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Discurso do Ministro Mauro Vieira na abertura do Seminário “Encontros: 200 anos de amizade Brasil-EUA” - Brasília, 28 de maio de 2024
Senhora Secretária-Geral das Relações Exteriores, Embaixadora Maria Laura da Rocha,
Senhora Embaixadora Maria Luisa Escorel de Moraes, Secretária de Europa e América do Norte,
Senhora Embaixadora Maria Luíza Viotti, Embaixadora do Brasil em Washington,
Senhor Embaixadora Elizabeth Bagley, Embaizadora dos Estados Unidos em Brasília,
Senhor Abrão Neto, Presidente da Câmara de Comércio Americana para o Brasil – a Amcham Brasil,
Senhora Celita Procópio de Carvalho, Presidente do Conselho de Curadores da Fundação Armando Álvares Penteado,
Senhora Pilar Procópio de Carvalho Guillon Liotti, Conselheira do Museu de Arte Brasileira,
Senhoras e senhores membros do corpo diplomático,
Senhoras e senhores,
Em primeiro lugar, queria aqui solicitar a indulgência dos senhores e das senhoras para estender uma homenagem pessoal ao Embaixador Rubens Ricupero, que nos honra aqui com sua presença neste evento.
Desnecessário enumerar as diversas altas funções que o Embaixador ocupou em sua destacada carreira, tendo sido, além de Ministro da Fazenda e Ministro do Meio Ambiente, também Secretário-Geral da UNCTAD.
Hoje a função que me cabe destacar é a de Embaixador do Brasil em Washington, sendo um dos antecessores da Embaixadora Maria Luíza Viotti no posto. Foi também Embaixador do Brasil em Roma e Representante Permanente junto às Nações Unidas em Genebra.
O Embaixador Ricupero segue sendo – e, arrisco dizer, para sempre será – uma referência intelectual indispensável para os integrantes desta Casa.
Não podemos jamais esquecer que, nos dias sombrios recentemente atravessados, o Embaixador ofereceu luzes onde naquele momento prosperava o obscurantismo, chegando mesmo a emprestar seu nome a um grupo de expoentes da política externa brasileira que cobrou respeito às tradições da nossa diplomacia.
Tive alegria ao saber, ontem, que sua “magnum opus”, o livro “A diplomacia na construção do Brasil”, verdadeira carta náutica para os estudiosos da política externa brasileira, está em processo de tradução para o inglês.
Tal edição fraqueará acesso à riqueza de conhecimento ali contido para um público mais amplo, inclusive nos Estados Unidos, que poderá adquirir uma compreensão mais profunda a respeito da inserção internacional do Brasil e do papel que o País pode desempenhar no mundo.
Senhoras e senhores,
Há duzentos anos, José Silvestre Rebello entregava suas cartas credenciais ao Presidente James Monroe, em Washington. Naquele momento, passou a ser formalmente reconhecido como Encarregado de Negócios do Brasil nos Estados Unidos da América, tendo sido um pouco depois o primeiro ministro plenipotenciário do Brasil em Washington.
Mais importante: por meio daquele ato, o governo norte-americano reconheceu formalmente a Independência do Brasil, conquistada pela luta de brasileiros e brasileiras. Os Estados Unidos figuram, dessa forma, entre os primeiros países a fazê-lo.
O episódio marcou uma das primeiras vitórias da diplomacia brasileira, no que foi a sua pioneira grande tarefa: assegurar a aceitação do país no concerto das nações.
O Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros do Império, Luiz José de Carvalho e Mello – primeiro Visconde da Cachoeira – comemorou não só o reconhecimento em si, mas também a força que ele emprestava às nossas negociações com os países europeus.
Quis o destino que uma de nossas amizades mais longevas viesse a se tornar, também, uma das mais importantes e sólidas. Hoje nos reunimos para celebrar tudo o que o Brasil e os Estados Unidos construíram juntos desde aquele memorioso dia de 26 de maio de 1824.
Reconhecida ao Brasil a condição de Estado independente, a relação bilateral passou a envolver interesses econômicos cada vez mais intensos, com a consolidação dos Estados Unidos como grande parceiro comercial.
