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Discurso do Ministro Mauro Vieira por ocasião da Formatura da Turma Esperança Garcia do IRBr - Brasília, 16 de setembro de 2024
Minhas primeiras palavras são de saudação ao Senhor Presidente da República, que muito nos honra ao presidir, pela décima vez, esta cerimônia de formatura.
São, também, palavras de felicitação às formandas e aos formandos da Turma Esperança Garcia.
A carreira em que hoje ingressam não somente lhes propiciará extraordinárias oportunidades de realização pessoal; como diplomatas, vocês terão a honra de servir permanentemente ao Brasil.
O tempo de intolerância em que vivemos pede – mais do que nunca – as virtudes da profissão que escolheram: capacidade de dialogar; disposição ao estudo cuidadoso das questões; discernimento para separar o essencial do secundário; criatividade na busca de soluções; e forte sentimento de nossas origens.
A evocação de Esperança Garcia dá mostras de tudo isso – e mais.
Pois nessa notável figura de mulher negra brasileira a turma exprime, também, o sentimento de inconformismo com as desigualdades de toda ordem que não pode deixar de inspirar a diplomacia brasileira.
Senhoras e senhores,
No governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Brasil voltou a assumir as responsabilidades que lhe cabem na construção de um mundo seguro, próspero e sustentável.
O mundo com que nos deparamos na atualidade é, contudo, um mundo em desordem.
Desde o início de seu primeiro mandato, Senhor Presidente da República, Vossa Excelência fez da palavra do Brasil um instrumento de crítica às múltiplas desigualdades que fragilizavam e ameaçavam a ordem mundial.
O Brasil objetou às desigualdades de poder militar, que levam à crença arrogante no uso da violência como solução de problemas políticos.
O Brasil denunciou as desigualdades de poder econômico, que levam à ideia equivocada de que possa haver justiça onde há concentração da riqueza.
O Brasil alçou sua voz contra as desigualdades sociais, fonte da noção mal concebida de que sociedades excludentes possam viver em paz.
Procuramos reformar a governança global em suas várias frentes, fazendo com que as estruturas existentes incorporassem os anseios dos países em desenvolvimento.
Atuamos concretamente na busca de inclusão, desenvolvimento e segurança.
Advertimos sobre os fatores de erosão da ordem mundial.
Sublinhamos que muitas das promessas dessa ordem não se tornaram realidade.
Mas assistimos ao esgarçamento do tecido social não só nos países em desenvolvimento como nas próprias sociedades desenvolvidas.
Testemunhamos o aquecimento do planeta, a devastação do meio ambiente, a ascensão do protecionismo, a exploração da intolerância e da xenofobia, a deterioração da paz.
Uma multiplicidade de fraturas e crises – social, climática, ambiental, econômica, informacional, geopolítica, entre outras – se abate sobre o planeta.
Em larga medida, a desordem em que hoje vivemos é fruto da resistência às iniciativas de reforma pleiteadas pelos países em desenvolvimento e – por conseguinte – da persistência de profundas desigualdades globais.
Isso não é razão para esmorecermos – ao contrário.
É razão para redobrarmos o nosso empenho.
Mas devemos entender que o alcance das reformas também deve ser redobrado.
O Sul político tem hoje potências consolidadas e indispensáveis para o equacionamento dos problemas de seu entorno estratégico e do mundo.
Seus legítimos interesses já não podem ser desconhecidos quando se fala na segurança de seu entorno e no equilíbrio político internacional.
Muitas das regras que ordenavam o jogo internacional há 20 anos já não têm vigência.
Isso é especialmente visível no anacronismo da composição e dos métodos do Conselho de Segurança das Nações Unidas, bem como no bloqueio do mecanismo de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio.
A paralisia das grandes instâncias de gestão da vida internacional nos impõe uma tarefa inadiável e bem mais ampla.
Caberá ao Brasil tomar parte ativa na reinvenção da ordem mundial e na definição das novas regras de convivência entre as nações.
Senhoras e senhores,
No último ano e meio, o Brasil salvaguardou sua democracia e se reencontrou com a civilização.
Ao fazê-lo, reassumiu a sua grandeza no concerto das nações.
Sabemos – para citar o chanceler que forjou a Política Externa Independente – que a palavra do Brasil no mundo não é só uma “palavra de apoio ou de crítica”.
É uma “palavra de decisão”, como ensinou San Tiago Dantas.
