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Discurso do Ministro Mauro Vieira no seminário “Relações Internacionais, Política Externa e Igualdade Racial”, proferido pela Secretária-Geral do MRE
Tenho a enorme satisfação de receber a cada uma e a cada um de vocês no seminário “Relações Internacionais, Política Externa e Igualdade Racial”, que integra as atividades do governo federal no mês da consciência negra.
O dia de hoje marca, a um só tempo, um necessário reencontro crítico com a história diplomática, e ponto de inflexão para o planejamento do futuro da política externa e do Ministério das Relações Exteriores como instituição.
Começo pela história.
Na semana passada, visitei o Palácio do Itamaraty no centro do Rio de Janeiro, junto ao Prefeito Eduardo Paes. O termo que hoje identifica a nossa instituição é indígena, mas a homenagem é ao Conde do Itamaraty: homem branco, nascido em Portugal, empresário de sucesso no primeiro e no segundo Império. O Palácio foi residência da elite imperial, abrigou a Presidência no início da República e por décadas foi sede do Ministério de Relações Exteriores. Passa, agora, por ampla e necessária reforma.
Nos trabalhos de refundação do prédio das cavalariças, descobriu-se uma série de cachimbos e outros artefatos ligados a escravizados de origem africana. Os achados estão sendo catalogados e farão parte da mostra permanente do Museu Histórico e Diplomático. Dessa forma, o Palácio do Itamaraty passará a integrar o circuito de recuperação da memória negra no centro do Rio conhecido como “Pequena África”, que inclui a Pedra do Sal e os sítios arqueológicos do Cemitério dos Pretos Novos e do Cais do Valongo.
Esse fato ilustra a impossibilidade de uma história diplomática brasileira que desconsidere a centralidade da maioria negra de nossa população, bem como de sua luta por direitos, para a formação nacional e nosso lugar no mundo.
O serviço exterior brasileiro começou a funcionar em 1823, mas a primeira pessoa negra a ingressar por concurso foi Mônica de Menezes, apenas em 1978. Esses longos 155 anos não significaram, contudo, a ausência de contribuição de pessoas negras na formulação da política externa. Suas maiores fortalezas – como seus princípios constitucionais, sua vocação universalista, seu compromisso com direitos e sua busca por uma ordem internacional mais justa, pacífica e inclusiva – são indissociáveis da contribuição política, intelectual e cultural da população negra.
Senhoras e senhores,
O cenário mundial é desafiador, com a persistência de desigualdades entre países e entre pessoas, agravadas pela pandemia de COVID-19; os efeitos do aquecimento global; o acirramento da competição geopolítica e de conflitos; e o recrudescimento da agenda internacional de direitos, do desenvolvimento sustentável e da paz.
Ciente desses desafios, o governo do Presidente Lula realinhou o Estado brasileiro a seus objetivos constitucionais, às necessidades dos mais pobres e a sua vocação de liderança global. Nos próximos anos, o Brasil será a capital mundial do G20, da COP do Clima e do BRICs, entre outros foros.
Nesse contexto arrojado, a criação do Ministério da Igualdade Racial, sob liderança da ministra Anielle Franco, foi excelente notícia para a política externa. Nossa parceria, ministra, tem sido e será vital para recuperar a credibilidade e a capacidade de atuação construtiva do Brasil nos debates internacionais sobre igualdade racial, e direitos humanos de forma geral, depois dos lamentáveis retrocessos vividos no governo anterior.
Muito já foi feito em 2023. Nos engajamos no Foro da ONU de Pessoas Afrodescendentes e recebemos sua Presidente, Epsy Cambell. Apresentamos, junto ao Grupo Africano, resolução contra o racismo no esporte no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Questionamos os atos racistas perpetrados contra o jogador de futebol brasileiro Vinícius Jr. Estamos em diálogo com peritos internacionais dedicados à violência policial. Em seu discurso na 78ª Assembleia-Geral da ONU, o presidente Lula defendeu a igualdade racial como o “18º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável”.
Olhando para o futuro, o próximo passo será transversalizar, no conjunto da política externa, as perspectivas de igualdade racial e de gênero, partindo do acúmulo de décadas de posicionamentos internacionais em temas de direitos humanos.
Esse olhar inclusivo atualizará e fortalecerá as diferentes vertentes da diplomacia: ambiental, econômica, social, cultural, científica, regional, da cooperação e da paz. Conformará, ainda, a criação de uma nova linha de ação da política externa, a ser construída em conjunto com os ministérios interessados: o fortalecimento de vínculos do Brasil com a diáspora africana, especialmente na América Latina e no Caribe.
Senhoras e senhores,
A reafirmação do compromisso genuíno da política externa com a pauta da igualdade racial e do combate ao racismo deve ter como contrapartida maior diversidade em seu quadro de servidores e em seu patrimônio simbólico.
Neste século, medidas como o pioneiro Programa de Ação Afirmativa, que hoje celebramos e renovamos, e as cotas no serviço público, começaram a alterar o perfil étnico-racial do Ministério das Relações Exteriores. A presença de pessoas negras no estágio inicial da carreira diplomática já é, percentualmente, cerca de três vezes maior do que no estágio final.
A nova geração de servidores está mudando o Itamaraty para melhor. Não há mais lugar para a visão anacrônica de que cotistas representariam um déficit de qualidade para o ministério; pelo contrário, seu ingresso vem suprir um grave déficit institucional. Sua presença, para além de um direito, é do interesse da Administração.
Uma série de outras medidas estão sendo adotadas nesta administração. Gostaria de sublinhar o estabelecimento do Sistema de Promoção de Diversidade e Inclusão, com inédito Comitê Étnico-Racial; o lançamento de Curso sobre Diversidade e Inclusão na grade curricular do IRBr; a criação do prêmio "Milena de Medeiros" para agraciar a pessoa negra mais bem colocada no curso de formação de diplomatas; e a promoção de diplomatas com maior percentual de pessoas negras da história, com destaque para mulheres negras nas duas classes mais altas.
No projeto de renovação do acervo artístico do Itamaraty, determinei que houvesse especial atenção para a maior inclusão de obras de autoria negra, feminina e indígena. Tivemos a honra de contar com a doação de obra do pintor Dalton de Paula, que se junta a Ruben Valentin e a Emanoel Araújo em tornar nosso espaço um local tão admirado pelos que o visitam.
Para seguirmos avançando, o Plano Estratégico Institucional 2024-2027 incorporará aspectos de diversidade nas seguintes áreas: gestão de pessoas; integridade, ouvidoria e correição; formação contínua; agenda de debates e política editorial; memória e acervo artístico; e diplomacia cultural, entre outras.
Senhoras e senhores,
Nosso caráter nacional “amefricano” – para utilizar a sábia expressão da intelectual brasileira Lélia González – permite ao Brasil reivindicar múltiplas identidades: latino-americana, sul-atlântica, lusófona e da diáspora.
Eleva, portanto, o lugar geopolítico do Brasil no mundo, a partir de uma capacidade singular de dialogar e construir pontes com todas as regiões, sempre orientados por nossos interesses, não por alinhamentos automáticos.
Nesse sentido, o seminário de hoje inaugura reflexão em três níveis: a política externa; a diversidade interna do serviço exterior brasileiro; e o nível simbólico.
Concluo minhas palavras mencionando um quarto nível: o individual. É tarefa de todos nós refletir, e agir, para que o ministério e os serviços que ele presta sejam espaços de pertencimento físico, funcional e afetivo para pessoas negras.
Assim como a reforma do Palácio Itamaraty, a reforma de mentalidades vem em boa hora.
Muito obrigado.