em um processo de negociação com a União Europeia vai mostrar qual o tipo de negociação que podemos ter com a Suíça e com os países do EFTA (Associação Europeia de Livre Comercio).
Evidentemente existem, à primeira vista, pontos de resistência de um lado e do outro. Em alguns produtos manufaturados seguramente haverá ainda alguma dificuldade nos países do Mercosul. Como, da mesma maneira, na área agrícola haverá dificuldades da parte da Suíça - não sei se com outros países do EFTA, mas certamente no caso da Suíça. Mas não vejo que isso seja um impedimento. Você tem de negociar e chegar a acordos mutuamente vantajosos.
swissinfo.ch: Mas existe o interesse da Suíça de acelerar um acordo com o Mercosul?
C.A.: Acho que há. A questão é que esses acordos são mais complexos devido às diferenças que mencionei. Por outro lado negociamos rapidamente um acordo com Israel e também com o Egito. Agora no caso da União Europeia e da Suíça, como também os países da EFTA, existe essa dicotomia que apontei: o grande interesse que demonstram esses países pela maior abertura na área de manufaturas, onde consideramos que já fizemos até uma liberalização bastante grande, e o nosso grande interesse na agricultura. Um não exclui o outro, mas o fato de estarmos agora envolvidos nessas negociações com a União Europeia pode também nos indicar um bom caminho para acelerar. Mas tudo depende das iniciativas. Nem sempre é o Mercosul que toma as iniciativas. Acho que se houver uma iniciativa forte da parte do EFTA, nós iremos corresponder.
swissinfo.ch: Como o senhor responde à preocupação de muitas empresas suíças, sobretudo as farmacêuticas, em relação ao respeito das patentes?
C.A.: O Brasil não é contra as patentes. O Brasil é contra o abuso das patentes para que sejam cobrados preços que não correspondem mais à necessidade de recuperar o investimento feito e que também não correspondem à possibilidade e capacidade dos países.
swissinfo.ch: Então o Brasil mantém sua posição de interpretar livremente o respeito aos direitos intelectuais?
C.A.: Haverá sempre divergências e para isso temos a OMC (n.r.: Organização Mundial do Comércio) em Genebra. Mas tivemos uma boa negociação para que houvesse um investimento no Brasil de uma empresa suíça (n.r.: Novartis constrói em Goiana, Grande Recife (PE), sua primeira fábrica de vacinas na América Latina) e que deu certo. Esses investimentos são bem-vindos. O Brasil não prega que não se respeitem as patentes, mas há situações, como foi no caso da AIDS, como pode haver outras, em que a adoção de medicamentos genéricos é fundamental. O Brasil foi um dos primeiros países do mundo onde a curva de doentes com AIDS diminuiu consideravelmente. E isso foi graças aos medicamentos genéricos, pois é um programa 100% financiado pelo governo e o governo jamais teria dinheiro para fazer isso, se tivesse de pagar os preços dos remédios. Em muitos casos houve negociação, inclusive com empresas suíças, e se chegou a um preço considerado razoável, tanto assim que a empresa manteve as vendas ao governo brasileiro. Eu acho que essas diferenças de perspectivas são normais. Agora, nos não vamos renunciar à primazia de poder tratar dos nossos doentes havendo formas de fazê-lo.
swissinfo.ch: Falando de um conflito direto entre os dois países, como ficou a questão da inclusão da Suíça em uma lista "negra" da paraísos fiscais da Receita Federal no Brasil?
C.A.: Mas eu entendo que isso foi resolvido.
swissinfo.ch: Mas a inclusão foi apenas suspensa...
C.A.: Sim, ela foi suspensa. Mas o problema no momento não existe. Acho que é uma questão da forma de tratar do problema. Você sabe, em todos os países do mundo as receitas são muito zelosas das suas atribuições - equivalente ao IRS (n.r.: Internal Revenue Service - autoridade fiscal americana). Mas acho que iremos encontrar uma solução justamente baseando não tanto em países, mas em atividades. E aquelas atividades que gozam de um favorecimento fiscal, elas naturalmente têm que ser objeto de uma compensação no país, até mesmo para não criar uma competição desleal. Mas a Suíça não está aparecendo em nenhuma lista de países que sejam paraíso fiscal. Isso foi objeto de conversas minhas com a presidente Doris Leuthard e com a ministra de Relações Exteriores (n.r.: Micheline Calmy-Rey). Em menos de uma semana tínhamos resolvido o problema.
swissinfo.ch: Mas muitas empresas suíças no Brasil manifestam em debates fechados uma certa insegurança...