Os dois países também desempenharam papel importante, por exemplo, no desenvolvimento do movimento pan-americanista – que estaria na origem da Organização dos Estados Americanos, a OEA.
Outro momento simbólico na evolução da nossa parceria deu-se no início do século XX, durante a gestão do Barão do Rio Branco à frente do Itamaraty.
O patrono da nossa diplomacia entendeu que cabia ao Brasil, naquela altura, “entrar resolutamente na esfera das grandes amizades internacionais”, como escreveu em artigo de imprensa.
Para o Barão, não havia dúvida de que uma das principais “grandes amizades” haveria de ser justamente com os Estados Unidos.
A decisão de estreitamento das relações com Washington esteve baseada em convergência de valores, mas sobretudo em considerações de natureza realista e pragmática.
Apesar da evidente inspiração que os Estados Unidos representavam para a nascente República brasileira nos primeiros anos do século XX, as decisões de Rio Branco estiveram assentadas, em primeiro lugar, em considerações do interesse nacional brasileiro, e não apenas em afinidades ou simpatias.
Em 1916, os EUA ultrapassariam a Europa como principal parceiro do Brasil no comércio de bens, posto que ocupariam por quase cem anos, até 2009, quando aquela posição passou a ser ocupada pela República Popular da China.
Teve início a chegada de empresas norte-americanas ao Brasil, as quais viriam a prestar contribuição importante ao nosso desenvolvimento industrial nas décadas subsequentes.
Os Estados Unidos seguem sendo a principal fonte de investimentos externos diretos na economia brasileira; e o Brasil também se tornou um importante investidor no mercado norte-americano, gerando um estoque não-desprezível de empregos naquele país.
Duzentos anos depois, não podemos perder de vista as lições que aprendemos juntos e as transformações que testemunhamos em nossa caminhada.
Brasil e Estados Unidos lutariam ainda, lado a lado, contra o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.
O Brasil foi, aliás, o único país da América Latina e Caribe a enviar tropas para o esforço de guerra no continente europeu.
Ao final da Guerra, estivemos juntos também nos esforços de construção de uma nova ordem internacional baseada no Direito Internacional, no multilateralismo e na igualdade soberana entre os Estados, de que a criação das Nações Unidas foi o exemplo mais bem acabado.
Senhoras e senhores,
Não pretendo alongar-me em divagações históricas, mas penso que essas referências iniciais nos ajudam a entender a amizade Brasil-Estados Unidos e seu sentido no presente e no futuro.
Por um lado, a memória desses duzentos anos aponta para a relevância e a abrangência das nossas relações; por outro, nos relembra a importância de que sua condução seja feita de maneira sóbria e desassombrada, com ambos os países orientados pela consecução de seus interesses nacionais e dos valores que compartilhamos, em busca de convergências e consensos que beneficiem ambas as sociedades.
Em cada um dos grandes temas que afetam a comunidade internacional – para não dizer o conjunto da humanidade –, Brasil e Estados Unidos têm suas posições, que frequentemente, mas não necessariamente, coincidem, cada quais fundadas em leituras próprias dos respectivos interesses nacionais.
Quando nos encontramos em lados distintos de um argumento, o importante é que, como dois países amigos, mantenhamos abertos os canais de diálogo, para que os pontos de vistas possam ser comparados e contrastados no espírito de encaminhar objetivamente os problemas.
Países de dimensões continentais, com amplas riquezas naturais, somos democracias multiétnicas, que aprenderam a acolher povos de outras regiões e culturas.
Enfrentamos desafios compartilhados, da promoção da igualdade racial ao combate à mudança do clima.
Nossos governos são ambos comprometidos em fazer com que a necessária descarbonização de nossas economias seja acompanhada de oportunidades econômicas e geração de emprego e de renda, inclusive em benefício dos mais necessitados.
No plano bilateral, temos trabalhado para buscar sinergias entre nossas políticas públicas e nossos objetivos de política interna e externa.
A visita do Presidente Lula a Washington, em fevereiro de 2023, com cerca de 40 dias no cargo, em atendimento ao convite do Presidente Joe Biden, inscreveu-se na longeva tradição de visita de Chefes de Estado brasileiros à capital norte-americana, muitas vezes em reciprocidade às visitas de presidentes dos Estados Unidos ao Brasil: são catorze visitas de dez ocupantes da Casa Branca, desde que Herbert Hoover visitou o Rio de Janeiro em 1928.
