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Notícias
Carta Capital - Entre os primeiros / Entrevista
Cynara Menezes
O chanceler Celso Amorim fala do atual protagonista externo do Brasil
"Esquerdopatia" "retórica inútil", "antiamericanisrno tosco", "complexo de inferioridade vertido em arrogância", "forçação de barra", "acúmulo de fracassos", "beira o ridículo". Esses foram alguns dos torpedos lançados sobre as ações de Celso Amorim à frente do Ministério das Relações Exteriores.
Seis anos depois, Amorim ri por último. "Estamos entre os primeiros dos primeiros", festeja, sobre a atual onda de elogios internacionais às políticas interna e externa do governo Lula. "Pena que tenha sido necessário vir do Obama e da Newsweek antes de vir dos próprios brasileiros". Quanto às críticas, feitas principalmente por seus antecessores no cargo, preferiu; sem citar nomes, ironizar. "Essas pessoas têm complexo de inferioridade. O problema para eles é fazer psicanálise, não é nem questão de oposição. Eu acho graça", afirmou o chanceler em entrevista à CartaCapital. Na pauta da conversa, a entrada da Venezuela no Mercosul, os negócios com o Irã e o fim do embargo dos EUA a Cuba.
CartaCapital: O fato de a política externa ter dado certo até agora comprova que o presidente não precisava ser poliglota para alcançar resultados internacionais?
Celso Amorim: O presidente precisa, acima de tudo, acreditar no Brasil. É muito mais importante do que falar.em várias línguas.
CC: O senhor diria que realmente mudou a visão mundial em relação ao Brasil?
CA: Não tenho a menor dúvida e não posso atribuir isso somente ao governo Lula, vem ocorrendo desde que o Brasil firmou a democracia, acertou a economia. Hoje somos percebidos como um interlocutor necessário para a grande maioria dos temas internacionais.
CC: Virou um país sério?
CA: Não gosto dessas comparações. Elas revelam o complexo de vira-latas de que falava Nelson Rodrigues, pelo qual só se é capaz de ver pelos olhos do outro. Precisamos sempre de uma legitimação de fora. Todo mundo estava criticando muito a política externa, mas quando veio a capa da Newsweek, o abraço do presidente Barack Obama, aí as pessoas começaram a ver de outra maneira. Acho bom, mas é pena que tenha sido necessário vir do Obama e da Newsweek antes de vir dos próprios brasileiros ou pelo menos de uma parte deles.
CC: Uma das prioridades da política externa do governo Lula foram as relações com a África. Em que se modificaram?
CA: Mudaram de perfil totalmente. Não só pelo número de viagens que a gente fez, até já perdi a conta. Somos o país da América Latina que tem o maior número de embaixadas na África, antes era Cuba. Houve um número razoável antigamente, mas foram diminuindo por medida de economia ou falta de prioridade. Reabrimos todas que existiram e abrimos várias outras. Passaram de 20 para 35.
CC: Em termos práticos, o que isso significa?
CA: Nosso comércio com a África é hoje de mais de 20 bilhões de dólares, o que não é pouco. Temos muito mais relações culturais, comerciais, com os governos estaduais, inclusive. Há mais interesse dos empresários. Agora, por exemplo, um grupo de São Paulo do ramo de transporte está com um interesse grande em São Tomé e Príncipe. É um país pequeno em população e área, nem tínhamos embaixada lá, mas, como é uma ilha no golfo da Guiné, dali você vai para Nigéria, Angola, Gana, Gabão ... Ou seja, não foi uma coisa que eu inventei e o empresário comprou. Dada a aproximação feita pelo governo Lula, os empresários estão descobrindo, criou-se uma dinâmica.
CC: Quais seriam as vantagens da entrada da Venezuela no Mercosul?