C.A.: Eu não creio. Não posso falar pela Receita Federal, mas acho que, como me foi dito, a Suíça está preenchendo os critérios da OCDE e é normal, portanto, que não figure na lista.
swissinfo.ch: A Suíça gostaria de participar do G-20, sobretudo na procurar de soluções para impedir uma nova crise financeira. O Brasil apoiaria o país nessas aspirações?
C.A.: Eu diria que a Suíça já tem uma presença grande nos órgãos financeiros internacionais. Inclusive muitos dos quais ficam na Suíça. Na Basileia temos a União dos Bancos Centrais (n.r.: Banco de Compensações Internacionais). Temos o comitê de políticas financeiras. Eu devo dizer francamente que já acho a Europa sobre-representada. Não temos nada contra a Suíça. Se ela se inserir por lá sem que isso desequilibre ainda mais o G-20 num sentido contra os países em desenvolvimento, então tudo bem. Mas isso é um problema que tem de ser resolvido na Europa. Sei que vocês não são parte da União Europeia, mas tem de ser discutido lá. Porque você tem naturalmente os representantes dos que já eram do G-8 - você tem a França, a Itália, o Reino Unido, você ainda tem a Espanha que é sempre convidada, você tem o representante do país que está presidindo a União Europeia, você tem o presidente da Comissão Europeia. Quando vai ver por lá, você só tem quase que europeu. Mas isso também não pode: o mundo mudou!
Acho que se encontrássemos uma fórmula de representação coletiva de vários países, talvez houvesse uma solução. Mas eu não quero dar uma solução agora, pois acho que essa é uma questão complexa. A Suíça obviamente é um país que tem uma contribuição a dar, mas haverá formas prováveis de fazê-lo.
Na primeira parte da entrevista exclusiva que o chanceler brasileiro Celso Amorim concedeu à swissinfo.ch, em Brasília, publicada sexta-feira (03/9) falou essencialmente das relações entre a Suíça e o Brasil.
Nesta segunda parte, os temas são: o acordo com o Irã e a Turquia, os avanços do Mercosul e as perspectivas com as presidenciais de outubro. É praticamente um balanço de oito anos à frente da diplomacia brasileira.
swissinfo.ch: Como o Brasil considera o temor de muitos países ocidentais de ver o Irã armado com bombas nucleares?
Celso Amorim: Eu não tenho meios de dizer que o Irã não pode vir a ter uma arma nuclear. Também não tenho nenhuma evidência que queira ter e que esteja trabalhando para ter. Agora, o que foi proposto por nós? Como é muito difícil julgar intenções e basear seu raciocínio em hipóteses, o que o Brasil e a Turquia fizeram juntos? Nós partimos de uma proposta de acordo que havia sido feita pelos países ocidentais - na realidade, pensada pelos Estados Unidos - tomamos essa proposta, a levamos para Teerã e convencemos o Irã a aceitá-la. Claro que algumas pessoas dizem que a situação mudou, pois de lá para cá eles produziram mais urânio, etc. Mas todos esses problemas apontados - e que diga-se de passagem, não foi dito para nós antes que eles seriam impeditivos para um acordo - podem ser tratados a partir do momento que você tenha um acordo que crie confiança.
O objetivo do nosso acordo era exatamente criar confiança. Ao invés de você ficar pensando na intenção do Irã - pois você poderia estar pensando nas intenções dos outros países, não quero citar quais, mas vários outros países podem ter intenções que não são positivas, inclusive os detentores de armas nucleares, que deviam estar tratando de diminuir os seus estoques - o melhor seria ter uma ação concreta, que efetivamente reduziria o estoque de urânio no Irã e que tornaria desnecessário para o país o enriquecimento a 20%. Aliás, o próprio presidente Ahmadinejad disse que se o acordo for feito com base na declaração de Teerã, eles não terão necessidade de enriquecer a 20%. Você quer coisa mais positiva do que essa?
