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Discurso do Embaixador Carlos França na transmissão do cargo de Ministro das Relações Exteriores ao Embaixador Mauro Vieira - Brasília, 2 de janeiro de 2023
É com especial satisfação, além do sentimento de dever cumprido, que participo desta cerimônia.
Sinto-me também contente por transmitir as funções de Ministro das Relações Exteriores ao Embaixador Mauro Vieira – profissional experiente e respeitado, dentro dos muros deste Palácio e além deles.
Senhor Ministro de Estado,
Sabemos que a carreira diplomática, como outras carreiras de Estado, é também feita de ritos. Ritos que, pela força da solenidade, realçam os grandes momentos da nossa vida institucional.
Um desses momentos é, sem dúvida, a sucessão na chefia do Ministério.
A quem parte, o rito permite agradecer e prestar contas.
Começo pelos agradecimentos.
O primeiro é devido ao Presidente Jair Bolsonaro, que me confiou a missão mais honrosa e desafiadora que jamais terei cumprido. Uma vez tendo sido convocado a exercer o cargo de Ministro de Estado, o que posso garantir é que investi nele o melhor das minhas capacidades. Nos vinte meses que levei como Chanceler, dei sempre o melhor de mim.
Não teria podido fazê-lo sem o respaldo permanente da Casa. A cada um dos integrantes do Serviço Exterior Brasileiro, e dos demais funcionários do Ministério, deixo meu sincero agradecimento.
E o faço na pessoa daquele que foi meu Secretário-Geral, o Embaixador Fernando Simas Magalhães. Diplomata completo, colaborador e amigo leal, o Embaixador Simas supervisionou, com o lastro da sua trajetória, uma equipe competente e afinada de Secretários. Foi o líder de todo um quadro de agentes públicos que, aqui e no exterior, são motivo de orgulho para o Brasil.
Igualmente fundamental foi o apoio que me deram os colegas de Esplanada, bem como meus interlocutores no Congresso Nacional, no Judiciário, no meio empresarial, na imprensa, nos mais diversos segmentos da sociedade. O diálogo, método por excelência da diplomacia, é também a matéria de que se faz a política externa de uma democracia: essa é a verdade que pude confirmar a cada dia que passei à frente do Itamaraty, nos quais procurei dedicar atenção especial ao aperfeiçoamento da interlocução interna, com a sociedade brasileira e suas lideranças. Sem isso, a atuação externa não funciona.
Feitos os agradecimentos – que parecem faltar, tantos são os credores que deixo –, passo à prestação de contas. Tampouco neste capítulo pretendo ser exaustivo, até por saber das restrições que a solenidade naturalmente impõe.
Quando assumi o Ministério, estava claro que a hora era de urgências. Era preciso, sem demora, reavaliar aquelas que diziam respeito à frente externa.
A partir de uma conversa com o Presidente, definimos três urgências que, no Itamaraty, passamos a enfrentar em caráter prioritário. Tratei de assinalá-las no meu discurso de posse: a urgência sanitária (vivíamos o auge da epidemia de Covid-19); a urgência econômica (como disse à época, o brasileiro quer vacina e quer também emprego); e a urgência climática (urgência em outra escala de tempo, mas urgência ainda assim).
Nenhuma dessas urgências podia – ou pode – ser vencida apenas pela diplomacia. Mas, reconhecidamente, são todas urgências em cujo enfrentamento a diplomacia tem papel indispensável a desempenhar. Cientes disso, pusemos mãos à obra.
As circunstâncias em que atuamos, internas e externas, estiveram longe do ideal. A política externa, como qualquer política pública, e como tudo na vida, está sujeita ao imponderável. Mas, com a disciplina de quem sabe aonde quer chegar, fomos capazes de produzir resultados objetivos em cada uma das nossas áreas prioritárias.
Por meio de uma verdadeira diplomacia da saúde, contribuímos para que os brasileiros pudessem ser vacinados contra a Covid-19.