CA: O Brasil tem o maior saldo comercial com a Venezuela. É mais do que com qualquer outro país do mundo, de mais de 4 bilhões de dólares ao ano. Do ponto de vista mais amplo, geoestratégico, a entrada da Venezuela vai dar uma vértebra ao Mercosul. Deixa de ser, no imaginário das pessoas, o mercado comum do Cone Sul para ser o mercado da América do Sul, de uma grande parte dela. Passamos a ser 80% do PIB, 72% da área e 70% da população. Politicamente também é importante ter a Venezuela perto. É nosso vizinho e tem tradições culturais, apesar da língua espanhola, muito parecidas com as nossas, muita mistura, um componente negro mais forte que outros países da América do Sul. Temos de confiar na nossa capacidade de exercer uma influência positiva. Não uma intromissão, mas o contato conosco só pode fazer bem à Venezuela.
CC: Os argumentos contrários são sempre em relação à política, ao chavismo ...
CA: Não fazemos os outros países à nossa imagem e semelhança, lidamos com eles como existem. Claro que se fosse uma ditadura feroz, com tortura ... Nunca ouvi falar de tortura na Venezuela. É um país onde você pega o jornal e em todas as páginas, exceto a de esportes, há artigos críticos ao presidente. Pode não ser do jeito que gostaríamos que eles fizessem, mas talvez nós também não façamos as coisas do jeito que eles gostariam. O Brasil não pôde vender (aviões) Tucanos para eles por uma imposição dos EUA, que é quem cede parte da tecnologia à Embraer. Provavelmente eles também não gostem desse tipo de condicionante.
CC: Anda-se perseguindo opositores por lá.
CA: Cada caso é um caso, não posso julgar. Prefiro ficar no mais geral: entrando no Mercosul, a Venezuela será membro de todas as declarações, convenções, inclusive as que têm a ver com a democracia. Temos de fortalecer a integração da América do Sul, e foi a Venezuela quem se interessou. Se fosse a Colômbia, também seria muito bem-vinda.
CC: O senhor acha que o Senado vai aprovar?
CA: Sim.
CC: É verdade que Chávez ficou encantado com Obama ao conhecê-lo na Cúpula das Américas?
CA: Eles tiveram um bom diálogo, não sei se encantado seria a pala-vra. Mas tenho a impressão de que gostou, foi muito caloroso. O presidente Oba-ma tem algumas coisas muito positi-vas. O fato de ser negro, nos Estados Unidos, já é extraordinário. É uma pes-soa que veio de um grupo oprimido, a verdade é essa, e que chegou ao poder. E passou uma parte da infância e ado-lescência na Indonésia, então viu como é um país em desenvolvimento. Tem uma compreensão maior, espero.
CC: Houve participação do Brasil para facilitar o contato?
CA: Uma boa palavra aqui, uma boa palavra ali, do presidente Lula, principalmente, ajuda e predispõe ao diálogo. Mas não houve intermediação propriamente.
CC: Em que essa aproximação pode dar?
CA: Em maior tranquilidade, inclusive dentro da Venezuela. As pessoas costumam criticar o presidente Chávez, mas se esquecem como age a oposição lá dentro. Lembro de ter visto um anúncio de colchão que dizia assim: "Se você está cansado do "presidente Chávez use o colchão tal ..." É uma coisa muito desrespeitosa com um chefe de Estado que foi eleito e reeleito. E, obviamente, uma parte da oposição esteve vinculada ao golpe. Então, um bom relacionamento com os EUA também vai dissipar ilusões golpistas de alguns setores.
CC: Pessoalmente, o que o senhor achou de Obama?
CA: É uma pessoa que ouve com atenção. Outra coisa que diria, que vejo semelhante no presidente Lula, é que dá a impressão de refletir no momento. Pensa na hora e dá uma resposta. Os outros presidentes vinham com as respostinhas prontas.
CC: O senhor acha que, com Obama, as tarifas ao etanoI brasileiro vão cair?
CA: O término da Rodada de Doha seria o caminho mais expedito. Os pr6prios americanos estão vendo as dificuldades, o custo excessivo do etanol de milho, e isso vai acabar ocorrendo. Mas se resolverá mais rápido com o fim de Doha.