O que acho contraditório é o seguinte: ao mesmo tempo, alguns acham que o enriquecimento a 20% é muito perigoso; por outro lado, você tem um acordo que torna desnecessário - e isso não é só na nossa opinião, mas na opinião do presidente do Irã - o enriquecimento e, portanto, ele mesmo disse que não continuaria a fazê-lo, mas você não quer aceitar o acordo. Eu acho que é muito difícil encontrar uma resposta para isso. Fico então com a resposta dada pelo el-Baradei, o ex-diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica e prêmio Nobel da Paz. Durante uma entrevista a um jornal brasileiro, disse que os países que fizeram a proposta inicialmente e que depois se recusaram a seguir nesse caminho, apostando no caminho das sanções, não poderiam aceitar um sim como resposta.
swissinfo.ch: Mas há um certo ceticismo na imprensa europeia em relação ao Brasil. Isso estaria na dificuldade de reconhecer sua neutralidade como a da Suíça e sua política dos "bons ofícios"?
C.A.: Eu não vou discutir a neutralidade suíça. Eu acredito que a Cruz Vermelha siga padrões de neutralidade e tenho um grande apreço por essa organização criada pela Suíça. Agora todos os países - seja Suíça, Brasil, Estados Unidos, Rússia ou China - têm interesses. Nenhum país deixa de ter interesse. Isso não impede que, em determinadas situações, você possa ser um mediador e encontrar soluções que muitos países, às vezes engajados demais em uma determinada linha, não conseguem ver ou não querem ver. O Brasil trabalhou em várias situações desse tipo. Infelizmente algumas não deram certo. Por exemplo, nós trabalhamos muito para evitar a guerra no Iraque. Eu fui embaixador no Conselho de Segurança. Lá escrevi três relatórios sobre a questão, que na época foi elogiado por todos. Se eles tivessem sido seguidos mais a risca, talvez o conflito pudesse ter sido evitado. Mas eu acho que a invasão iria ocorrer de qualquer maneira, pois ela seguia outra lógica.
Eu acho que Brasil tem essa condição. Os países criticaram não só o Brasil, mas também a Turquia, que é membro da OTAN. Porém nós trabalhamos juntos o tempo todo e em consulta: nós conversamos com a França, a Rússia, a China, os Estados Unidos e também o Reino Unido, só para falar de alguns. Eu até tive boas conversas com a Suíça sobre essa questão, mas em um período anterior a essa proposta. Nessas conversas, a nítida impressão que nós tínhamos não era de que não deveríamos tentar. O que eles nos diziam era o seguinte: vocês vão tentar, mas vão fracassar. "Esta é a última chance". Essa frase nos foi dita por muitos líderes. A impressão que tenho hoje em retrospecto, era que eles diziam isso na expectativa que não fôssemos conseguir - até no desejo que não fôssemos conseguir - e que, dessa maneira, ficasse mais provado ainda que o Irã estava seguindo um caminho errado e não queria nenhuma negociação.
Eu não vou agora relembrar todos os detalhes do acordo, mas como ele foi feito segue "ipsis litteris" o roteiro que nos foi dado pela mais alta autoridade dos Estados Unidos.
swissinfo.ch: O Brasil sairia do tratado de não proliferação de armas? Trata-se de uma nação absolutamente pacífica?
C.A.: Sim, totalmente. Eu acho que é isso que nos dá uma autoridade moral. O Brasil inscreveu na sua constituição que só usaríamos a energia nuclear para fins pacíficos. Aliás, o que nós conversamos com o Irã muitas vezes não era tanto saber o que eles tinham ou não, mas que era importante que eles tomassem medidas que fossem vistas pelo outro lado como positivas. Você se recordará que havia três aspectos principais na proposta feita pelos EUA e pela Agência Internacional de Energia Atômica em outubro do ano passado.
Nessa proposta de troca de urânio enriquecido por combustível havia três aspectos: a quantidade - 1200 kg -, o local onde ocorreria - se seria feito no exterior ou lá - e o tempo. Nesses três aspectos a posição do Irã, até Brasil e a Turquia se engajar nessa negociação, era a de a quantidade de 1.200 quilos não podia, pois era excessiva; que o local tinha que ser no próprio Irã, não podia ser um terceiro país; e o tempo tinha de ser simultâneo, ou seja, haver uma simultaneidade da chegada do combustível e da partida do urânio. Nos três pontos o Irã aceitou as nossas ponderações. São pontos concretos.