Em setembro passado, por exemplo, o Presidente Lula e o Presidente Biden encontraram-se em Nova York e lançaram uma Parceria pelos Direitos dos Trabalhadores e Trabalhadoras, um tema historicamente caro a ambos.
A Parceria cobre também temas tradicionais, como o combate ao trabalho forçado e ao trabalho infantil e da discriminação no local do trabalho.
Mas vai além: trata, também, de tópicos que dialogam diretamente com os novos desafios inerentes à economia do século XXI.
Reflete, nesse sentido, o entendimento de que a transição digital e a transformação ecológica devem trazer benefícios e gerar oportunidades, inclusive empregos de qualidade, para todas e todos.
Somos atores de primeira grandeza em agendas internacionais como a produção de alimentos, o combate à mudança do clima e a geração de energia limpa.
Seguimos empenhados em desenvolver iniciativas que possam explorar esse grande potencial de ação conjunta entre Brasil e Estados Unidos.
Na área de energia limpa, por exemplo, assinamos, ainda em 2007, um memorando de entendimento para avançar a cooperação em biocombustíveis.
Dezesseis anos depois, na Cúpula do G20 em Nova Délhi, lançamos a Aliança Global para Biocombustíveis, ao lado de outros parceiros. Possibilidades para aprofundar nossa cooperação nessa área continuam na ordem do dia.
Senhoras e senhores,
A amizade construída entre nossos países vai além dos governos e dos contatos oficiais. Traduz-se, também, em laços interpessoais – pela via do turismo, do intercâmbio acadêmico e das nossas diásporas, por exemplo.
Abrigamos uma comunidade importante de imigrantes norte-americanos, e temos nos Estados Unidos a maior comunidade de brasileiros no exterior.
No trágico contexto das enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul, essa comunidade brasileira radicada nos Estados Unidos mobilizou-se para acudir seus conterrâneos – um esforço ao qual se somaram, também, tanto o governo norte-americano como entidades privadas e demais cidadãos daquele país.
Agradecemos esse apoio, reconfortados com essa demonstração de solidariedade e de força dos laços humanos entre nossas populações, em um momento de dificuldade.
Caras amigas, caros amigos,
A evolução das nossas relações deve ser vista, também, à luz dos desenvolvimentos maiores das últimas décadas.
A ordem mundial passou por transformações importantes: do mundo bipolar da Guerra Fria, com seus duros reflexos para o Brasil e a América Latina e Caribe, passamos por uma longa transição, culminando na formação de uma ordem crescentemente multipolar, na qual diversos países desempenham papel de relevo em suas regiões e, em diferentes agendas, possuem também alcance global.
O Brasil busca sempre contribuir na busca por soluções coletivas para os desafios contemporâneos.
Na esfera regional, temos impulsionado a revitalização do processo de integração sul-americana.
Sediamos a Cúpula dos Presidentes da América do Sul, em Brasília, em maio passado, e a Cúpula da Amazônia, em Belém, três meses depois.
Temos buscado, nesse contexto, apoiar o diálogo e a busca por soluções para desafios regionais, em diálogo constante com nossos vizinhos e com mecanismos regionais de integração.
Temos, também, buscado dar nossa contribuição para o equacionamento de questões globais, como tem deixado claro o exercício da nossa presidência do G20, cujas prioridades são: o combate à fome e à pobreza, a promoção do desenvolvimento sustentável e a reforma da governança global.
Lançamos a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza e a Força Tarefa contra a Mudança do Clima.
Em setembro, em Nova York, tomaremos o passo inédito de realizar reunião ministerial do G20 com a participação aberta a todos os países-membros das Nações Unidas, em um verdadeiro chamado à ação em favor da reforma das instituições de governança global.
Em 2025, sediaremos, em Belém do Pará, a COP-30 da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima – a maior reunião do calendário multilateral. Levaremos, pela primeira vez, a COP até a Amazônia. Esperamos que seja um encontro rico e produtivo.