É da essência de nossa linha independente – refletida na tradição e consagrada na Constituição Federal – não aceitar agendas predefinidas nem posturas predeterminadas.
“A independência é para nós” – cito novamente San Tiago Dantas – “uma posição em que só nos predeterminamos pela convicção democrática, fundamental ao nosso povo”.
Uma posição que se orienta pela capacidade de, através de conceitos próprios, “identificar o rumo do interesse próprio”.
É com visão própria e palavra resoluta – como recomendava aquele eminente chanceler e democrata – que nos estamos pautando na obra em aberto de reinvenção da ordem mundial.
Na presidência do grupo das 20 maiores economias do mundo, ao longo deste ano de 2024, inscrevemos o combate às desigualdades no topo da agenda.
O Brasil está liderando com respaldo unânime, no G20, a criação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, a ser lançada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na cúpula presidencial do Rio de Janeiro, a ter lugar em novembro próximo.
O diagnóstico geral de insegurança alimentar e nutricional no mundo é claro.
De acordo com a FAO, mais de 730 milhões de pessoas enfrentam a fome todos os dias, como resultado da pobreza, das desigualdades, das mudanças climáticas, das crises econômicas, dos conflitos nas suas diversas manifestações.
Vemos isso do Haiti ao Sudão e à Faixa de Gaza.
Como afirmou Vossa Excelência, Senhor Presidente da República, “a fome não resulta apenas de fatores externos. Ela decorre, sobretudo, de escolhas políticas”.
Para enfrentá-la, precisamos justamente de ações políticas criativas, trazendo o desenvolvimento para o centro do debate.
Não é mais possível repetirmos o velho modelo de cooperação do Norte para o Sul, com seus receituários prontos.
A Aliança Global colocará à disposição dos países que buscam cooperação não só os recursos dos doadores, como também uma cesta de políticas públicas desenhadas e implementadas com sucesso por vários países em desenvolvimento na área de erradicação da fome e da pobreza.
Com essa iniciativa, faremos cooperação internacional de uma nova maneira – dando voz aos países receptores e demonstrando que o hemisfério Sul está disposto a exercer o protagonismo conceitual que lhe cabe no mundo.
Como anfitriões da COP 30, em novembro de 2025, estamos comprometidos a abordar o desafio da mudança do clima também desde uma perspectiva inovadora.
Os eventos climáticos extremos já são uma realidade – como vimos recentemente nas catastróficas inundações no Rio Grande do Sul, nas queimadas no Pantanal e nas secas severas na Amazônia.
Queremos que a conferência de Belém do Pará seja um alerta ao mundo sobre o risco de que a floresta amazônica desapareça se continuarmos no caminho do aquecimento.
Mas não podemos mais aceitar que a resposta da comunidade internacional aos desafios climáticos se concentre unicamente em metas de mitigação.
É imperativo adaptarmos as nossas sociedades aos novos padrões climáticos, em especial nos países em desenvolvimento.
Queremos enfatizar a dimensão humana das políticas climáticas, garantindo que as populações mais vulneráveis não sejam deixadas para trás.
Comprometido a liderar pelo exemplo, o Brasil quer tornar realidade um novo paradigma de desenvolvimento sustentável por meio da transformação ecológica.
Ao mesmo tempo, a invenção de uma ordem menos desigual deve equacionar o problema da distribuição do poder.
Como país-sede da cúpula dos BRICS, cuja presidência assumirá em 2025, o Brasil receberá os integrantes de uma agremiação que reúne 46% da população mundial e 36% do PIB global.
O BRICS é hoje o maior símbolo da formação de uma efetiva multipolaridade.
A sua expansão para dez membros, decidida em outubro do ano passado, foi um dos fatos mais consequentes da política internacional dos últimos tempos.
Atuaremos para reforçar a vocação do BRICS para a reforma da governança global, estampada na Declaração de Joanesburgo II.
Atuando sem trégua por um mundo com menos desequilíbrios, interessa-nos colaborar para uma multipolaridade estável.
É por isso que, na presidência do G20, temos buscado os elementos de convergência entre grandes grupos e regiões para a construção de bases mínimas com vistas a um novo equilíbrio global.
Nas Nações Unidas, precisamos recobrar a eficácia do multilateralismo como instrumento de gestão e estabilização da ordem.
É tempo de rediscutir os instrumentos e os meios, no marco da Carta das Nações Unidas, a serem empregados para revigorar a Organização e, em especial, o seu Conselho de Segurança.