Não são coisas abstratas que você vai julgar qual foi a intenção ou não, se a pessoa estava ou não rezando na hora. São coisas "altamente" verificáveis para utilizar uma palavra muito usada no desarmamento. Quanto, quando e aonde. Não pode haver coisa mais concreta do que isso. E não foi aceita por quê? Não sei, isso é uma matéria de especulação. Mas não tem nada a ver com o fato do Brasil ou da Turquia terem credibilidade, pois o engajamento do Brasil com o Irã começou com o pedido de líderes ocidentais como Obama, que disse ao Lula a seguinte frase: "É bom que você seja amigo de quem eu não posso ser amigo."
swissinfo.ch: O Brasil teria hoje condições de ter um assento no Conselho de Segurança da ONU?
C.A.: Eu não tenho a menor dúvida que o Brasil teria condições. Um grande número de países no mundo tem essa mesma opinião. O que eu leio de crítica hoje à ação do Brasil, são dos que pensam que, para você ser membro permanente do Conselho de Segurança, você tem de seguir sempre a opinião dos atuais membros permanentes. Se você vai para lá fazer a mesma coisa que eles fazem, é inútil. Você tem de levar sua perspectiva. O que eu acho que países como o Brasil, Índia e outros, talvez também a África do Sul, podem levar é justamente uma perspectiva diferente, uma capacidade de ver a realidade de forma menos dicotômica, menos maniqueísta, menos preto e branco. Ser capaz de ver as áreas cinzentas. Pois é nas áreas cinzentas que você faz as negociações. Preto e branco não tem negociação.
swissinfo.ch: Voltando à Suíça, sua população vive hoje um grande ceticismo em relação à União Europeia, sobretudo após a crise em vários dos seus membros. Existiria esse ceticismo também no Brasil em relação ao Mercosul, cujo desenvolvimento não tem tido a velocidade esperada?
C.A.: Não, o Mercosul tem se desenvolvido muito. Você está impressionado com a mídia brasileira. Eu acho melhor você ler a mídia estrangeira sobre o Mercosul ou então olhar os números. O nosso comércio com os países do Mercosul multiplicou-se por cinco nos últimos oito anos. É verdade que 2002 era um ano de crise na Argentina. Mas mesmo se você pegar 2001 ou outro ano anterior, vai ver que houve um crescimento notável. Hoje em dia, 47% das nossas exportações de manufaturas - 30% só para o Mercosul - vão para America Latina e Caribe. Então como você pode dizer que isso é um fracasso. Acho que está indo muito bem! Houve durante muito tempo certos impasses institucionais, nos quais não conseguíamos avançar.. Mas fizemos avanço notáveis agora na reunião de San Juan, Argentina (n.r.: 39ª Cúpula do Mercosul no início de agosto), com um cronograma para a eliminação da dupla cobrança da TEC (n.r.: Tarifa Externa Comum) - ela vai demorar, mas vai ter - um código aduaneiro comum; fizemos o acordo de livre comércio com o Egito, que é o primeiro com outro país em desenvolvimento de fora da região...
swissinfo.ch: Mas a direção para o Mercosul é de uma união política como a União Europeia?
C.A.: Vivemos em um mundo mais complexo. Eu acho que há uma crescente união política, ou melhor dizendo, coordenação política, pois os presidentes e ministros se encontram para discutir os problemas. Hoje em dia existe até - mas isso pode mudar - uma certa afinidade de pensamento nos quatro países do Mercosul e, com algumas nuances, com a Venezuela, que é candidata ao ingresso. Agora, eu acho - e falando mais amplamente com um futuro mais de longo prazo - o que a América do Sul precisa é de uma união de toda a América do Sul. Por isso é que nós temos trabalhado também na Unasul. Pois muitos dos problemas envolvem países que não são do Mercosul. Até então era preciso lidar com essas questões também, além de que é importante haver uma integração econômica entre eles. É como a Suíça, que não pode fazer parte do mercado comum, mas fez o EFTA. Nós também na América do Sul temos isso hoje: países que já tinham acordos de livre-comércio com outros de fora da região e assim não dava para aderir à tarifa externa comum do Mercosul. Isso não impede que tenhamos acordos de livre-comércio entre nós. Já fizemos um acordo de serviços com o Chile, estamos fazendo um com a Colômbia. Queremos fazer um acordo de investimento com os dois países. Estamos integrando cada vez mais.
swissinfo.ch: Porém, afora a integração econômica, uma das condições de adesão à União Europeia é o respeito aos direitos humanos e liberdades políticas...