CC: A crise aumentou os protecionismos?
CA: Sim, mas não como na década de 30, aquele movimento avassalador. Há uma consciência muito grande de que o protecionismo não é a solução, que agrava mais os problemas. Entre a consciência e a ação se interpõe o instinto, e ele é protecionista. Mas a razão não é protecionista e acabará se impondo.
CC: O Brasil terá um papel importante no fim do embargo a Cuba?
CA: Eles não precisam de intermediários. O que defendemos é que tenham um diálogo direto, e já começou. Isso não exclui uma ajuda, como disse, com uma boa palavra aqui, outra ali. Li umas declarações da secretária de Estado . (Hillary Clinton) em que ela percebeu nitidamente, e certamente o presidente Obama também, o fato de todos os países da América Latina e Caribe desejarem o fim do embargo. Isso não é uma coisa de um país que é mais de esquerda, é geral. Agora, qual será a evolução de Cuba com o fim do embargo já é outra coisa, o futuro dirá. Se começar a fazer exigências, não funciona. Foi o que se tentou durante 50 anos, de maneira totalmente in6cua. Não creio que os EUA vão cair nesse erro de novo.
CC: Quando o presidente Lula fala que Obama e Raúl Castro vão fazer as pazes em Ipanema, é s6 brincadeira?
CA: Ipanema é um 6timo lugar para qualquer tipo de encontro ... Mas não se pode controlar a forma como essas coisas vão se passar. O fato de o presidente Raúl, na primeira viagem ao exterior, ter passado pelo Brasil é muito significativo do desejo de nos ter como um parceiro especial, privilegiado. Temos uma 6tima relação com os EUA, já era boa, vai ser melhor agora, pelas afinidades. Ou seja, pode ocorrer. Se vai ser em Ipanema, no Leblon ou na Bahia, não sei.
CC: O Irã pode tornar-se um parceiro importante?
CA: Sim, já é. Em 2007 vendemos 2 bilhões de d6lares para o Irã, não é nada desprezível. Em 2008 caiu um pouco, mas podemos retomar.
CC: Esta aproximação é um símbolo do pragmatismo comercial que vocês têm praticado, de não se importar com as questões políticas dos países?
CA: Não é não nos importarmos. Não deixamos de criticar, como foi criticada a declaração sobre o Holocausto do líder iraniano, mas é não nos recusar-mos ao diálogo. É pelo diálogo que se pode ter influência sobre os países. Queiram ou não as pessoas, o Irã é um interlocutor importante para a questão do Oriente Médio. É um país poderoso, de 70 milhões de habitantes, não adianta tentar ignorá-lo. O presidente Lula não deixará de dar a opinião dele, do Brasil, ao presidente Ahmadinejad ou a quem quer que ganhe a eleição em junho. Agora, se você s6 vai convidar e dialogar com as pessoas com as quais concorda, vai ter muito pouca gente.
CC: Por que houve o adiamento da visita?
CA: Se há um problema eleitoral lá, e se a visita pode ser mais produtiva depois da eleição, compreendemos e achamos natural.
CC: Quando o senhor viajou ao Oriente Médio, chegaram a falar que as pretensões do Brasil de ajudar na resolução do conflito Israel-Palestina beiravam o ridículo ...
CA: É complexo de inferioridade. O problema para algumas pessoas é fazer psicanálise, não é nem questão de oposição. Estive em cinco países, em todos os casos fui recebido por chefe de Estado, menos em Israel, porque não quis, preferi visitar a ministra do Exterior, que poderia ser a primeira-ministra ap6s a eleição. É claro que não íamos para lá resolver o problema dessa fronteira, uma coisa que se está discutindo há 1 milhão de anos, com dezenas de mediadores. Mas o Brasil é um país de influência na ONU, no Conselho de Direitos Humanos, nos órgãos internacionais. E pode participar de um processo mais amplo. Para falar a verdade, acho um pouco de graça quando leio essas coisas e não me preocupam a mínima.