A conjuntura, como lembrarão todos, era de acirrada competição por insumos médicos. Os gargalos de fornecimento se acumulavam. Um de meus primeiros atos à frente do Ministério foi instituir unidade exclusivamente voltada para a resposta à pandemia. Mobilizamos nossa rede de Postos no exterior e garantimos, junto a países centrais nas cadeias de produção de imunizantes, as doses de vacinas e os ingredientes farmacêuticos ativos – os chamados “IFAs” – de que necessitávamos. Mais ainda, ajudamos a viabilizar a transferência de tecnologia que permitiu à Fundação Oswaldo Cruz, então presidida pela hoje Ministra da Saúde, a primeira mulher a presidir o Ministério da Saúde, a doutora Nísia Trindade, produzir IFAs e vacinas integralmente no Brasil. Poucos países podem dizer o mesmo.
Nossa diplomacia da saúde teve também a marca da solidariedade. Não apenas recebemos doações de diferentes partes do mundo – equipamentos e medicamentos em benefício do nosso Sistema Único de Saúde. Sobressaímos igualmente como doadores, inclusive ao amparo da Covax-Facility, conduzida pela Organização Mundial da Saúde, para a qual fomos o principal doador entre os países em desenvolvimento.
A vertente multilateral da nossa diplomacia da saúde não se limitou à OMS. Refletiu-se em uma presença não menos firme e decidida em outros espaços de cooperação, como a Organização Pan-Americana da Saúde e a Organização Mundial do Comércio.
Não por acaso o Brasil foi escolhido, por consenso, para representar as Américas em instância que, na OMS, deverá negociar um instrumento internacional sobre pandemias. Não por acaso o brasileiro Jarbas Barbosa da Silva Jr. foi eleito Diretor da OPAS. São formas de reconhecimento internacional à atuação do Brasil, ao Sistema Único de Saúde e a nossa diplomacia.
Senhor Ministro, Senhoras e Senhores,
A outra urgência a que demos combate prioritário foi a econômica. Aqui, velamos para que nossos meios como Chancelaria estivessem cada vez mais ajustados ao anseio último que, estou seguro, compartilhamos todos: o anelo de construir um Brasil mais próspero e menos desigual; um Brasil onde não faltem oportunidades para quem quer trabalhar; e onde o Estado seja mais eficiente para quem mais precisa dele.
O caminho para esse Brasil é longo, é saudável que sonhemos, para nossa gente, com um futuro sempre melhor. Nesta quadra da História, parece certo que esse caminho passa, necessariamente, por mais abertura ao mundo, mas não por uma abertura ilimitada. Uma abertura soberana, isto é: tributária da nossa deliberação autônoma, pautada por nossos valores e interesses. Uma abertura que sejamos nós a controlar, em função do que desejamos fazer do Brasil, para os brasileiros.
Foi essa concepção de abertura que presidiu a nossa diplomacia econômica.
Foi essa concepção que nos guiou quando nos dedicamos a dissipar os equívocos de percepção – e a contrarrestar os impulsos protecionistas – que têm impedido a assinatura do acordo Mercosul-União Europeia. Ou mesmo quando envidamos esforços em nome de mais comércio com outros parceiros mundo afora, a começar pelos nossos vizinhos sul-americanos.
Foi essa concepção que nos guiou quando, durante a pandemia e após a eclosão do conflito na Ucrânia, nos engajamos para manter a fluidez do comércio agrícola – das commodities que exportamos aos insumos que importamos. A abertura é um antídoto contra a insegurança alimentar e energética.
Foi ainda essa concepção que nos guiou quando levamos a cabo a defesa da nossa agropecuária contra investidas dos núcleos duros do protecionismo global – por exemplo, ao projetar a imagem da produção brasileira como aquilo que ela é: atividade altamente sustentável, intensiva em ciência e inovação.
Foi essa concepção que nos guiou, enfim, quando demos seguimento a decisões de alcance estrutural, como a que resultou na intensificação do processo de acessão do Brasil à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico.
Jamais se pretendeu que a OCDE fosse uma panaceia. Isso não existe. Não há atalhos para o desenvolvimento, que depende sobretudo de nossa capacidade interna de organização e mobilização. Mas nossa convicção é que a proximidade com a OCDE, a abertura para as ideias que ali se cultivam, concorre para aprimorar as condições a partir das quais continuaremos a construir aquele Brasil por que ansiamos.
Chego à urgência climática. Também aqui fizemos muito, em diferentes tabuleiros.