Temos hoje mais a oferecer, em termos de cooperação e parceria, nas mais diversas áreas.
Nas últimas décadas, ganharam força, nos dois países, agendas que nos unem em termos de valores e prioridades, seja no que se refere à proteção das nossas instituições democráticas, à promoção da igualdade racial ou no que diz respeito ao combate à mudança do clima.
A estabilização macroeconômica do Brasil, nos últimos trinta anos, também permitiu uma transformação na natureza do nosso diálogo. Hoje, autoridades dos nossos dois países discutem fortalecimento da democracia, transformação ecológica e inteligência artificial.
O tamanho da economia brasileira, a diversidade e solidez do nosso parque produtivo e a pujança do nosso agronegócio continuam a servir de combustível para um diálogo bilateral frutífero em torno de temas econômico-comerciais, inclusive com um foro institucionalizado de reunião entre presidentes de grandes empresas dos dois países – o “CEO Forum”.
Senhoras e senhores,
Os desígnios universalistas da nossa política externa, esboçados inicialmente nos anos 60 e 70, deram frutos, permitindo-nos cumprir, com folga, o desejo de Rio Branco de “entrar resolutamente na esfera das grandes amizades internacionais”, para retomar a frase que citei no início da minha intervenção.
Nessas amizades – no plural –, não buscamos exclusivismos, mas oportunidades para defender os princípios e valores que nos são caros e promover o interesse nacional, com benefícios tangíveis para brasileiros e brasileiras.
Devemos creditar ao Presidente Lula, em seus dois primeiros mandatos – e novamente neste terceiro – a expansão e o fortalecimento de uma teia de relacionamentos que se estende por todas as regiões do mundo.
À luz dessas novas realidades, nossas relações com os EUA evoluíram para uma parceria madura, com diálogo constante e franco sobre a totalidade da agenda internacional: dos dossiês regionais ao multilaterais, dos direitos humanos à cooperação de saúde, dos temas ambientais aos político-militares, das questões comerciais à agenda de energia.
Nos últimos anos, nossa parceria passou a incluir um elemento novo: a necessidade comum de proteger as instituições democráticas frente a ameaças nascidas do extremismo político.
É uma convergência que deve inspirar o futuro da nossa amizade: as duas maiores democracias das Américas, de mãos dadas contra o extremismo, a violência política, o negacionismo, a exclusão das minorias e de grupos historicamente vulneráveis, a disseminação mal-intencionada de meias-verdades, inverdades e mentiras na arena pública.
Que esse espírito continue a pautar nossos trabalhos.
Muito já foi construído, mas há espaço para mais.
Que nos próximos duzentos anos possamos seguir aprofundando nossa cooperação, buscando oportunidades para benefício mútuo – e, quando necessário for, equacionando nossas diferenças da melhor forma possível, como apenas dois velhos amigos são capazes de fazer.
Amigos e amigas,
Minha carreira profissional foi marcada de forma indelével por minhas passagens pelos Estados Unidos.
Foi a Embaixada do Brasil em Washington meu primeiro posto diplomático, entre o fim dos anos setenta e o início dos anos oitenta, onde me desempenhei como Terceiro, Segundo e Primeiro Secretário.
Quase trinta anos depois, tive o privilégio de regressar à capital norte-americana, dessa vez como Embaixador do Brasil nos Estados Unidos, designado pelo Presidente Lula.
Com base nessas experiências – e em tantas outras interações com interlocutores norte-americanos ao longo dos anos –, convenci-me de que Brasil e Estados Unidos podem atuar conjuntamente para impulsionar a reforma da governança global, de forma que as estruturas decisórias reflitam não só a atual configuração do poder mundial, senão de tornar a ordem internacional mais justa, harmônica e equilibrada.
Não será diferente nos Governos do Presidente Lula e do Presidente Biden.
Este é, aliás, um dos momentos em que se deve recorrer à força dessa amizade bicentenária para avançar temas caros aos povos do Brasil e dos Estados Unidos, mas também em favor da defesa da justiça social, do fortalecimento da democracia, da preservação do meio ambiente e, de forma mais ampla, da promoção da paz e da concórdia, dentro e entre os membros da comunidade internacional.
Muito obrigado.