Senhoras e senhores,
No último ano e meio, os compromissos internacionais do Senhor Presidente da República e os do Ministério das Relações Exteriores orientaram-se pelo universalismo da política exterior brasileira.
Desde 1º de janeiro de 2023, foram mais de 200 interações por parte de Vossa Excelência, Senhor Presidente da República, na forma de participação em cúpulas, reuniões bilaterais, visitas realizadas ou recebidas, telefonemas e videoconferências.
Dedicamos, no primeiro ano e meio de governo, especial atenção ao relançamento de contatos, tendo como ponto de partida o nosso entorno estratégico e como rumo a diversificação de nossas parcerias no mundo.
O Brasil lançou uma nova agenda de integração na América do Sul, com a reunião que deu origem ao Consenso de Brasília.
Da mesma forma, regressou à Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe, a CELAC.
Sediamos a Cúpula da Amazônia, em Belém, reunindo os chefes de Estado dos países membros do Tratado de Cooperação Amazônica, em evento que contou com ampla participação da sociedade civil.
Revitalizamos o MERCOSUL, que assinou, com Singapura, o seu primeiro acordo externo em doze anos.
O grupo está engajado em negociações com outros atores como a União Europeia, os Emirados Árabes Unidos, o EFTA e o Panamá.
Com a União Europeia, recolocamos as negociações do MERCOSUL em bases compatíveis com o interesse nacional, com vistas à obtenção de um acordo equilibrado que contribua para integrar ainda mais os dois blocos e – assim – para fortalecer o aporte construtivo de ambos para a multipolaridade.
Ainda em nosso entorno estratégico, retomamos o contato com nossos vizinhos de além-mar congregando-nos na primeira reunião ministerial da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul desde 2013.
Registro as viagens presidenciais a Angola, Cabo Verde, África do Sul – esta no contexto da cúpula dos BRICS –, São Tomé e Príncipe – para a cúpula da CPLP – e também ao Egito e à Etiópia – para a cúpula da União Africana.
Mais além, no Oriente Médio, tivemos as viagens presidenciais à Arábia Saudita, ao Catar e aos Emirados Árabes Unidos.
Na Ásia, demos novo ímpeto à relação com os países da ASEAN.
A Índia, visitada pelo Senhor Presidente da República no contexto da cúpula do G20, tornou-se hoje nosso décimo parceiro comercial.
Há que se reconhecer que o centro dinâmico da economia mundial se deslocou nas últimas décadas: as exportações brasileiras à China – também visitada pelo Senhor Presidente da República em 2023 – são hoje mais do que a soma de nossas vendas aos Estados Unidos e à União Europeia.
Não descuidamos, por outro lado, das parcerias com o mundo desenvolvido.
Ademais das visitas a Washington, Lisboa, Porto, Madri, Londres, Paris, Berlim e Roma, o Senhor Presidente da República foi convidado a participar das cúpulas do G7 – o que não acontecia desde 2010 –, tendo comparecido aos encontros do grupo no Japão, no ano passado, e na Itália, em junho deste ano.
(Aliás registro que este foi o décimo convite que Vossa Excelência recebeu para participar de reuniões do G7 em seus mandatos).
Na Organização Internacional do Trabalho, o Senhor Presidente da República copresidiu o lançamento da Coalizão Global para a Justiça Social, que busca promover o trabalho decente.
No mesmo campo, tem-se desenvolvido e frutificado a parceira Brasil-Estados Unidos sobre direitos dos trabalhadores.
Senhoras e senhores,
Temos aqui hoje uma das turmas mais diversas que já ingressou no Ministério – como mencionado pela oradora –, com 21 homens e 15 mulheres, a maior proporção de participação feminina na história da instituição.
Dos 36 diplomatas, 10 são negros, o maior número, em termos absolutos, até então.
A turma tem também uma diversidade regional marcante, como foi dito, com alunos vindos de todas as regiões do Brasil, além dos sete intercambistas estrangeiros, de Argentina, Cabo Verde, Equador, Guiné-Bissau, Japão, Quênia e Suriname.
O Embaixador Alberto da Costa e Silva, que nos deixou no final do ano passado, uma vez disse que o diplomata é aquele que “representa, sendo”.
Estamos hoje mais perto de poder um dia dizer que o Itamaraty representa, sendo, a sociedade brasileira.
Devemos isso ao trabalho iniciado no primeiro governo de Vossa Excelência, Senhor Presidente da República, e defendido com afinco nesta administração.
Sei que se trata de uma tarefa incompleta.
Existem importantes lacunas de representação.