CC: Também se criticou muito o fato de o Brasil ter almejado postos em organizações internacionais e não conseguir. O senhor acha que ao final do governo Lula poderemos chegar a ter a tão sonhada cadeira no Conselho de Segurança da ONU?
CA: Não posso dizer, é uma coisa muito complexa. O governo Lula perseguiu esse objetivo, talvez com mais determinação, mas, em tempos recentes, quem relançou essa proposta foi o presidente José Sarney, em 1989. Durante o governo Itamar, quando fui chanceler, continuamos a acompanhar esse processo, e no governo FHC, em que era embaixador nas Nações Unidas, nunca fui contraditado. As oportunidades surgem de uma hora para outra. Quem poderia dizer há dois anos que o principal fórum de discussão de temas financeiros e econômicos e internacionais deixaria de ser o G-7 ou G-8 para ser o G-20? Ninguém. O mesmo pode acontecer com o Conselho de Segurança. Se será no governo Lula ou não, não estamos preocupados.
CC: Quando Collor assumiu a Presidência, houve uma inflexão no Itamaraty de que era preferível ser o primeiro dos últimos a último dos primeiros. Como o senhor definiria hoje?
CA: Queremos, não, estamos entre os primeiros dos primeiros. Mas sem desprezar os mais pobres, porque podemos ajudá-los e também porque o fato de termos boas relações com eles é parte da nossa força.
CC: O Brasil não tem cedido demais aos vizinhos?
CA: Essa é uma visão muito jornalística e simplificada da política internacional. As coisas não são bem assim, você procura encontrar interesses comuns. No caso da Bolívia, é verdade que queremos ajudá-los a se desenvolver, não nos interessa ter um país em permanente convulsão como era. Mas, diria também, em termos estratégicos, econômicos, que não faltou uma molécula de gás para o Brasil num momento em que em outras partes do mundo isso ocorreu. Agimos com calma, paciência, não deixamos de negociar o tempo todo, e a Petrobras não teria ficado lá se não fosse razoável.
CC: O acordo de Itaipu com o Paraguai foi feito na época da ditadura. É necessário revê-lo?
CA: Rever o acordo é algo complicado. O fato de ter sido feito durante o governo militar é uma circunstância. Há reivindicações justas e realistas e outras que não têm viabilidade. Vamos trabalhar da maneira mais positiva possível. Não é o caso de se procurar fazer uma liberalidade, mas ao mesmo tempo tem de compreender que Itaipu é importante para o Brasil, mas para o Paraguai é quase uma das únicas fontes de receita.
CC: Uma das acusações mais pesadas ao Itamaraty é de que teria sido "aparelhado" durante o governo Lula. Como o senhor responde?
CA: É uma tolice. Não sei nem em quem votou o pessoal do meu gabinete, nunca perguntei a ninguém. Quero que as pessoas cumpram com seu dever. Algum dia procura ver onde estão as pessoas que trabalhavam com meus antecessores e veja se foram perseguidos. O que acontece é que as pessoas eram contra o presidente Lula, preferiam uma política externa mais dependente de um ou dois centros de poder no mundo, achavam que o caminho melhor era outro. Vi diplomatas de alta categoria dizer que o Brasil deveria seguir o exemplo do México. Hoje, com a crise, os economistas, inclusive os conservadores, avaliam que o Brasil foi menos afetado porque tem uma relação comercial mais diversificada.
CC: Quando Obama diz que Lula "é o cara": é mérito do presidente ou da diplomacia brasileira?
CA: Ah, do presidente. A diplomacia não pode é atrapalhar. O presidente tem uma projeção internacional muito grande. Creio que a diplomacia brasileira não decepcionou ao atuar em sua linha. Como ele sempre diz, primeiro, revelando autoestima. Depois, . diversificando as parcerias, fortalecendo a integração com os países da América do Sul, tendo uma política africana ativa, buscando uma relação nova com os países árabes, com a Ásia. Algumas dessas iniciativas foram ideias do próprio presidente, outras, do quadro do Itamaraty. A linha geral quem deu foi ele.