C.A.: Depende dos direitos humanos de que estamos falando. Não quero entrar em muitos detalhes, mas existe o respeito às religiões, às etnias. Tudo isso para nós também é respeito a direitos humanos. O Brasil, por exemplo, legalizou todos os trabalhadores, ou 90% deles, dos imigrantes que estavam aqui sem documentados. Isso é um bom exemplo para a Europa seguir.
swissinfo.ch: Eu me refiro mais a alguns países América Latina como Cuba ou Venezuela e sua interpretação própria do que é democracia...
C.A.: Todos os governantes da América do Sul foram eleitos. Eles passaram por eleições democráticas ou se submeteram a referendos com observação internacional, em muitos casos. Acho que isso é uma prática de democracia. Pode ser que nem todas as práticas sejam as mesmas que temos no Brasil ou na Argentina. Mas acho que não se pode de maneira nenhuma dizer que a América do Sul não esteja caminhando, de forma firme e séria, para se tornar cada vez mais democrática. E lembre você que a democracia não é só a democracia política - que obviamente é muito importante e ninguém vai negar isso, pois passamos 21 anos de ditadura e sabemos que é importante - mas é importante também uma democracia social que dê condições ao povo de ter educação, cultura, de se alimentar, não ficar subordinado a um clientelismo político, que era o que ocorria no Brasil há 30 anos.
swissinfo.ch: Hoje o Brasil também promove ajuda ao desenvolvimento como a Suíça em países do 3° mundo. Um exemplo é a pesquisa conjunta contra a malária em Moçambique, um projeto da Fiocruz. Além disso, o Brasil também abriu uma série de embaixadas na África. O que mudou na política externa brasileira a partir do governo Lula?
C.A.: Nesse aspecto que você está falando, ela se tornou mais universalista. Acho que o Brasil viveu durante muito tempo acanhado. Fomos um país que vem se expandido ao longo do tempo. Tanto que, logo depois do final da 2° Guerra Mundial, reconheceu e teve relações com todos os países relativamente pequenos na Europa. Mas reconheceu também e teve relações com muitos países africanos. Mas nós passamos um período de 21 anos de governo militar. Depois um período de prevalência ou forte influência das teses neoliberais na área econômica. Tudo isso acabou estreitando um pouco o nosso horizonte diplomático. Muitas dessas embaixadas que você menciona na África, um grande número foi aberta de fato. Porém outras foram simplesmente reabertas. Durante esse auge do neoliberalismo, de fazer economia onde não se deve fazer economia, muitas embaixadas foram fechadas. Hoje o Brasil tem uma rede realmente muito mais ampla, o que é bom para nós e para o nosso comércio. O custo de uma embaixada pequena é ridículo comparado com o que você obtém. No dia que estava chegando ao Catar, onde depois abrimos uma embaixada, estava chegando uma empresa brasileira que vendeu 400 ônibus. Em termos de país, esses ônibus pagam a nossa embaixada durante dez ou vinte anos.
swissinfo.ch: A China também compreende sua ajuda ao desenvolvimento através dos investimentos que faz na África...
C.A.: Isso é um aspecto. Mas nós temos também uma noção de solidariedade muito forte com outros países em desenvolvimento. Isso traz benefícios para o Brasil? Traz, não vou dizer que não. Traz benefícios do ponto de vista econômico, é mercado para os nossos investimentos e exportações, mas o Brasil tem um autêntico sentimento, sobretudo em relação à África, muito forte. E por quê? Mais de 50% da população brasileira se autodenomina de origem africana. É uma contribuição muito importante para a nossa cultura e música. Nós nos beneficiamos até hoje, pois a imagem do Brasil que vai para o exterior, deve muito a essa contribuição africana. Então é natural que também ajudemos. E também é uma coisa que não tem um custo econômico tão grande, mas que ao mesmo tempo pode trazer muitos benefícios.