Ressalto a contribuição decisiva do Brasil para o que se pôde obter na COP-26 da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Em Glasgow, estivemos entre os países que tornaram possível a finalização do chamado “Livro de Regras do Acordo de Paris” – aí incluído o artigo sexto, que trata do mercado de carbono. Anunciamos novos e mais ambiciosos compromissos climáticos para o País. E reiteramos a antecipação, de 2060 para 2050, do nosso objetivo de longo prazo de atingir a neutralidade climática.
Em suma, o País novamente encarnou o protagonismo que lhe cabe nas tratativas internacionais sobre clima. Uma vez mais, afirmou-se como articulador de consensos, como fonte de soluções. Desempenhamos esse mesmo papel, em consonância com a tradição diplomática da Casa de Rio Branco, na Cúpula do G20 em Bali, com êxito e reconhecimento internacional, apesar das condições difíceis relacionadas às disputas geopolíticas em curso entre as grandes potências.
Senhor Ministro de Estado,
Consagrar recursos prioritários às urgências sanitária, econômica e climática não nos levou a descurar do conjunto orgânico de uma política externa que, embebida em longa tradição, abarca os mais variados temas e cobre todas as regiões do planeta. Uma política externa que, como convém a um país do tamanho do Brasil, responde também a considerações sistêmicas, ligadas ao próprio funcionamento do concerto internacional.
Mas eu disse que não seria exaustivo. Se vou agora além das três prioridades de política externa que regeram minha gestão, é para brevemente tocar em mais um campo apenas: o das eleições em foros internacionais. A escolha explica-se por ser campo de um quantificável de indiscutível significado qualitativo.
Em menos de dois anos, conquistamos espaços valiosos.
Elegemos um juiz da Corte Internacional de Justiça, em vaga decorrente do sentido falecimento do renomado jurista, e professor de tantos de nós, Antônio Augusto Cançado Trindade. Elegemos um juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, aqui presente, o doutor Rodrigo Mudrovitsch, que foi eleito como o mais votado dessa eleição que elegeu quatro nomes para a Corte. Elegemos um membro da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas. Como já ficou dito, elegemos um Diretor da OPAS. O Embaixador Fernando Simas ainda me lembrou que também foi eleito Ilan Goldfajn, presidente do BID, a primeira vez que um brasileiro exerce essa presidência.
O Brasil foi reeleito para o Comitê Organizacional da Comissão de Consolidação da Paz das Nações Unidas e para o Conselho da FAO. Assumiu a presidência da Conferência-Geral da UNESCO, órgão máximo da Organização. Desde janeiro de 2022, eleito por expressiva maioria de votos em junho de 2021, vem exercendo seu décimo-primeiro mandato como membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU.
E, como encerramento, liquidamos, graças ao apoio do Presidente da República e ao Ministério da Economia, cerca de 85% do passivo de dívidas a organismos internacionais que se arrastava há várias gestões.
Vejo nessas conquistas uma obra diplomática de longa gestação. Vejo nelas a continuidade de uma política externa que se justifica nos aportes que traz para aquele Brasil mais próspero e menos desigual que almejamos.
Senhor Ministro,
Antes de concluir, uma palavra sobre a administração da Casa que é nossa.
Sob a batuta do Embaixador Fernando Simas, encaramos problemas velhos e novos com uma inabalável vontade de acertar e de fazer a diferença. Do fluxo da carreira de diplomata ao desafio da saúde mental dos servidores; da questão incontornável do lugar das mulheres no Ministério à adaptação da nossa estrutura às demandas do momento; da solidez orçamentária que nos permitiu encerrar cada exercício sem sustos nem contas atrasadas – foi com o amor que temos pelo Itamaraty que nos entregamos a esses e a outros aspectos candentes da gestão institucional.
Como é inevitável, problemas persistem. Mas todos o que pudemos identificar mereceram o melhor das nossas capacidades. E alguns serão hoje, quero crer, menores do que eram antes.
Sobretudo, Ministro, deixo ao comando de Vossa Excelência – quero crer ainda – um corpo de funcionários coeso e revigorado no propósito que sempre distinguiu a Casa de Rio Branco: o propósito maior de servir ao Brasil.
Desejo-lhe, à Embaixadora Maria Laura da Rocha e a toda a equipe muito êxito na jornada que se inicia aqui. Esse êxito será o de todos nós.
Muito obrigado.