Por meio do Sistema de Promoção da Diversidade e Inclusão do MRE, trabalhamos para fortalecer o Itamaraty com maior representação de pessoas negras, mulheres, povos indígenas, pessoas com deficiência e a comunidade LGBTQIA+.
Com diálogo e composição, decidi implementar medidas para assegurar um piso de 40% de candidatas mulheres nas últimas fases do concurso do Instituto Rio Branco e, assim, ampliar o ingresso de mulheres no Ministério.
Em breve, anunciaremos, também, uma série de ações destinadas a todos os grupos prioritários do Programa Federal de Ações Afirmativas.
Presto aqui uma homenagem a outro grande diplomata que nos deixou há pouco tempo, o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães – meu querido e saudoso amigo – que mais do que ninguém entendeu que as profundas transformações de nossa sociedade exigem uma diplomacia representativa, diversa, motivada e dotada dos meios para atingir seus objetivos.
O Itamaraty enfrenta hoje, como instituição, desafios não vistos em muitas décadas.
Quase vinte anos depois das medidas que viabilizaram o necessário e auspicioso ingresso de um amplo contingente de diplomatas no Ministério, o legado dessa reforma visionária precisa ser consolidado.
Não existe equação fácil para o problema de fluxo da carreira diplomática; estou, no entanto, determinado a encontrar as soluções possíveis para dar continuidade a essa reforma, com mente e espírito abertos a novas ideias e propostas.
Dentre as medidas que estamos considerando, encontram-se a adoção de critérios mais objetivos, previsíveis e transparentes para a ascensão até os estratos intermediários; a criação de trilhas profissionais distintas e optativas e a introdução de mecanismos para acelerar a representatividade de gênero e étnico-racial em todas as classes da carreira diplomática.
Algumas das mudanças, por seu caráter estrutural, exigirão reformas legais, com necessária tramitação no Congresso Nacional, enquanto outras podem avançar de forma mais célere.
É bem-vinda, nesse contexto, a contribuição das associações de classe e sindicatos, em espírito de diálogo construtivo, com vistas a uma frente unida em defesa da carreira.
O Ministério das Relações Exteriores foi o primeiro órgão da Esplanada a instituir, no final do ano passado, a Mesa Setorial de Negociação Permanente como canal privilegiado de debate sobre melhorias nas condições de trabalho.
No último semestre, priorizamos a alocação de diplomatas em Brasília e a racionalização de nossos quadros de pessoal nos postos no exterior.
Os resultados do último mecanismo de remoções lograram dar importante resposta, ainda que parcial, ao objetivo de dotar a Secretaria de Estado das capacidades mais importantes para implementar nossa ambiciosa agenda internacional.
Atendida essa prioridade, estaremos em condições de ampliar o escopo das medidas de realocação de pessoal para apoiar outros objetivos da política exterior, como, por exemplo, a reaproximação com países africanos.
Tenho, ainda, a felicidade de poder mencionar a recente conclusão de concurso para a carreira de oficial de chancelaria, por meio do qual ingressaram 50 novos servidores em nossos quadros, com previsão de que mais 50 ingressem nos próximos meses.
Com um concurso já realizado e outro previsto para 50 vagas de diplomatas, pretendemos reverter parte da perda de funcionários de que sofremos nos últimos anos.
Estamos conjugando essas medidas a outras de aprimoramento das condições de trabalho de nossos funcionários.
Estamos em vias de expandir o Programa de Gestão e Desempenho para todas as unidades do Ministério, com o objetivo de dotar o Itamaraty de instrumentos mais modernos para a gestão de recursos humanos.
Reitero, Senhor Presidente da República, a necessidade de fortalecermos o orçamento do Itamaraty, de modo a termos recursos compatíveis com as crescentes necessidades e responsabilidades diplomáticas do Brasil.
Senhoras e senhores,
Estamos recolocando a diplomacia a serviço da política exterior.
Estamos reorientando a política exterior pelo universalismo, em que partimos de nossas coordenadas básicas no hemisfério sul – da América do Sul e do Atlântico Sul – para buscar parcerias diversificadas em todas as regiões do globo.
E estamos fazendo da nossa atitude universalista um instrumento para a invenção de uma ordem mundial inclusiva, com menos desigualdades e mais segurança, desenvolvimento e sustentabilidade.
Reitero meus votos de muitas felicidades e realizações na carreira aos que neste momento iniciam sua trajetória no Itamaraty.
Muito obrigado.