Você mencionou a Fiocruz. Temos hoje projetos em muitos países africanos, mas acho que alguns são modelares. É o caso da presença da Fiocruz e, sobretudo, da criação de uma fábrica de antivirais em Moçambique para a produção de genéricos. É o caso do que a Embrapa, a nossa empresa de pesquisa agropecuária, tem feito na África. Se você for naquele canto da minha sala, você vai ver um novelinho de algodão, que foi da primeira colheita de uma fazenda-modelo no Mali. E o caso de muitos outros centros de formação profissional, que temos em muitos países de língua portuguesa e outros. E isso sem falar o que fazemos no Haiti.
swissinfo.ch: Essa ajuda brasileira é comparável ao que a China faz, sendo que no seu entender a cooperação se dá através do comércio e investimento em infraestrutura?
C.A.: Aí eu prefiro deixar vocês julgarem. Mas eu li comentários de fontes insuspeitas da comparação da ajuda que o Brasil presta com outros países, que o Brasil sai melhor na fotografia.
swissinfo.ch: Em breve o mandato do presidente Lula termina. Caso a candidata Dilma Rousseff seja vitoriosa nas eleições, haverá uma mudança na política externa brasileira? O senhor continuaria no cargo?
C.A.: Nós estamos muitos confiantes que a candidata vá ganhar, pois é o que as pesquisas têm dito. Mas eleição você sempre tem de esperar o dia chegar e deixar para abrir o champanhe ou guaraná depois dos fatos ocorrerem. Pelo que conheço da ministra Dilma, pelas oportunidades que tivemos de conversar e da relação que eu sei que ela tem com o presidente Lula, acho que as linhas mestras serão todas as mesmas. Mas dizia um pensador francês, o estilo é homem e o estilo pode ser "mulher" também. Então cada um tem seu estilo, sua maneira de conduzir. Poderá ter matizes nas prioridades, o que é compreensível.
swissinfo.ch: E o senhor pessoalmente?
C.A.: Isso é um aspecto secundário da questão. O importante é que o Brasil mudou. Você não estaria fazendo essa entrevista com essas perguntas em 2002. O Brasil mudou a sua posição no mundo em todos os aspectos. O Lula não teria ganhado o prêmio em Davos, o Brasil não estaria no G-20. Eu ouvi aqui pedidos de países europeus - e não foi só a Suíça - para apoiá-los e serem convidados a uma reunião do G-20. O Brasil não estaria tendo uma influência decisiva em questões como a mudança do clima. Se não fosse o que aconteceu dentro do Brasil, mas também o que foi a política externa. Por isso acho normal que as linhas mestras sejam mantidas. Creio que, no caso da ministra Dilma, estou convencido que isso ocorra. Mas volto a dizer: o estilo é o ser humano, cada um tem o seu.
swissinfo.ch: O senhor serviu durante duas vezes em Genebra. Quais são as impressões pessoais tidas dessa estadia na Suíça e da população?
C.A.: Eu gosto muito de Genebra. Minha filha Anita, mora lá, pois é funcionária da OIT (n.r.: Organização Internacional do Trabalho). Tenho dois netos que também moram lá. Eu não sei se algum dia eles vão ter ou não a cidadania suíça, pois já têm múltiplas cidadanias, pois o pai é turco e uma delas nasceu em Nova Iorque. É possível até que tenha, e se for o caso, não terei nada contra. O que quero dizer é que sempre tive muito bom contato e sempre achei as pessoas muito educadas. Os temperamentos é que são muito diferentes. Mas eu acho que os suíços estão cada vez mais abertos a isso. Acho, inclusive, que Genebra mudou entre os dois períodos em que morei por lá. Genebra, que é naturalmente uma cidade latina - faz parte da latinidade do francês, mas que tinha uma rigidez que você normalmente não associaria com a latinidade. Da segunda vez que morei lá, achei muito mais aberto. Tinha a "Fête de la Musique", que antes não tinha, tinha um monte de coisas na rua. Tinha até cadeiras na calçada.
Alexander Thoele, Brasília, swissinfo.ch